quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Campos de batalha

"Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas, o estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que aí viveram homens; por que é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra."
Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas 

Frequentemente associados a heroísmo, patriotismo, coragem, os campos de batalha já foram exaltados em obras de arte - principalmente em pinturas - mas também em música, dos mais diversos gêneros, e na literatura. Essas expressões são, quase sempre, resultado da visão dos vencedores. Afinal, uma obra de arte para valorizar a derrota seria pouco provável. 
Os assírios demonstraram uma enorme competência em retratar cenas de guerra em relevos que, graças a escavações arqueológicas, são hoje perfeitamente conhecidos. É o caso do exemplo que se vê abaixo (¹):

Exército assírio perseguindo inimigos

Vencedores, vencidos, prisioneiros, gente decapitada, empalada... A realidade nua e crua, recheada do sadismo dos conquistadores. Mas, um dia, os assírios também foram derrotados. Uma coligação de caldeus, medos e, provavelmente, outros povos mais, arrasou Nínive, a orgulhosa capital assíria, em 612 a.C. - pode-se bem imaginar como foi a vingança.
Outro cenário de guerra notável da Antiguidade foi o de Zama, no norte da África, onde, no ano 202 a.C., romanos e cartagineses se enfrentaram. Os romanos venceram. Políbio de Megalópolis (²) deixou-nos uma descrição do campo de batalha:
"O campo entre os exércitos ficou coberto de sangue, mortos e feridos, trazendo a Cipião um grande problema, uma vez que os feridos que se revolviam no próprio sangue e a confusão de armamento e de cadáveres dispersos tornavam a passagem quase intransponível às tropas que, em formação, aguardavam sua vez de entrar em combate." (³)
Panorama digno de um filme de terror? Na Antiguidade ou nos tempos medievais, um campo de batalha não era, como regra, muito diferente disso. Mas vamos mudar de cenário, no tempo e no espaço. Passemos ao Brasil Colonial.
De acordo com Pero de Magalhães Gândavo (⁴), em seu Tratado da Terra do Brasil, um campo de batalha entre indígenas tinha este aspecto:
"As armas com que pelejam são arcos e flechas [...], e assim parece coisa estranha ver dois, três mil homens (⁵) nus duma parte e doutra com grandes assobios e grita flechando uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos, meneando-se de uma parte para outra com muita ligeireza, para que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes as flechas pelo chão e servi-los enquanto pelejam."

Combate entre indígenas (⁶)

Durante o Império, a guerra mais importante foi, como se sabe, aquela que no Brasil é chamada a "Guerra do Paraguai". Do confronto conhecido como Batalha do Riachuelo há uma descrição feita pelo combatente Antônio Luís von Hoonholtz, Barão de Tefé:
"Que espetáculo desolador!
Por toda a parte o rio estava coalhado de destroços e de gente que aparecia e desaparecia acarreada pela violência da correnteza." (⁷)
Termino, já nos dias da República, com esta descrição, obra de Euclides da Cunha (⁸) em Os Sertões, do local do último confronto em Canudos, uma guerra civil que monopolizou as atenções em 1897:
"Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército."
Não esperem, leitores, que eu defenda aqui um pacifismo ingênuo e unilateral. Guerras, às vezes, são mesmo inevitáveis. Mas não há dúvida de que o mundo passaria melhor sem elas. Enquanto isso não acontece, novas e mais eficientes armas de destruição em massa são desenvolvidas, a indústria bélica triunfa e move parte considerável da economia mundial, e vidas humanas - ora, quem se importa com elas? - vidas humanas fenecem, sob o pressuposto do serviço à pátria, e até em nome da religião. A cada nova guerra, este planeta fica um pouco pior, ambiental e moralmente. Um completo exercício de racionalidade e inteligência às avessas. 

(1) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) c. 203 a.C. - 120 a.C.
(3) O trecho citado da História de Políbio foi traduzido por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) c. 1540 - 1580.
(5) É possível que Gândavo tenha exagerado no número, ainda que batalhas com exércitos indígenas tão numerosos não possam ser descartadas, supondo várias aldeias coligadas.
(6)THEVET, André. Les Singularitez de la France Antarctique. Paris: Maurice de La Porte, 1558. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(7) HOONHOLTZ, Antônio Luís von (Barão de Tefé). A Batalha Naval do Riachuelo. Rio de Janeiro: Garnier, 1865, p. 45.
(8) 1866 - 1909.


Veja também:

2 comentários:

  1. Tudo tem um principio, tudo tem um fim. No início era o verbo, ligado aos nomes, mas os adjectivos depressa transformaram a visão das coisas, adulterando formas de ver, de sentir e, principalmente, de estar. Os povos defendiam-se melhor num sítio alto? Claro, a tendência era muito condicionada pela geografia, as armas eram demasiado rudimentares. Com o tempo, porém, as coisas ficaram mais sofisticadas. E, nos tempos que decorrem, a sofisticação atingiu um patamar tal que... parece não haver limite para para o belicismo como fonte de poder.

    Abraço, Marta :)

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    1. Meu amigo, só resta mesmo dizer que, nessa perspectiva, podem ter mudado as armas, mas a humanidade continua a mesma (se é que não vai ladeira abaixo). Não acho que teremos de esperar muito tempo para ver em que acabará tudo isso.

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