sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Anúncios, anúncios!


Estação ferroviária britânica, na qual podem ser vistos muitos anúncios, 1874 (¹)

A arte da propaganda no Brasil do Século XIX e início 

do Século XX


"Um anúncio é um mundo de mistérios."
                                                                                                       Machado de Assis (²)

Algum tipo de propaganda deve ter existido desde que alguém se propôs a vender fosse lá o que fosse - objetos de cerâmica, o excedente da caça, vinho, azeite, ovelhas, jumentos... Não é difícil imaginar o vendedor exaltando, diante do potencial comprador, as virtudes das mercadorias que apresentava. Mas isso foi nos dias da Antiguidade.
A era capitalista veio, porém, acompanhada de uma verdadeira revolução na arte não apenas de vender, mas também na de criar desejos de consumo. Todo mundo sabe, afinal, quão difícil é, hoje, estabelecer uma distinção razoável entre as necessidades reais e aquelas que, no fim das contas, nos vêm à imaginação por obra e graça de campanhas publicitárias desenvolvidas com toda a maestria.
Ora, no Século XIX as técnicas propagandísticas, em se tratando de Brasil, apenas engatinhavam. Anúncios apareciam em jornais, nos bondes, nas poucas revistas existentes. A coisa não ia mesmo muito além disso. É Machado de Assis quem conta:
"Quando, há muitos anos, um negociante americano quis abrir na Rua do Ouvidor um depósito de lampiões e outros objetos de igual gênero, começou por mandar imprimir, no alto dos principais jornais desta cidade (³), uma só palavra, em letras que ocupavam toda a largura da folha. A palavra era: abrir-se-á. Grande foi a curiosidade pública, logo no primeiro dia, e nos dois que se lhe seguiram, lendo-se a palavra repetida, sem se poder atinar com a explicação. No quarto dia cresceu o espanto, quando no mesmo lugar saiu esta pergunta, que resumia a ansiedade geral: O que é que se há de abrir? Mais três dias, e as folhas publicaram no alto, em letras gordas, a resposta seguinte: O grande empório de luz, à Rua do Ouvidor, nº..." (⁴)
Rudimentar, como fosse, a tática do negociante americano funcionou porque recorreu a uma característica (que às vezes raia a sério defeito) da natureza humana: a curiosidade. Repetida, posteriormente, a ideia já não daria o mesmo resultado. É o mesmo Machado quem observa, a respeito de anúncios de medicamentos na imprensa da época:
"Recentemente, presentemente, vimos e vemos que a lembrança de recomendar um remédio por meio de comparação da pessoa enferma antes, durante e depois da cura, tão depressa apareceu, como foi logo copiada e repetida. - Eu era assim (uma cara magra); - Ia quase ficando assim (uma caveira); até que passei a ser assim (uma cara cheia de saúde), depois que tomei tal droga. A fórmula primitiva serviu para as imitações, creio que sem alteração, a não ser o desenho das caras, e não todas." (⁵)
Ora, leitores, anúncio de remédio é que não faltava, isso lá pelo fim do Século XIX e primeiras décadas do Século XX. A julgar pela quantidade e pelo conteúdo das propagandas, poderíamos supor que o Brasil era um país de doentes (⁶). Ou seria de hipocondríacos?
Apenas para dar uma ideia de como as propagandas de medicamentos procuravam alcançar consumidores, vão aqui três delas, todas publicadas na revista paulistana A Cigarra (⁷).





(1) SAMPSON, Henry. A History of Advertising. London: Chatto and Windus, 1874.
(2) GAZETA DE NOTÍCIAS, A Semana, 23 de junho de 1895.
(3) Referia-se ao Rio de Janeiro, que era, na época, a capital do Brasil.
(4) GAZETA DE NOTÍCIAS, A Semana, 14 de junho de 1896.
(5) Ibid.
(6) Uma rápida vista às estatísticas de falecimentos desse tempo mostra algumas coisas interessantes. Primeiro, era elevado o número de falecimentos entre crianças e jovens. Entende-se, se considerarmos que os antibióticos somente entraram a ser comercializados em larga escala depois da Segunda Guerra Mundial. A vacinação, que imunizava contra uma grande variedade de moléstias, ainda não estava universalizada. Além disso, eram muitas as mulheres que morriam no parto ou em decorrência dele. Isso se explica por falta de assistência hospitalar, ausência de cuidados médicos (as famosas "parteiras", nem sempre qualificadas é que entravam em ação) e por infecções, muitas vezes contraídas em decorrência de absoluta falta de higiene no próprio parto. Apesar de tudo isso, havia muita gente que chegava a uma idade avançada. Considerando a média, porém, a expectativa de vida era bem menor que a de hoje.
(7) A CIGARRA, respectivamente: Ano VI, nº 125, dezembro de 1919; Ano II, nº 33, dezembro de 1915; Ano IV, nº 78, 31 de outubro de 1917.


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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Cavalos de guerra

Ter cavalos no exército era, na Antiguidade, a última palavra em se tratando de poderio bélico. Cavalos, sim, e - por que não? - carros de combate, que para nós não seriam mais que carroças, mas que eram, então, a prova definitiva da força de um povo, assegurando-lhe o domínio sobre os vizinhos militarmente inferiores.

Guerreiros assírios em um carro de combate (²)

Mesmo sendo, quase sempre, muito briguentos (¹), os povos do passado precisavam ser bastante criteriosos em suas decisões quanto a ter ou não cavalos para suas tropas, e uma primeira razão para isso, óbvia, na verdade, é que combater a cavalo era muito diferente de combater a pé, pressupondo, assim, que os soldados precisariam de treinamento frequente. E não só os soldados: também os cavalos deviam receber treinamento adequado, do contrário a vantagem literalmente cairia por terra, se os animais se mostrassem incontroláveis. Cavalos eram caros; carros de combate, também.
Além disso, cavalos não eram úteis em qualquer terreno. Eficazes em áreas pouco acidentadas, chegavam a ser um problema nas montanhas. Vale o mesmo para os carros de combate, cuja velocidade só era vantajosa em lugares que permitiam correr quase sem obstáculos.
Havia ainda mais. Em tempos nos quais prover suprimentos para as tropas já era uma grande dificuldade, muito mais complicado era assegurar alimento e água para cavalos, muita água, como todo mundo sabe.
Carruagem cretense (³)
Em tempo de paz, os cavalos, é claro, continuariam a existir, e precisariam receber cuidados. Caso fossem de propriedade real, era preciso um bom número de funcionários para cuidar deles, zelar pelas cavalariças e, deduz-se com facilidade, tudo isso acarretava custos que, por sua vez, conduziam a impostos que, finalmente, não eram fator de popularidade para o(s) governante(s). Entre os gregos os cavalos eram, geralmente, de propriedade particular, o que significa que cada cidadão militarmente válido cuidava do seu próprio, mas isto já pertence a uma outra lógica em termos de cidadania e serviço militar, que não era, em absoluto, o modelo vigente no Egito e na Mesopotâmia.
Diante dessas aparentes desvantagens, alguém poderá supor que ter cavalos para as guerras vinha a ser um mau negócio. Mas não era assim. Exércitos com cavalos e carros de combate (usualmente com dois animais) levavam, se bem treinados, uma enorme vantagem sobre os concorrentes que podiam contar apenas com a infantaria. Também é fato que, em muitos casos, exércitos com cavalos tendiam à profissionalização, por razões que já foram explicadas. Não menos importante, o monarca que dispunha de cavalaria tinha, quando esta lhe era submissa, um recurso excelente para manter os governados em subordinação. Nada mal para governantes absolutos, metidos a deuses e/ou a seus representantes.
O uso militar de cavalos evoluiu através dos tempos e chegou a alcançar a Segunda Guerra Mundial. Desde então, a mecanização substituiu os animais. Cavalos e cavalarianos, hoje, só mesmo em desfiles, comemorações, guardas de honra e em tentativas de reconstituição dos grandes combates do passado.

(1) Não muito diferentes dos povos de hoje...
(2) LAYARD, Austen Henry. Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1882, p. 246. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) KNOWLTON, Daniel C. Illustrated Topics for Ancient History. Philadelphia: McKinley Publishing Company, 1913. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Guerra dos Emboabas e o retrato do rei

Guerra dos Emboabas é o nome que se deu ao confronto ocorrido nas Minas, em começos do Século XVIII, entre paulistas (descobridores das minas) e "forasteiros", geralmente reinóis, que acorriam ao Brasil sonhando com riqueza fácil. Era a esses forasteiros que os paulistas davam o apelido de "emboabas". O pega foi sério: verdadeiras batalhas foram travadas, com muitas mortes de ambos os  lados, seguidas de aparente calmaria, e novas refregas, no melhor espírito vingativo.
As autoridades vacilavam quanto a quem apoiar. Por um lado, as minas só eram conhecidas porque os paulistas, que assumiam todos os riscos nas andanças pelo sertão, as haviam encontrado. Não interessava, pois, à Coroa, desestimular seu espírito aventureiro. Por outro lado, era inaceitável, ao menos do ponto de vista lusitano, que portugueses fossem expulsos das minas pelos valentões de São Paulo. Nesse rumo, aonde iriam parar as autoridades e as leis estipuladas nas Ordenações do Reino quanto à exploração de minas, dentre as quais, a cobrança dos famosos (e famigerados) Reais Quintos? Sim, porque diziam as Ordenações no Livro Segundo, Título XXXIV, § 4:
"E de todos os metais que se tirarem, depois de fundidos e apurados, nos pagarão o quinto em salvo de todos os custos." (¹)
Vale explicar, aqui, que, segundo a legislação portuguesa, o rei era o proprietário de todas as minas conhecidas e/ou que viessem a ser descobertas em seus domínios. No entanto, por magnanimidade real, determinava-se que apenas o quinto fosse devidamente apurado para a Real Fazenda...
Foi depois de uma dessas bélicas trocas de ofensas entre paulistas e forasteiros que o a Metrópole tentou uma curiosa alternativa para, de uma vez por todas, serenar os ânimos.
Os paulistas tinham, pelo tempo afora, sempre governado a si mesmos como lhes dava na cabeça. Autoridades enviadas pela Metrópole sabiam, se tinham juízo, que o melhor partido, com eles, era negociar. Qualquer tentativa de submetê-los à força seria perda de tempo, com grande probabilidade de colocar, novamente, lenha na fogueira. O isolamento em que viviam no interior, quando o restante da colonização se fazia no litoral, deixava-os à vontade para viver com bem entendiam.
Por outro lado, sabia El-Rei que não podia prescindir de sua mania de vasculhar o interior à procura de riquezas. Melhor ideia era, prudentemente, administrar sua natural independência, sua vaidade, sua arrogância, até. Daí ter-se alvitrado, segundo o jesuíta Padre Manuel da Fonseca, enviar a São Paulo, junto com um novo governador, nada menos que - acreditem, senhores leitores - nada menos que um retrato de El-Rei:
"...apareceu Antônio de Albuquerque com o Governo de São Paulo e apertadas ordens de El-Rei, para que fossem os paulistas habitar pacificamente as Minas, impondo graves penas aos que primeiro violassem a paz; e entendendo o soberano que ânimos generosos se deixam vencer com qualquer afago, lhes enviou pelo novo governador um retrato seu, que ainda hoje se conserva na Casa da Câmara, para que entendessem que visitando-os daquele modo, já que pessoalmente o não podia fazer, tomava aos paulistas debaixo da sua real proteção. Com este singular favor se satisfizeram os paulistas, e esquecidos dos agravos passados, depuseram as armas." (²)
A coisa, parece, funcionou. Lisonjeados por tanta atenção do monarca (como supunham), talvez estivessem os paulistas melhor dispostos, senão à obediência, pelo menos a um comportamento tolerável. Sossegaram as minas, é fato. Mas não por muito tempo.

(1) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) FONSECA, Manuel da S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo, p. 219



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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Como indígenas furavam as orelhas

Os portugueses que, em fins do Século XV, chegaram ao Brasil, notaram que os povos indígenas dispunham, como parte de sua cultura, de uma grande variedade de técnicas para ornamentação do corpo, incluindo pinturas, uso de penas, ossos, etc. Ora, perguntará alguém, como é que as índias furavam as orelhas?
O Padre José de Anchieta, missionário jesuíta nativo das Canárias, em uma de suas cartas destinadas ao Geral da Ordem (¹), datada de 31 de maio de 1560, observou, a propósito de uns animaizinhos existentes no Brasil:
"Existem também certos pequenos animais do gênero dos ouriços (²), cobertos de cerdas compridas e mui agudas [...], pretas na ponta, as quais, se tocarem em alguma coisa, principalmente carne, entram pouco a pouco por si, sem ninguém as empurrar; as mulheres brasílicas costumam servir-se delas para furarem as orelhas, sem sentirem dor."
Está dada, portanto, a explicação quanto ao procedimento que adotavam as índias. Espero que os muito curiosos estejam satisfeitos.

Indígenas brasileiros de várias etnias, de acordo com Debret (³)

(1) O Superior Geral era, nessa ocasião, Diego de Laynez, sucessor de Inácio de Loyola.
(2) Anchieta não se propõe a nenhuma classificação técnica dos animais, apenas os descreve para conhecimento dos membros de sua Ordem religiosa na Europa. Trata-se, aqui, de uma referência ao ouriço-cacheiro.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Quem ficava com a roupa dos condenados à morte

A Constituição em vigor no Brasil, ou seja, a de 1988, estabelece que não se aplicará no País a pena de morte, a não ser em caso de guerra declarada. Estão surpresos, leitores?
Pois é isto mesmo, conforme o Artigo 5º, Inciso XLVII:
"Não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; [...]."
Nos séculos passados, no entanto, a atribuição da pena capital era muito mais ampla. No Brasil, consta que teria ocorrido, na prática, pela última vez, nos anos setenta do Século XIX, já que, posteriormente, mesmo havendo condenação, o Imperador Dom Pedro II sempre determinava a comutação da pena. Esse procedimento tinha duas "vantagens": Não alterava a lei e permitia ao monarca demonstrar sua magnanimidade. Sendo D. Pedro II um homem efetivamente esclarecido, é provável que tivesse pouca simpatia pessoal por cenas sangrentas.
Muitíssimo severa, porém, era a legislação vigente no Período Colonial. As célebres Ordenações do Reino não economizavam ao distribuir pena capital até para coisas que hoje nem consideramos crimes. Quem duvidar pode gastar algumas horas com a instrutiva leitura do Livro Quinto das ditas Ordenações.
A lei era bastante minuciosa, estipulando, até, para quem ficava a roupa que os condenados, ao sair para a execução, deixavam na prisão:
"Na cadeia da Corte haverá dois ou três ministros para fazerem as execuções da Justiça, os quais o carcereiro trará aprisionados, de maneira que não fujam, e haverão seu mantimento cada mês, segundo lhes for ordenado pelo Regedor. E levarão das pessoas que morrerem por Justiça, os vestidos e roupas da cama, que na cadeia tiverem." (¹)
Tétrico? Talvez. Mas certamente um bom exemplo da pobreza que imperava naqueles tempos, quando até mesmo a roupa dos prisioneiros era distribuída por lei, para evitar disputas entre carcereiros e carrascos. (²)

(1) Ordenações do Reino, Livro Primeiro, Título XXXIII, § 8, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Em Portugal, atualmente, não há pena de morte sob nenhuma circunstância; na prática, deixou de ser aplicada, ao que parece, em meados do Século XIX. 


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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Quão pesada era uma cadeirinha de arruar?

Senhora conduzida por escravos em uma cadeirinha de arruar (¹)

Vou dizendo logo de saída, senhores leitores: não tenho resposta à pergunta que propus no título desta postagem. Não faço a mínima ideia (²). Mas sei de um sujeito que, empiricamente, deve ter descoberto quão pesada era uma cadeirinha de arruar.
O episódio foi contado por Joaquim Manuel de Macedo (sim, o autor de A Moreninha), o médico, professor de História no Colégio Pedro II e escritor, e segundo ele, ocorreu no Rio de Janeiro quando Dom Luís de Vasconcelos era vice-rei no Brasil. Portanto, ainda no Século XVIII, em algum momento entre 1778 e 1790.
De acordo com Macedo (³), que, asseverando a autenticidade do fato afirmava, nesse sentido, ter feito todas as investigações, em um dia de intenso calor João Homem fazia-se carregar em uma cadeirinha por dois escravos, ladeira acima, no Morro da Conceição. Naturalmente vinham os escravos bastante fatigados, suando profusamente, mesmo porque João Homem não era um indivíduo de dimensões lá muito reduzidas.

Cadeirinha de arruar de meados do Século XIX (⁴)

Ora, quem acha que apenas madames eram transportadas em cadeirinhas de arruar está muito enganado. Os do sexo masculino também faziam uso desse meio de transporte. Voltemos, pois, à história de João Homem.
Lá ia a cadeirinha morro acima, quando, descendo, passou por ela o próprio vice-rei, Dom Luís de Vasconcelos. Deixo, agora, que J. M. de Macedo conte o restante:
"Luís de Vasconcelos, que vinha de mau humor, irritou-se, vendo os escravos arquejando de fadiga: mandou-os parar, fez sair da cadeirinha a João Homem, ordenou-lhe que tomasse o lugar de um dos negros, obrigou a este a ir sentar-se dentro da cadeirinha, e lá se foi o senhor, ajudando a carregar o escravo pela ladeira acima.
- É para ensiná-lo a ser mais humano - disse o vice-rei. E depois prosseguiu em seu caminho muito contente de si."
Penso que jamais saberemos o que terá sucedido posteriormente. Seria João Homem capaz de vingar-se do escravo? É possível, tanto quanto é igualmente possível que o temor de que o vice-rei rei tomasse conhecimento da desforra tenha sido suficiente para manter em respeito o despeitado senhor de escravos. O episódio, no entanto, é delicioso, concordam?

(1) Carlos Julião, final do Séc. XVIII ou início do XIX. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Todas as cadeirinhas de arruar que vi eram confeccionadas em madeira de boa qualidade. Não eram leves, portanto.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 98.
(4) H. Lewis, 1848. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Escravos fugitivos

Como a legislação vigente em Portugal e no Brasil tratava a questão da fuga de escravos


Escravos fugiam - ou, ao menos, tentavam fugir. Os legisladores dos desgraçados tempos da escravidão sabiam muito bem disso e, por conseguinte, já estabeleciam, de antemão, os "regulamentos" para garantir que o sistema de trabalho compulsório não viesse a sofrer perturbações consideráveis.
No caso do Brasil Colonial, vigoravam as famosas Ordenações do Reino, compiladas e publicadas em Portugal no início do Século XVII, mas que já existiam, na prática, bem antes disso. Nelas também constavam as leis aplicáveis aos cativos que ousavam intentar uma ruptura com a lógica que, negando-lhes a dignidade de seres humanos livres, forçava-os ao enquadramento na condição de mercadoria (que um senhor podia comprar e vender conforme desejasse) e de força de trabalho que devia produzir para máximo lucro do "proprietário" (¹).
Em primeiro lugar, as Ordenações estipulavam a obrigação, imposta a qualquer pessoa que encontrasse um escravo fugitivo, de denunciá-lo à Justiça em um prazo máximo de quinze dias:
"Se algum escravo que andar fugido for achado, o achador o fará saber a seu senhor ou ao juiz da cabeça do Almoxarifado da Comarca em que for achado, do dia em que o achar a quinze dias. E não o fazendo assim, haverá a pena de furto." (²)
Percebe-se com facilidade, conforme já disse anteriormente, que a legislação era estruturada para assegurar a continuidade do escravismo; além disso, ordenava-se ao juiz que submetesse o escravo fugitivo à tortura, para evitar que desse informações falsas quanto a quem era seu verdadeiro proprietário:
"E porque muitas vezes os escravos fugidos não querem dizer cujos são, ou dizem que são de uns senhores sendo de outros, do que se segue fazerem-se grandes despesas com eles, mandamos que o juiz do lugar onde for trazido o escravo fugido lhe faça dizer cujo é e donde é por tormento de açoites, que lhe serão dados sem mais figura de Juízo e sem apelação nem agravo, contanto que os açoites não passem de quarenta. E depois que no tormento afirmar cujo é, então faça as diligências sobreditas." (³)

No Brasil, o uso de um colar de ferro era um castigo que, publicamente,
assinalava os escravos "fujões" (⁴)
Sim, já sei que alguns dos leitores, horrorizados, estarão encerrando a leitura por aqui. Para quem tiver sangue frio para prosseguir, lembro apenas que o tal limite de quarenta açoites era visto como prática piedosa, inspirada na Lei de Moisés. Mas vamos em frente, para verificar quais penas eram impostas àquele(s) que ajudasse(m) um escravo a fugir:
"Defendemos que nenhumas pessoas levem fora de nossos Reinos escravos, para os porem em salvo, e saírem de nossos Reinos, nem lhes mostrem os caminhos por onde se vão e se possam ir, nem outrossim deem azo nem consentimento aos ditos escravos fugirem, nem os encubram. E qualquer pessoa que o contrário fizer, mandamos que sendo achada levando algum cativo para o pôr em salvo, aquele que assim o levar, sendo cristão, será degradado para o Brasil para sempre. E sendo judeu ou mouro forro, será cativo do senhor do escravo que assim levava. E sendo judeu ou mouro cativo, será açoitado. E sendo-lhe provado que o levava, posto que com ele não seja achado, haverá as mesmas penas, e mais pagará a valia do escravo a seu dono." (⁵)
Admitamos: os legisladores tinham visão de futuro. Do mesmo modo que impunham severa punição para o escravo fugitivo, matavam, na origem, qualquer veleidade abolicionista, fosse por simples empatia com o sofrimento de um cativo, fosse ideologicamente embasada, com vistas a suprimir, em última instância, um sistema perverso no qual homens, para explorar outros homens, faziam por despojá-los, tanto quanto possível, do mais sagrado atributo humano, a liberdade. Homo homini lupus...

(1) As aspas aqui, leitores, são expressão do pensamento do nosso século, no qual a liberdade individual no contexto de uma sociedade democrática tem supremo valor; nos tempos da escravidão, um senhor de escravos era, sem mais rodeios, exatamente o dono dos cativos. Nem mais e nem menos.
(2) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra, Livro V, Título LXII.
(3) Ibid., § 1.
(4) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig &; Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Ordenações do Reino, Título LXIII.


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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A religiosidade nas civilizações do passado

Compreender as civilizações do passado não é coisa lá muito fácil. Pressupõe deixar de ver o mundo segundo a nossa lógica e tentar vê-lo, se é que tal coisa é possível, segundo os valores que norteavam os antigos.
Um exemplo é a questão do lugar ocupado pela religião. Hoje, na maior parte do Ocidente, religião é assunto pessoal. Cada um dá a ela a importância que julga adequada, o que pode ser, até, importância nenhuma. Igrejas que, há séculos, ficavam lotadas de fieis para as práticas de culto, hoje estão vazias, ou são transformadas em salas de concerto, lanchonetes, restaurantes, etc., etc., etc... E isso, é bom notar, quando são consideradas demasiado valiosas, historicamente. Caso contrário, são apenas postas abaixo. Em contrapartida, religiões midiáticas parecem ganhar um certo espaço.
Não era assim na Antiguidade. As práticas religiosas eram, essencialmente, o grande fator de agregação das comunidades, fossem elas grandes ou pequenas, muito ou pouco desenvolvidas. Estavam, além disso, associadas ao que pode ser visto como o nascer de algum tipo de sentimento nacional. Monarcas com fortes tendências a concentrar todos os poderes em si mesmos eram vistos ou como personificação de alguma divindade ou, o que não era pouco, como intermediários entre o povo e os deuses - eram, portanto, reis-sacerdotes.
Uma boa medida da importância que atribuíam às crenças religiosas pode ser dada pela qualidade do material que se empregava na construção de templos. Era sempre o melhor que se podia obter. Pedras, madeira, metais preciosos, nada se poupava quando a intenção era agradar aos deuses, obter, supostamente, o seu favor e, não menos significativo, dar uma demonstração da força, da devoção e da capacidade econômica, fosse de apenas uma povoação ou cidade, fosse de um império. Não é por acaso que, das ruínas que sobraram de antigas civilizações, grande parte é feita de templos.

Representação assíria de um templo (*)
É verdade que vários desses elementos prevaleceram através dos tempos. Muitos deles podem ser aplicados, quase sem restrições, à construção das grandes catedrais europeias na Idade Média. Países mais jovens, como é o caso do Brasil, passaram por algo parecido. O ouro das Gerais, no Século XVIII, produziu belíssimas igrejas de características barrocas; a riqueza gerada pela exportação de café possibilitou, no Século XIX ou mesmo no início do Século XX, a construção de igrejas importantes nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Mas, já nesse tempo, a religião começava a ser dissociada de questões cívicas. Grandes edifícios públicos foram também construídos, sem qualquer vínculo com assuntos ligados à religião predominante. Pelo contrário, por razões artísticas, não era incomum o recurso a temas provenientes da antiguidade greco-romana, ou seja, àquilo que se poderia chamar de "paganismo".
Posso imaginar que, depois destas considerações, alguns de meus leitores talvez pensem que, por uma variedade de motivos, alguns aspectos das antigas práticas associadas à religião estão, novamente, ganhando força, ao menos em alguns lugares. Sim, pode ser, e eis, portanto, um fenômeno que bem mereceria ser devidamente estudado.

(*) __________ The Buried City of the East - Nineveh. London: National Illustrated Library, 1851, p. 186.


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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Do medo da varíola à Revolta da Vacina

Na pequena São Paulo do Período Colonial a doença mais temida era, provavelmente, a varíola. Matava, e quando não o fazia, deixava o(a) sobrevivente com a fisionomia deformada.
São frequentíssimas as mortes que, na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de Almeida Paes Leme atribui a "bexigas":
"D. Maria de Araújo da Ascensão [...] faleceu de bexigas com avançada idade..."; "Desde 1727 em que principiou a perceber o real erário o dízimo dos quintos do ouro das ditas minas de Goiases até o 1º de janeiro de 1738, em que acabou a vida de enfermidade de bexigas em São Paulo o capitão Bartolomeu Paes de Abreu..."; "Ângelo de Góes Cardoso, que faleceu de bexigas indo para Coimbra..."; "Catarina da Silva d'Horta, que faleceu de bexigas em 1769..."; "Dona Maria, que tendo bexigas em tenros anos, perdeu os olhos a efeitos do veneno desta maligna enfermidade...".
Creio, leitores, que, para nosso propósito, já é mais do que suficiente.
A vacinação antivariólica foi introduzida no Brasil em fins do Século XVIII, ao que parece pelo Barão de Langsdorff (¹), e a pedido do então príncipe-regente D. João, mais tarde D. João VI. Desde então, era possível imunizar a população, e muitos o faziam, tendo o cuidado de vacinar inclusive os escravos - se não por caridade cristã, ao menos para "preservar o patrimônio".
Outro ponto significativo é que já se falou e/ou escreveu bastante contra a postura do governo brasileiro, particularmente do então diretor de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, durante a chamada Revolta da Vacina, em novembro de 1904. Nesse sentido, alegam alguns que a vacina era uma novidade e, portanto, desconhecida da população, que não sendo devidamente informada pelo governo, manifestou-se contrária a tamanho autoritarismo.
Ora, sendo a vacinação contra a varíola conhecida e usada no Brasil desde os últimos anos do Século XVIII, a defesa dessa ideia não parece ter muito fundamento. Que a população tinha medo da vacina é fato, assim como havia quem não quisesse, por excesso de recato, que as senhoras da família fossem vacinadas. Também é verdade que havia um número muito grande de imigrantes, recém-chegados ao Brasil, que talvez não tivessem grande intimidade com procedimentos médicos. Aliás, é justamente entre a população imigrante, levando em conta suas origens, que podem ser procuradas algumas das causas autênticas para a revolta de 1904.
Motivos para revolta? Havia, por certo (²). Não estava, entre eles, porém, o ser a vacina uma novidade no Brasil.

A vacinação era, em 1904, assunto corrente nas revistas humorísticas (³)

(1) O mesmo que liderou a Expedição que recebeu seu nome.
(2) Pode-se supor, racionalmente, que ninguém sairia quebrando a iluminação pública, virando bondes ou construindo barricadas à custa do calçamento das ruas sem alguma justificativa plausível. Entre a população de imigrantes que não queria ser vacinada podia ser vista uma ou outra bandeira anarquista, remetendo, portanto, a questões políticas e trabalhistas que haviam atravessado o Atlântico em companhia dos trabalhadores que procuravam um novo país para viver. Outras linhas ideológicas também estavam presentes.
(3) O ESFOLADO, Ano 1, nº 1, 16 de setembro de 1905.  O original pertence à BNDigital; a  imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Colonizadores nem sempre arranhavam o litoral

A antológica afirmação de Frei Vicente do Salvador de que os colonos portugueses que vinham ao Brasil viviam junto ao litoral, arranhando a costa como caranguejos tinha muito de verdade:
"Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas, mas contentam-se de andar arranhando ao longo do mar como caranguejos."
Razões para isso? Comecemos com o óbvio: muitos iam estabelecer-se no litoral simplesmente porque... estava mais perto. Havia, também, em boa parte da colônia, um sério obstáculo natural à ocupação: a Serra do Mar, com escarpas muito íngremes em certos pontos. Isto sem falar na população nativa da América que, resistindo à colonização, postava-se no interior, até para fugir à escravização que se lhes queria impor. Há, de Gândavo, um trechinho interessante sobre as razões que bloqueavam as idas ao sertão:
"Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é necessário estarem junto ao mar por terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da costa." (¹)
Ocorre que não apenas de falta de interesse ou de coragem decorria o fato de não se ocupar o interior. Houve mesmo proibição nesse sentido, segundo, no Século XVIII, explicou Frei Gaspar da Madre de Deus:
"Com duas vistas, ambas muito próprias dos olhos de Martim Afonso, fez este Donatário aquela proibição utilíssima ao bem comum do Reino, e conducente ao aumento de sua Capitania. Ele penetrou os verdadeiros interesses do Estado melhor do que alguns modernos, e o seu fim era não só evitar guerras, mas também fomentar a povoação da Costa. Previu que da livre entrada dos brancos nas aldeias dos índios haviam de seguir-se contendas e alterar-se a paz tão necessária ao aumento da terra; não ignorava que D. João III mandara fundar colônias em país tão remoto de Portugal com o intuito de utilizar ao Estado por meio da exportação dos frutos brasílicos; sabia que todos os gêneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se para a Europa facilmente, e que os do sertão, pelo contrário, nunca chegariam aos portos, onde os embarcassem, ou se chegassem, seria com despesas tais que aos lavradores não faria conta largá-los pelo preço por que se vendessem aos da marinha. Estes foram os motivos de antepor a povoação da costa à do sertão, e porque também previu que nunca ou muito tarde se havia de povoar bem a marinha, repartindo-se os colonos, dificultou a entrada do campo, reservando-a para o tempo futuro, quando estivesse cheia e bem cultivada a terra mais vizinha aos portos." (²)
Menciono, de passagem, que Frei Gaspar da Madre de Deus era nascido em São Vicente, o que talvez explique um pouco suas ideias sobre o povoamento do interior. Mas, voltando à proibição de Martim Afonso de Sousa, vale lembrar que excetuou dela apenas João Ramalho. Ora, que remédio! O homem já andava pelos campos de Piratininga muito antes de que o próprio Martim Afonso cogitasse vir ao Brasil!
Em todo caso, gradualmente as coisas foram mudando.
Depois da fundação de Piratininga (1554), a uma certa distância da vila de João Ramalho (que mais tarde seria "transferida" compulsoriamente para Piratininga), aos poucos a ocupação do interior foi-se fazendo, no rumo das circunstâncias, aliás as mais variadas possíveis, dentre as quais será bom recordar:
a) a existência de um grande rio - o Tietê - que em lugar de correr para o mar, como fazem os rios ajuizados, corria para o interior, e que acabava sendo uma espécie de caminho natural para quem desejava perscrutar a imensidão de florestas que revestia o Continente;
b) a necessidade de ir mato adentro para combater índios que pretendiam, por vezes com muito motivo, atacar a pequena São Paulo;
c) a iniciativa catequética dos jesuítas, pressupondo que fossem os missionários até onde viviam os povos indígenas;
d) os apresadores de índios e buscadores de ouro que não mediam esforços e arriscavam o pescoço na fúria por enriquecimento rápido;
e) no extremo, gente que se via na contingência de fugir à força da Justiça - coisa que em Piratininga não constituía nenhuma raridade - acabava, mesmo sem querer, explorando o interior da capitania.
Tudo isso contribuiu para levar o povoamento lusitano muito além do que seria um limite aceitável para Tordesilhas, até porque onde era esse limite, com exatidão, ninguém sabia mesmo.
Ironicamente, foi no ponto em que as escarpas da Serra do Mar mais íngremes se mostravam que a interiorização do processo colonizatório acabou por ocorrer mais cedo, com maior intensidade e eficácia. Só para contrariar a "regra" de Frei Vicente do Salvador, os colonos da Capitania de São Vicente não se satisfizeram com "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos".

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 31.
(2) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, pp. 71 e 72.


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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A reação dos índios a animais desconhecidos

Os primeiros cavalos trazidos por espanhóis à América causaram não pouco espanto entre os povos ameríndios, habituados a animais muito menores. Entende-se, inclusive, que o uso de cavalos em combate foi, para os espanhóis, uma vantagem decisiva na chamada "conquista da América", ao lado do emprego de armas de fogo.
Parece, no entanto, que as coisas transcorreram com mais suavidade quando da chegada da esquadra de Cabral ao Brasil. A Carta escrita por Pero Vaz de Caminha trata explicitamente da reação de jovens índios aos animais que vinham na embarcação do comandante:
"Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo. Tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali."
Como se os houvesse ali... Papagaios? Sim, mas não pardos. Verdes, vermelhos, amarelos, azuis. Multicoloridos, enfim. Vê-se, pois, que papagaios, ou melhor, psitaciformes em geral, independente da coloração das penas, jamais seriam um problema para o relacionamento com os portugueses.
Vamos em frente. A seguir, ainda de acordo com Caminha, foi-lhes apresentado um animal maior, um carneiro:
"Mostraram-lhes um carneiro, mas não fizeram caso dele."
Não havia carneiros no Continente Americano. Ainda assim, o exemplar mostrado, ao menos nessa ocasião, não chegou a ser uma grande surpresa, pelo que se pode inferir. O bicho devia ser pacífico e não era, nem de longe, grande como um cavalo. Não assustava, portanto.
Porém... Logo foi apresentado um outro ser vivo, capaz de gelar o sangue dos rapazes ameríndios:
"Mostraram-lhes uma galinha, mas quase tiveram medo dela e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados."
Para concluir, fica aqui a resposta a uma pergunta que deve andar pela cabeça de alguns dos leitores, e que deixo subentendida: carneiros e galinhas viajavam na esquadra de Cabral (e em muitas outras) como comida ambulante. Era isso que faziam na embarcação, razão pela qual foram devidamente apresentados aos habitantes do Brasil.


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Cerrado

A fase inicial da colonização do Brasil ocorreu, senão em exclusividade, ao menos predominantemente no litoral (¹). Aos poucos, porém, a exploração do interior foi acontecendo, até porque a busca por metais preciosos o exigia.
Assim, foi no interior do Brasil que os exploradores de origem europeia vieram a encontrar um tipo de vegetação em grande parte arbustiva, com árvores não muito altas e de troncos retorcidos. Já no Século XIX, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire descreveu-as como "...árvores esparsas, enfezadas, tortuosas, de cascas encortiçadas, com folhas duras e quebradiças." (²)
Tratava-se, como devem ter notado os leitores, do cerrado, uma forma de savana encontrada no Brasil (³). Podia ser visto, por exemplo, no território dos atuais Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, parte de Minas Gerais e de São Paulo, tendo o mesmo Saint-Hilaire referido, quanto a uma área nas proximidades de Sorocaba:
"...encontramos um campo, onde, em meio de ervas e de subarbustos, elevam-se, umas bem juntas das outras, árvores definhadas, de casca suberosa, com folhas duras e quebradiças..." (⁴) 


(1) A Capitania de São Vicente foi, nesse quadro, uma exceção.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 47.
(3) Outra forma de savana, também encontrada no Brasil, é a caatinga.
(4) SAINT-HILAIRE, A. Op, p. 201.


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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Escravos como mercadoria

Quando se diz que escravos eram mercadoria, há quem pense haver, nessa afirmação, um certo exagero. Vou mostrar que não, com um trecho de uma obra que circulou em Portugal no Século XVIII.
Trata-se de um livrinho constituído, basicamente, de perguntas e respostas, com o propósito de ensinar geografia; o título, no entanto, é algo pomposo, Descripção da Terra ou Methodo Breve da Geographia. O padre francês Langlet Dufresnoy foi seu autor, mas a edição portuguesa trazia, escrita pelo  tradutor João Bautista Bonavie, uma introdução a cada um dos Continentes.
Pois bem, discorrendo o tradutor sobre a África, pôs-se a listar artigos que nela eram comercializados:
"O principal comércio que nela fazem consiste em marfim, em pó de ouro, em açúcar, em sal, em peles de animais bravos, em cavalos e em negros, que compram ali para os transportar à América para trabalhar nos engenhos de açúcar e tabaco e nas minas de ouro." (¹)
A crueza da enumeração chega a nos parecer chocante, ofensiva, até. Mas era isso mesmo. Um escravo consistia, aos olhos dos que faziam o tráfico, apenas em mercadoria. Não convinha a um comerciante de escravos a reflexão sobre o fato de que estava comprando e/ou vendendo seres humanos. Se o fizesse, talvez fosse compelido a abandonar seu execrável mas lucrativo negócio. Era questão de mercado - havia quem comprasse escravos, havendo, por conseguinte, quem se dispusesse a vendê-los, como se fazia com peles e marfim, ou açúcar, sal e cavalos.
Por outro lado, não pode escapar o fato de que, longe do trato diário com o comércio de gente, um autor/tradutor europeu se prestasse, com tanta naturalidade, a enumerar "negros", entre outras mercadorias. A escravidão se mantinha, também, porque acabava parecendo a coisa mais natural deste mundo. A percepção moral de sua iniquidade havia, em grande parte, desaparecido, o que se confirma por este outro trecho, desta vez do autor do original francês, em que, descrevendo o que chamava "reino de Congo", salientava, quase como virtude, o "grande comércio de negros" que lá se fazia:
"O grande reino de Congo, que se acha na costa do Mar Oceano, é dividido em vários pequenos Estados ou Reinos, nos quais os portugueses e holandeses têm algumas povoações, e se faz naqueles países assaz grande comércio de negros." (²)

Mapa do Continente Africano, incluído na obra a que se refere esta postagem

(1) DUFRESNOY, Nicolas Langlet. Descripção da Terra ou Methodo Breve da Geographia. Lisboa: Of. de Joseph da Costa Coimbra. 1757, p. 208.
(2) Ibid., p. 216.


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