terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"Vende-se uma escrava..."

Colocar anúncio em jornal foi, no passado, e ainda é, em muitas situações, um modo conveniente de informar, a eventuais interessados, que se pretende vender alguma coisa. Usa-se, então, especificar as características (quase sempre ressaltando as virtudes) daquilo de que se quer dispor, informando-se também um endereço para contato. No século XIX, quando os jornais começaram a se tornar numerosos no Brasil, a situação não era muito diferente quando alguém desejava vender um escravo (embora, obviamente, o endereço para contato incluísse apenas cidade, rua e número, jamais telefone ou e-mail!).
Em quatro anúncios aqui selecionados, meus leitores poderão ter uma ideia de como se tornava pública a venda de cativos. Vejamos os dois primeiros, mandados publicar pelo Juízo de Órfãos, que era, na época, a instância responsável por administrar o espólio dos que faleciam deixando herdeiros ainda menores de idade:
Um diz:
"Pelo Juízo de Órfãos e cartório do escrivão Castro se faz público que achando-se em praça duas escravas de nomes Francisca e Catarina, pertencentes à herança do finado José Justiniano Vieira Falcão, hão de as mesmas se arrematarem na casa da polícia, no dia 10 do corrente, às 10 horas da manhã, cujas avaliações acham-se no cartório do dito escrivão, e as escravas em poder de Luís Álvares, testamenteiro do dito finado." (¹)
Já o outro informa:
"Por ordem do Ilustríssimo Sr. Dr. José Antônio Vaz de Carvalhais, juiz de órfãos desta cidade e seu termo, se faz público que no dia vinte e oito do corrente, nas casas de audiências deste Juízo, ao meio dia, se arrematarão os escravos Generosa e seu filho, pertencentes à herança da finada Esméria Maria, da freguesia da Penha, e a escrava Felicidade, de 16 anos de idade, pertencente a dois herdeiros do finado Joaquim Nunes Ribeiro, da freguesia de Itapecerica. São Paulo, 12 de agosto de 1852. O Escrivão, Manoel José Simões Guimarães." (²)
Os dois últimos anúncios escolhidos foram mandados publicar por particulares que desejavam vender escravos de sua propriedade. Em comum, tinham o fato de que os cativos eram ainda jovens, ressaltando-se sempre suas qualidades. Entende-se: ninguém que queira vender alguma coisa, obtendo, por suposto, o melhor preço, irá fazer circular dela uma descrição negativa.
Primeiro, informa-se a venda de uma escrava:
"Vende-se uma escrava que terá 25 anos de idade, sem moléstias nem vícios conhecidos, não tem má figura, o motivo da venda não desagradará ao comprador; para ver e tratar na rua do Comércio, nº 8." (³)
Agora, uma proposta de venda de um escravo que tinha a profissão de alfaiate, o que elevava bastante seu preço, embora os possíveis compradores certamente se perguntassem pela verdadeira razão que levaria a proprietária a dispor de um cativo tão valioso:
"D. Maria José de Alencastro Cezar, moradora na rua da Casa Santa, nº 3, tem para vender um rapaz de nome Miguel, de 22 a 23 anos, bom alfaiate, sem vícios e de muita habilidade. Quem o pretender dirija-se à mesma senhora, ou à rua de S. Bento, ao Ilustríssimo Sr. Benedito Antônio da Luz, para tratar." (⁴)
Saltam aos olhos de quem lê esses anúncios pelo menos dois fatos em relação à lógica do sistema escravista, neste caso em sua versão brasileira: um escravo não tinha, via de regra, qualquer poder de decisão quanto aos rumos de sua vida, o que significa que era obrigado a trabalhar para aquele que, no momento, fosse seu proprietário, de acordo com as condições que esse senhor lhe impunha, o que podia mudar radicalmente tanto para melhor como pior se, por qualquer razão, fosse vendido; finalmente, nota-se (não sem horror) que não havia muita diferença prática entre os anúncios de venda de animais de carga (cavalos, por exemplo) e os de escravos. Ou seja, era inerente à condição de escravo o ser considerado mercadoria, que se podia, portanto, comprar e vender, sem que se lhe permitisse expressar qualquer opinião a respeito.
Essa "lógica" social era brutalmente opressiva, mas não restrita, leitor, apenas aos escravos - que se veja, por exemplo, o modo pelo qual muitos senhores negociavam o casamento de suas filhas e será impossível evitar a constatação de que muito da estrutura social era incompatível com padrões que hoje consideramos indispensáveis à dignidade humana. Ora, se estas coisas coisas provocam, com justiça, um sentimento de indignação, por que é então que ainda se lhes toleram os resquícios que vemos por aí?

(1) AURORA PAULISTANA, 3 de julho de 1852.
(2) AURORA PAULISTANA, 21 de agosto de 1852.
(3) AURORA PAULISTANA, 25 de outubro de 1852.
(4) AURORA PAULISTANA, 29 de agosto de 1852. 
Os textos dos anúncios foram transcritos, segundo padrão neste blog, em ortografia  atual.


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