quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Como colonizadores podiam enriquecer no Brasil

Muitos colonizadores que vieram ao Brasil nos Séculos XVI e XVII apenas pensavam em enriquecer e voltar ao Reino tão rápido quanto possível. Pelas acusações vindas de alguns autores seus contemporâneos, sabe-se que tal gente não tinha qualquer cuidado em preservar o que havia nas terras coloniais, e muito menos em construir algo sólido que pudesse, de fato, ser fundamento para as gerações futuras. 
Mas como, afinal, era possível enriquecer no Brasil desse tempo já distante?
De acordo com o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil (¹), havia pelo menos seis ramos de atividade que favoreciam o enriquecimento, dentre os quais o mais notável era, sem dúvida, a "lavoura dos açúcares":
"{...] digo que as riquezas do Brasil consistem em seis coisas, com as quais seus povoadores se fazem ricos, que são estas: a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira o pau a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados." (²)
Embora o próprio Ambrósio Fernandes Brandão, autor presumível dos Diálogos, fosse um dos que criticavam a conduta predatória dos colonizadores - ele conhecia apenas algumas Capitanias do Norte e, por isso, não tinha muito a dizer sobre as do Sul, como a de São Vicente, por exemplo - pode-se objetar que algumas atividades econômicas por ele listadas não se prestavam a uma produção rápida para breve retorno ao Reino. Era o caso, por exemplo, daqueles que investiam capital considerável na implantação de um engenho açucareiro, que somente chegava a dar lucro depois de alguns anos em funcionamento. Não obstante, houve proprietários de engenho que acabaram deixando alguém, parente ou contratado, para cuidar do empreendimento, possibilitando-lhes, assim, a volta a Portugal, onde cuidavam em negociar o melhor que podiam a produção distante, desfrutando a riqueza dela proveniente. Não era o caso dos lavradores que se dedicavam ao cultivo de mantimentos, cuja produção, prioritariamente, atendia às necessidades locais, e nem de leve oferecia o mesmo lucro e o mesmo status social que se podia obter com a produção açucareira, ao menos em sua fase de maior rendimento. Dos mercadores falaremos outro dia. 

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil, Diálogo Terceiro. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 155.


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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Jogos Agonais

Os romanos atribuíam a Numa Pompílio, o lendário segundo rei de Roma e homem de sabedoria notável, a criação dos Jogos Agonais, que deveriam ser celebrados em honra de Jano (¹) três vezes a cada ano, ou seja, nos meses de janeiro, maio e dezembro.
Ora, alguém perguntará, para que tantos jogos? 
No dizer de Floro, contemporâneo do imperador Adriano, Numa Pompílio "soube dominar aquele povo feroz [os romanos], no qual imperavam a vilania e a injúria, de modo que a religião e a justiça passaram a governar" (²). Que bela descrição da gente romana dos primeiros tempos da cidade!... A instituição dos jogos, portanto, deve ser entendida nesse cenário tão brilhante: O sábio rei pretendia que os turbulentos romanos, pondo de lado a mania de brigar entre si, gastassem as energias em jogos que teriam, ainda, um segundo proveito, como exercício para o combate, caso Roma tivesse de enfrentar alguma guerra. Como se sabe, isso aconteceu com bastante frequência.
Supõe-se que os Jogos Agonais, seriam, remotamente, a origem dos espetáculos de gladiadores que, mais tarde, vieram a ser uma das diversões favoritas em Roma. Mas há uma diferença notável, que nunca deveria ser esquecida: os jogos de Numa seriam destinados a homens livres, que serviam como soldados em defesa da cidade. Gladiadores, contudo, eram, em esmagadora maioria, escravos, que lutavam até a morte para proporcionar um entretenimento brutal aos romanos que, desocupados, apenas esperavam, do Estado, pão e circo. Mudanças vêm com o passar do tempo, meus leitores, e nem sempre tornam o mundo melhor. 

Gladiadores romanos, de acordo com desenho em uma parede em Pompeia (³)

(1) Um dos deuses menores de Roma, representado tradicionalmente com duas faces, olhando em direções opostas. 
(2) Aneu Floro, Rerum Romanarum. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) Cf. SAMPSON, Henry.  A History of Advertising. London: Chatto and Windus, 1874.


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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Caixas para a exportação de açúcar

Os senhores de engenho frequentaram, durante bastante tempo, o topo da pirâmide social no Brasil, mas não foram os únicos a lucrar com a produção e exportação de açúcar. Havia uma série de outras atividades, relacionadas à produção açucareira, que podiam ser bastante lucrativas. Dentre elas, estavam o cultivo de cana-de-açúcar, empreendido pelos chamados "lavradores" que vendiam a safra para algum engenho, a construção de barcos destinados ao transporte fluvial do açúcar até os portos e a fabricação de caixas, nas quais o açúcar era acondicionado para exportação. Sobre essa última atividade, os Diálogos das Grandezas do Brasil (¹) nos informam que:
  • Havia gente especializada em vender as ditas caixas aos senhores de engenho;
  • As caixas eram fabricadas mediante trabalho escravo;
  • A madeira usada para as caixas devia ser mole e fácil de cortar.
Vejamos, então, o que diz o Diálogo Terceiro, quando Alviano interroga Brandônio:
"E os próprios moradores são porventura os que lavram e serram essas madeiras?" (²)
A resposta de Brandônio é bastante reveladora sobre as condições sociais no Brasil do começo do Século XVII:
"Não, porque a gente do Brasil é mais afidalgada do que imaginais; antes a fazem serrar por seus escravos, e há homem que faz serrar em cada ano mil e dois mil caixões de açúcar, que vendem aos senhores de engenho [...]." (³)
Volta a falar Alviano:
"E de que paus se lavram essas madeiras para caixões?" (⁴) 
Brandônio explica:
"Os caixões se fazem de [...] mongubas, buraremas, visgueiro, pau-de-gamela, e um pau que chamam de-alho, e outro branco; e dos tais há diversas castas, porque para caixões se busca madeira mole, por ser mais fácil de serrar." (⁵)
Não era, portanto, apenas na lavoura de cana-de-açúcar ou nas moendas e demais instalações dos engenhos que o sangue e o suor dos escravos faziam funcionar a economia colonial. Também no manejo das serras para corte das árvores e fabricação das caixas, bem como em muitas outras tarefas, era a força de trabalho dos cativos, quer indígenas, quer de origem africana, que, em grande parte, ainda que não exclusivamente, movia a máquina colonial, da qual resultaria o Brasil que hoje conhecemos.

(1) A autoria é atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão, que teria escrito os Diálogos no começo do Século XVII.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 186.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Paraty


Uma publicação do Século XIX, o
Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854, descreveu assim a cidade de Paraty, que durante algum tempo, no Século XVIII, teve grande importância na rota de exportação do ouro que se extraía das Minas Gerais e era enviado a Portugal:
"Acha-se situada em um lugar aprazível e pitoresco [...]. Há 9 ruas que correm do nascente para o poente, que são as seguintes: da Capela, Cadeia, Rosário, Direita, Rocio, Lapa, Nova da Lapa, Santa Rita, Couto; e 6 do Noroeste para o Sul, que são: Fresca, Praia, Mercado, Matriz, Comércio, Craguatá; 4 praças: Municipal, Mercado, Rocio, Pedreira, onde se acha colocado um elegante chafariz de mármore [...]. As casas [...] excedem a 1.200, sendo uma grande parte de sobrado. [...] Há 4 igrejas, a Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, as Capelas de Santa Rita, de Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora das Dores; um hospital de Misericórdia, um teatrinho dramático de uma associação particular e uma sociedade de baile em casa própria." (*)
Há tempos, fiz algumas fotos dessa bela cidade, com seu rico legado arquitetônico colonial. Vejam, meus leitores e, quando puderem, visitem.

Rua colonial com uma curiosa passagem pra uso na maré alta:


Placas de identificação de ruas e de uma praça, o Largo da Pedreira:





Ruas com casario colonial:





Chafariz de mármore:



Igrejas:





Finalmente, uma recordação do tempo em que um conjunto de fortalezas defendia Paraty contra um eventual ataque de invasores ou ladrões do mar:


(*) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854.


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quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Agricultura coletiva nas reduções indígenas comandadas por jesuítas na América do Sul

Existe uma ideia um tanto difundida de que missionários jesuítas, durante os tempos coloniais, teriam tentado estabelecer um Estado próprio no coração da América do Sul, formado por comunidades indígenas em uma espécie de regime comunista. 
Será, mesmo? O assunto é polêmico.
Se dermos crédito ao cônego João Pedro Gay, que viveu em São Borja no século XIX e investigou o assunto, a história pode ser outra. Lembremo-nos, antes de prosseguir, que a catequese, de fato, reunia indígenas em reduções, ou seja, comunidades de indígenas dirigidas por padres. Para os catecúmenos, tudo era novo: atrás ficava seu modo tradicional de sobrevivência, dando lugar ao estilo de vida que os jesuítas ensinavam, com novos hábitos alimentares e uso de vestuário. Até mesmo a disposição das casas em ruas perfeitamente retilíneas e o calendário centrado nas celebrações religiosas significavam uma mudança radical em relação ao modo como, até então, haviam vivido. 
Para viabilizar as reduções, era preciso assegurar um suprimento de alimentos, mediante agricultura e pecuária, praticadas com técnicas que os indígenas desconheciam e que deviam aprender, vivendo agora não mais em grandes casas comunitárias, mas em habitações menores, com familiares mais próximos e, eventualmente, outras pessoas. Pois, bem, de acordo com o já referido cônego João Pedro Gay, a primeira tentativa dos padres para a instrução dos indígenas na agricultura não se deu através de lavouras comunitárias, e sim mediante agricultura familiar: "[...] todos os anos se dava a cada família um terreno suficiente para seu sustento e sementes para plantar [...]. Se o padre que deles cuidava não os obrigasse a entregar-lhe no tempo das colheitas as sementes necessárias de todos os frutos para uma nova plantação, ter-se-iam perdido as sementes em todo o povo." (¹)
Portanto, habituados à coleta, caça, pesca e, em alguns casos, a uma agricultura rudimentar, os indígenas reunidos em reduções tinham certa dificuldade em lidar com a ideia de que era preciso guardar uma parte da produção para plantio no devido tempo, tão contrária a tudo que haviam aprendido no modo tradicional de sobrevivência que anteriormente conheciam. Valia o mesmo quando se tratava de pecuária. Segundo o cônego João Pedro Gay, houve casos em que até bois de arado foram comidos e, quando interrogados quanto a seu paradeiro, os catecúmenos alegaram que, por estarem com fome, haviam abatido os animais.
Teria sido apenas diante desse cenário que os missionários jesuítas resolveram adotar o cultivo coletivo da terra, e, ao menos nesse momento, não por convicções que poderiam ser chamadas de ideologicamente comunistas. Ainda segundo o cônego João Pedro Gay, "[...] não podendo conseguir proveito nenhum do trabalho particular dos índios, os jesuítas deixaram de os fazer trabalhar em lavouras privadas e ocuparam toda a gente do povo nas grandes lavouras e estabelecimentos da comunidade." (²) 

(1) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, p. 186.
(2) Ibid., p. 187.


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