terça-feira, 12 de junho de 2018

Por que vir de tão longe buscar pau-brasil?

"Oh! e quão loucos são e ambiciosos!
Por um pouco de pó, por uma pedra,
Por um tronco de pau, eles se matam
Parece que têm medo que lhes falte
Terra e mar, ar e céu, aves e bosques!"
Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios


"Pau-de-tinta" foi um dos muitos nomes dados ao pau-brasil (Paubrasilia echinata). Na Europa do Século XVI essa notável madeira servia, entre outros usos, à construção naval e à fabricação de móveis e de instrumentos musicais, além do emprego em tinturaria. Foi sua abundância na costa do Brasil que contribuiu para dar à terra algum interesse por parte da Metrópole, uma vez que, nesse tempo, o comércio dos artigos vindos do Oriente tinha, ainda, a preponderância. 
Indígenas cortando pau-brasil com ferramentas
fornecidas por europeus (¹)
Não demorou muito e indígenas do litoral, encantados por objetos trazidos por europeus (tais como facas, tesouras e machados), também se envolveram em cortar madeira e arrastá-la até pontos junto ao mar, chamados arrogantemente de "feitorias", mas que, como regra, não passavam de amontoados de árvores cortadas, cobertas, no melhor dos casos, por alguma simples construção ao estilo indígena, aguardando que embarcações comparecessem para o escambo. Ora, leitores, nem era necessário que portugueses estabelecessem uma dessas feitorias: um relato (ao que tudo indica, verídico), presente no Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, mostra que indígenas, motivados pelo escambo, chegavam a tomar a iniciativa de ir aos navios para oferecer madeira que, por conta própria, haviam preparado:
"A terra é toda chã, cheia de arvoredo. Como nos achegamos mais a terra se nos fez o vento sueste, e no meio-dia surgimos em fundo de onze braças, uma légua de terra. [...]. Este dia vieram de terra, a nado, às naus, índios a perguntar-nos se queríamos brasil."
Deste documento, datado de 3 de fevereiro de 1531, podem ser extraídos dois fatos importantes:
  • O escambo já despertava grande interesse entre os indígenas;
  • Indígenas e portugueses já eram capazes de razoável comunicação, ou não seria o caso de Pero Lopes de Sousa registrar que os "naturais da terra" haviam perguntado se havia interesse por madeira.
Indígenas cortando pau-brasil,
imagem do Século XVI (⁴) 
Sucede que não eram apenas os portugueses que viam no pau-brasil uma oportunidade de comércio e, portanto, de lucro. Navegadores de outras nacionalidades, especialmente franceses, eram assíduos frequentadores do litoral brasileiro, e diante deles as chamadas expedições guarda-costas eram quase inócuas. Jean de Léry (²), em conversa com tupinambás, foi interrogado quanto ao interesse dos franceses pelo pau-brasil - aos nativos da América parecia estranho que europeus viessem de muito longe para buscar lenha com que fazer fogueiras... Coube ao francês explicar que não era para queimar, mas para a extração de tinta que se usava o arabutan.
A incômoda pergunta seria repetida, um pouco mais tarde, a outro francês, o capuchinho Yves d'Évreux (³), que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614:
"Um dia disseram-me alguns [indígenas], que era preciso haver muita falta de madeira em França, e que experimentássemos muito frio para mandarmos navios de tão longe, à mercê de tantos perigos, carregarem de paus.
Respondi-lhes que não era para queimar, e sim para tingir de cores." (⁵)
Leitores, nada de achar graça na questão levantada pelos indígenas. Ignorando completamente como era a vida na Europa, eles apenas podiam imaginar o mundo segundo a vivência que tinham. Era choque de culturas, sim. Pergunto: Não serão muitos dos conflitos atuais, que assolam este mundo, resultantes, também, do quanto ainda desconhecemos em relação àqueles que diferem de nós?

(1) THEVET, André. Cosmographie Universelle vol. 2. Paris: Guillaume Chaudiere, 1575, p. 950.
(2) Francês, esteve no Rio de Janeiro em 1557, na malograda tentativa de estabelecimento da "França Antártica".
(3) Trabalhou como missionário na tentativa de estabelecimento da "França Equinocial", que, à semelhança da "França Antártica", fracassou.
(4) THEVET, André. Les Singularitez de la France Antarctique. Paris: Maurice de La Porte, 1558, p. 117.
(5) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 65.

5 comentários:

  1. Olá professora Marta. Esou procurando informação sobre como o pau Btasil era transportado das matas pelos rios para os navios franceses e talvez protugueses no século dezesseis... Amei seu artigo e tem a melhor imagem que informa tecnicamente como era feito, no caso, sobre o tamanho dos pedações de arvores transportados. Se a senhora tiver mais informações sobre a técnica do transporte na época me interessa.
    tc2015,4@gmail.com
    Agradeçerei.
    Tereza

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    1. Boa tarde, Tereza,
      Em Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil, obra do Século XVI, Jean de Léry descreveu com detalhes o modo como indígenas transportavam o pau-brasil que cortavam, levando-o ao litoral. Vou passar a bibliografia para o seu e-mail. Verifique se chegou, oK?

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    2. Estou tentando enviar e-mail para o endereço que você deixou, mas sempre vem resposta dizendo que o endereço é desconhecido. Verifique, por favor, se o e-mail chegou. Caso contrário, confirme o endereço correto, sim?

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  2. Respostas
    1. Olá, Unknown, obrigada pela visita ao blog e pelo comentário gentil. Apareça mais vezes!

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