terça-feira, 19 de junho de 2018

Escravos ao mar!

A trágica viagem dos escravizados que eram transportados da África ao Brasil


Suponho que os leitores conheçam bem estes versos:

"Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar..."

São, como sabem, de Castro Alves, em O Navio Negreiro. O poema foi escrito em 1869, quase duas décadas depois da abolição definitiva do tráfico (¹) de africanos, portanto. Quem o lê, pode supor que seu jovem autor, escrevendo para impressionar o público que comparecia aos comícios abolicionistas, talvez exagerasse o horror das viagens que, em outros tempos, traziam escravizados ao Brasil. Afinal, era preciso despertar a sensibilidade da opinião popular. Mas não era esse o caso. Nem mesmo o talento do poeta condoreiro seria suficiente para pintar, em palavras, o que fora a perfídia do tráfico.
Em uma obra escrita e publicada no contexto da luta pela proibição da entrada de novos escravos vindos da África, Frederico Leopoldo César Burlamaqui reuniu uma coleção de relatos horripilantes, dentre os quais selecionei dois, apenas para mostrar o que podia acontecer em navios negreiros - ou tumbeiros, como, não por acaso, também eram chamadas as embarcações de traficantes de escravos. Vamos ao primeiro caso:
"Um navio negreiro transportava uma carregação [sic] de escravos, e foi encontrado por um cruzador inglês que lhe deu caça. O traficante, vendo que não podia escapar, para não sofrer as penas da sua pirataria, começou a lançar ao mar toda a sua carregação, de sorte que apenas o cruzador pôde salvar poucas vidas." (²)
Escravos recém-chegados
ao Rio de Janeiro,
de acordo com Thomas Ender (⁶)
Agora, o segundo episódio:
"Não há muito tempo que um fato horroroso teve lugar em uma das províncias (³) do Império [...]. Viu-se de terra estarem lançando ao mar, de um navio de negros, alguns tonéis; estes tonéis continham os escravos ainda vivos, atacados do mal de Luanda (⁴), que o capitão, para evitar o contágio dos outros, fazia perecer nas ondas!" (⁵)
A obra de Burlamaqui era, explicitamente, propaganda abolicionista. Aos que acham que seu autor talvez exagerasse, pergunto: teria ela alguma força se, em lugar de se ater aos fatos, apresentasse mentiras?

(1) Pela Lei Eusébio de Queirós, em 1850.
(2) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 12.
(3) Em nota de rodapé, Burlamaqui informou que o incidente ocorrera em 1834, ao largo do litoral rio-grandense.
(4) Escorbuto. Além de tudo, a morte desses infelizes em nada impedia que outros manifestassem a doença, decorrente da carência de vitamina C.
(5) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Op. cit., p. 12. (6) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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