quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Uniformes esportivos no início do Século XX - Parte 2

Vamos prosseguir com o tema iniciado na postagem anterior, o dos uniformes esportivos que eram usados nas primeiras décadas do século XX. Portanto, quem não leu a Parte 1 deveria fazê-lo, pois nela já tratamos do vestuário para futebol, remo e canoagem, esgrima e hipismo. Continuaremos, a seguir, com outras modalidades:

5. Ciclismo - As bicicletas, tidas inicialmente como brinquedos de crianças, logo provaram seu valor como meio de transporte e para atividades esportivas. A foto abaixo nos mostra que muitos atletas já se preocupavam em usar alguma proteção para a cabeça e que as próprias bicicletas de competição já tinham, em seu design, alguma semelhança com as atuais. O detalhe pitoresco fica por conta do fato de que, nessa prova, houve, paralelamente, uma corrida de motocicletas.

Imagens de uma prova ciclística (¹)

6. Corrida Pedestre - Virtualmente tão antigas quanto a humanidade, as corridas sempre tiveram muitos adeptos, não só pelas vantagens no que se refere ao condicionamento físico como pela facilidade da prática que não requer muitos equipamentos especializados - havia até competidores que preferiam correr descalços.

Chegada de uma corrida pedestre (²)

7. Tênis - Já com muitos praticantes no Brasil do início do século XX, o tênis daquela época impressionaria os atletas de hoje pelos trajes que vestiam em quadra os tenistas do passado. Na primeira foto, dois rapazes; na segunda, homens e mulheres disputando um campeonato.

Os dois rapazes de paletó escuro são tenistas, após a disputa de uma partida (³)

Imagens de um campeonato de tênis disputado no Velódromo Paulista (⁴)

(1) A CIGARRA, 1º de abril de 1919.
(2) A CIGARRA, segundo número de março de 1920.
(3) A CIGARRA, 9 de novembro de 1916.
(4) VIDA MODERNA, 23 de abril de 1914.



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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Uniformes esportivos no início do Século XX - Parte 1

Atendendo a pedidos, esta pequena série de três postagens versará sobre os uniformes esportivos que eram usados no início do século XX. É verdade que este blog já tem duas séries relacionadas aos esportes nessa época ("Os Esportes no Brasil do Século XIX e Início do Século XX" e, especificamente sobre futebol, "Futebol no Brasil no Início do Século XX"), cuja consulta poderia ser útil a quem está interessado no assunto dos uniformes, mas aqui o leitor poderá visualizar, a partir de fotos publicadas em revistas das duas primeiras décadas do século XX, como se vestiam os praticantes de atividades esportivas.
Cabem, antes de prosseguirmos, algumas considerações gerais:
a) Há modalidades em que se vê, claramente, o padrão que, acompanhado do desenvolvimento tecnológico, é seguido até hoje;
b) Em outros casos, se não houvesse legenda, seria quase impossível identificar a modalidade praticada;
c) Não se deve esperar encontrar qualquer referência às grandes marcas do mundo esportivo da atualidade: isso é coisa posterior e, inicialmente, nem colocavam algum logotipo nos uniformes, como agora se usa;
d) Embora, na época, o recato no vestuário fosse uma questão inegociável, vê-se que os homens tendiam a usar trajes que, de algum modo, ressaltassem as formas atléticas, enquanto que, das mulheres, esperava-se que cobrissem o corpo e, se possível, o corpo todo, como as fotos mostrarão.
Isto posto, vamos às modalidades:

1. Futebol - Chegado há pouco ao Brasil, cresceu exageradamente na segunda década do século XX, tanto no que se refere ao número de praticantes quanto em admiradores, os "torcedores", que iam em massa às partidas. E ninguém pense que as torcidas eram compostas apenas de homens. Futebol, nesse tempo, era programa de família e as senhoritas eram particularmente interessadas nos confrontos.

Equipe de futebol do C. A. Paulistano (¹)

2. Regatas (Remo e Canoagem) - Essas modalidades já foram muito populares no Brasil, mas perderam espaço para outros esportes. A foto abaixo dá uma ideia de como se vestiam os praticantes.

Regatas, com praticantes de ambos os sexos (²)

3. Esgrima - Praticada principalmente por militares, era considerada parte importante na formação de oficiais. A mudança do perfil da guerra faria dela, aos poucos, apenas mais um esporte.

Lição de esgrima no Quartel da Luz, na cidade de São Paulo (³)

4. Hipismo - Outra modalidade que, no passado, já foi bastante associada às atividades militares. Tornou-se mais "civil" quando a cavalaria perdeu espaço como recurso importante de combate.

Um cavaleiro e seu cavalo realizando um salto (⁴)

(1) A CIGARRA, 26 de junho de 1917.
(2) A CIGARRA, 11 de maio de 1915.
(3) A CIGARRA, 23 de novembro de 1914.
(4) A CIGARRA, 14 de dezembro de 1914.


sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz Natal, com Albrecht Dürer e "Maria mit dem Affen"

Ao contrário do que muitos pensam, os mestres renascentistas, de um modo geral, não puseram de lado, em suas obras, as temáticas religiosas. O simples fato de serem, muitos deles, apaixonados pelo que conheciam da arte e do universo greco-romanos, não significou o abandono dos assuntos bíblicos. Apenas adicionou um novo repertório às suas possibilidades de expressão artística. Aliás, o mundo em que viviam girava, em muitos de seus aspectos, ao redor de um eixo, por assim dizer, religioso. Por isso, quase não há artista do Renascimento, seja italiano ou de outra nacionalidade, que não tenha, em alguma de suas obras ou em várias delas, retratado, por exemplo, Maria com Jesus, ainda menino, nos braços. É o caso de Albrecht Dürer,  alemão de Nürnberg que, como muitos outros grandes nomes de sua época, interessou-se por uma grande variedade de ramos do conhecimento, deixando livros até sobre anatomia, engenharia militar e estudos de simetria (um assunto que seus contemporâneos amavam), mas sendo hoje mais famoso como artista plástico. Tinha, a seu favor, o fato de poder imprimir suas obras, em tempos nos quais imprimir livros começava a ser um grande negócio, atingindo um público muito maior de leitores-consumidores do que aquele que, nos séculos anteriores, tinha acesso a obras de arte, por assim dizer, somente "ao vivo".
Em tempos anteriores ao moderno desenvolvimento da pesquisa histórica e arqueológica, era comum que os grandes artistas, neste caso os do Renascimento, representassem cenas ambientadas na Antiguidade em meio ao panorama típico dos séculos XV e XVI. Observa-se isso facilmente em obras dos grandes mestres italianos, e, na Alemanha de Dürer, as coisas seguiram pelo mesmo caminho.


Ora, seguindo esta lógica, não chega a ser surpresa encontrar, nesta gravura de c. 1506, Maria e Jesus em meio a um cenário natural e arquitetônico bem germânico. O que causa espanto e de germânico não tinha nada, nem teria em nosso tempo, a não ser em jardins zoológicos, é o espécime animal que se encontra no canto inferior esquerdo. Consegue identificá-lo, leitor? Essa gravura é usualmente chamada "Maria mit dem Affen". Conclusão: é um macaco...
Quem achar que não é muito parecido com um símio deve lembrar-se de que, no século XVI e mesmo muito depois, as pessoas não costumavam ter muita intimidade com animais não nativos de sua região, e Albrecht Dürer, com alta probabilidade, nunca tinha visto um. Esse desconhecimento não acontecia somente na Europa. Basta recordar, a título de exemplo, da reação de verdadeiro espanto dos nativos da América diante dos primeiros cavalos que viram. Lembra também, de certa forma, o terror do exército romano, na Antiguidade, diante dos elefantes de Pirro ou de Aníbal.


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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A celebração do Natal no Brasil do Século XIX

O tipo de celebração do Natal que alguém escolhe depende, ao menos em parte, da tradição religiosa que se tem (ou que não se tem). Em um país multicultural como é o Brasil, existe um verdadeiro amálgama de costumes relacionados aos festejos natalinos, formado principalmente a partir do enorme afluxo de imigrantes desde fins do século XIX até cerca da metade do século XX. Disso resulta uma grande variedade de tradições quanto aos alimentos típicos da data, aos hábitos no presentear e, talvez por algo que já tenha sido uma certa nostalgia da terra de origem, uma tentativa de reviver no verão do Hemisfério Sul o inverno europeu, tentativa essa que, reforçada por interesses comerciais, resulta, às vezes, em hilariantes espetáculos de neve artificial sob o mais tórrido sol de dezembro. Isso explica, também, porque em muitos presépios, por exemplo, as personagens vestem trajes típicos do início da era moderna, não relacionados, pois, às origens do Natal.
Como descobrir, no entanto, quais eram, no Brasil, os hábitos associados ao Natal antes disso, antes que o fenômeno da imigração e a aceleração das comunicações tornasse a celebração do Natal um tanto padronizada, ao menos no Ocidente?
Há vários caminhos possíveis, e seguiremos, nesta postagem, dois deles: as imagens da época e a literatura.
Começando pela literatura, selecionei dois trechinhos, um de Alencar, outro de Machado. O primeiro deles, que aparece em O Tronco do Ipê, é interessantíssimo por mostrar toda a azáfama da preparação da festa de Natal em um ambiente rural, de fazenda - quase podemos ver a alegria dos que preparam enfeites, a pressa de quem trabalha na cozinha (o que nos permite investigar o que seria servido); quase podemos ouvir o som das músicas que vão sendo ensaiadas. É só ler:
"Era antevéspera de Natal. Na Casa Grande tudo estava em movimento e rebuliço com os preparativos da festa. À exceção da baronesa, a quem nada podia arrancar de sua fleuma desdenhosa, cada uma das pessoas da fazenda se ocupava em qualquer dos vários arranjos para a função do Natal que esse ano prometia ser ainda mais chibante do que de costume.
Alice, que dirigia os aprestos, distribuíra a cada um sua tarefa, da qual não escaparam nem o dono da casa, nem os hóspedes. O barão fora encarregado de escrever nos rótulos de prata das garrafas os nomes dos vinhos e fazer as encomendas para a Corte. O conselheiro devia dar uns versos para a cantiga do Natal. D. Luísa e Adélia recordavam ao piano as músicas de canto e dança. D. Alina se incumbira do arranjo dos quartos para os convidados. Lúcio e Frederico, armados ambos de tesoura, recortavam papel dourado, prateado e de várias cores, destinado a fazer rosetas para os castiçais, ou mangas para os presuntos e pernas de carneiro."
(¹)

Muito significativo, não? O segundo trecho que escolhi aparece em um conto de Machado de Assis,  e traz em si a revelação de que, ao menos em alguns casos, até mesmo os escravos podiam ser incluídos na celebração de Natal, recebendo algum presente, ainda que modesto:
"Quatro dias antes do dia marcado para o meu casamento, era a festa do Natal. Minha mãe costumava dar festas às escravas. Era um costume que lhe deixara minha avó. As festas consistiam em dinheiro ou algum objeto de pouco valor." (²)
Finalmente, no que se refere às imagens de época, há uma gravura muito curiosa e, para nossos olhos do século XXI, até divertida. É de Debret, e tem por título "Presentes de Natal" (³):


(1) ALENCAR, José de. O Tronco do Ipê.
(2) ASSIS, J. M. Machado de. Mariana.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. 
O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Como os povos da Antiguidade determinavam o solstício de verão

Muito do conhecimento obtido por povos da Antiguidade provinha da observação de fenômenos que ocorriam na natureza e, embora quase sempre uma divindade fosse associada ao que acontecia, a depuração de tudo isso resultou em um corpo de informações razoavelmente corretas, que estabeleceram as bases para o que, no futuro, viria a ser chamado de ciência, ao menos pelos nossos padrões. É o caso, por exemplo, da constatação das datas dos solstícios de verão e inverno, com o consequente estabelecimento de calendários.
Há quem se pergunte como era possível que povos "tão primitivos" fossem capazes de determinar, com alguma precisão, as datas dos solstícios, mas, como veremos, a coisa não é tão complicada quanto parece.
É fácil verificar que eram muito numerosos os povos que tinham festividades, geralmente englobando aspectos religiosos, para celebrar a passagem dos solstícios, particularmente o de verão, e a razão para isso é que não era preciso um alto grau de sofisticação técnica para descobrir as datas corretas - bastava, como instrumental, somente uma vareta fixada verticalmente no solo, sobre a qual incidia a luz do sol ao meio-dia, projetando uma sombra que variava ao longo do ano. Foi assim que constatou-se que a sombra chegava à sua menor extensão em data correspondente ao solstício de verão, voltando a crescer e atingindo sua máxima extensão por ocasião do solstício de inverno.
A partir daí, leitor, era relativamente simples chegar-se ao estabelecimento de um calendário, bastando, para isso, fazer a contagem dos dias que transcorriam de um solstício de verão a outro. Feita a conta, chegava-se a aproximadamente 365 dias, razão pela qual tantos calendários do passado têm esse número de dias ou algo semelhante a ele como seu ano-base. Evidentemente esse número, ainda que próximo da realidade, não é exato, daí surgindo a necessidade de algum fator de correção, que a continuidade das observações acabou por proporcionar a muitas civilizações, como os meses intercalares que se incluíam na contagem do tempo.
Haveria outras formas de determinação de um calendário? Sim, com menor precisão. Um ótimo exemplo é o que se relata a respeito de vários povos indígenas do Brasil, que, ao que parece, desconheciam os cálculos dos solstícios de verão e inverno, mas determinavam a passagem do tempo pela época do ano em que amadureciam determinadas frutas. Além disso, as fases da Lua eram também importantes para determinar o correr do tempo.


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domingo, 18 de dezembro de 2011

Os paulistas e seus hábitos alimentares na primeira metade do Século XIX

É lamentável, mas não há como retornarmos ao passado para bisbilhotar o que se fazia ou como vivia a gente de outros tempos. Tudo o que sabemos depende, em altíssimo grau, da existência dos chamados "documentos históricos", que nos permitem, até certo ponto, reconstituir como as coisas funcionavam, ainda que o façamos com nossos olhos do século XXI. A dificuldade é maior do que a que se tem ao entrar em contato com uma cultura diferente: nesse caso, pode-se "dar um mergulho" na cultura que se quer estudar, vivenciando a vida diária das pessoas que a compõem e/ou adotam, enquanto que, no que se refere ao passado, essa possibilidade não está, evidentemente, ao nosso dispor (¹).
Ora, meus leitores, os documentos históricos, por melhores e mais confiáveis que sejam, podem nos dar uma visão apenas parcial daquilo que se investiga, e nesta postagem veremos um caso assim.
Contratado como um dos desenhistas da Expedição Langsdorff, Hércules Florence foi enviado a São Paulo para empreender os preparativos para essa viagem de caráter científico que, partindo de Porto Feliz, exploraria o interior do Brasil. Ao entrar em contato com moradores da cidade de São Paulo, anotou em seu diário algumas observações muito interessantes, tais como esta, em que fala dos hábitos alimentares da população:
"Hospitaleiros, francos e amigos dos estrangeiros, são em extremo sóbrios, bebem muito pouco vinho e mantêm mesa simples, mas agradável. As principais comidas são frango, leitão assado ou cozido e ervas, tudo porém acepipado com um condimento que excite o apetite. Não comem pão: em seu lugar usam da farinha de milho ou de mandioca que sabem preparar com perícia, alva como leite, e muito boa ao paladar." (²)
Muito bem, quem ler este trecho irá, provavelmente, entreter a melhor visão possível sobre os paulistas da época. A verdade, no entanto, é que a opinião geral, pelo que sabemos de muitos outros documentos (inclusive por outras anotações do mesmo Hércules Florence) é que os paulistas eram tidos como gente vingativa, aferrada a questões de honra, de difícil relacionamento (³), e isso em grande medida graças à imagem popular a respeito dos antigos bandeirantes. Já quanto ao caso do pão, que Florence afirma não ser consumido, a razão para não vê-lo na mesa era que havia uma certa dificuldade em encontrar trigo para o preparo. Lavouras de trigo haviam existido, mas a necessidade da contratação dos serviços de moinhos fazia com que a Câmara Municipal de São Paulo vivesse às turras com os moleiros em tempos anteriores, o mesmo acontecendo em relação aos serviços dos padeiros, cuja idoneidade no peso do produto que vendiam era frequentemente questionada, de modo que só mais tarde, com o desenvolvimento dos transportes, é que se normalizou o fornecimento de trigo para panificação. Como se vê, a leitura de um único documento pode dar uma noção errada dos fatos. A comparação com outros é não só desejável, como necessária.
Entretanto, servindo-nos ainda da valiosa contribuição dos registros de H. Florence, veremos que ideia fazia esse artista da hospitalidade brasileira, um assunto já hoje muito estudado por historiadores e sociólogos. Escreveu ele:
"Fui hospedar-me em casa de um parente de um de meus dois companheiros de viagem, primeiro teto brasileiro em que fruí as doçuras da hospitalidade e daí por diante tive sempre ocasião de reconhecer os cuidados afetuosos e tocantes com que o povo brasileiro exercita este dever de caridade. Sem dúvida alguma é ele muito mais hospitaleiro do que qualquer outro da Europa e há sua razão para isso. Aqui a terra produz muito mais alimento do que podem os habitantes consumir." (⁴)
Algumas perguntas fazem-se indispensáveis: Eram todos os brasileiros hospitaleiros? Sempre recebiam bem os estrangeiros? Todo estrangeiro era bem recebido? Isso ocorria em todo o Brasil ou era mais frequente em alguns lugares que em outros? Que outros registros há relacionados a este? Como se vê, apenas a discussão deste único tópico pode ir bem longe!
Para concluir, vejamos uma outra anotação de Hércules Florence. Seguindo a viagem, faz algumas considerações sobre uma especialidade culinária muito difundida em São Paulo e que, segundo conta, chegou a apreciar, a canjica:
"Sempre com os meus dois companheiros, parti de São Paulo e fiz dez léguas de marcha para alcançar Jundiaí. A meio caminho, paramos junto a um ribeirão chamado Juqueri, que rola em suas areias partículas de ouro. Aí tomamos refeição numa casinha, onde pela primeira vez comi milho descascado e cozido sem sal, nem preparo algum. É a canjica, de que os paulistas fazem sempre uso no fim da comida. A princípio achei esse manjar singular, mas com o correr dos tempos habituei-me tanto a ele como se fora natural do país. Com açúcar e leite é coisa deliciosa." (⁵)

(1) Veja, sobre essa questão, a postagem "O uso de documentos históricos no trabalho do historiador".
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 14.
(3) Há uma citação de von Martius, mencionada por Capistrano de Abreu em Capítulos de História Colonial que expressa muito bem essa ideia:
"O paulista goza em todo o Brasil da fama de grande franqueza, impavidez e amor romanesco às aventuras e perigos. Associa a isso um temperamento apaixonado, que o leva à cólera e à vingança, e seu orgulho e inflexibilidade são temidos pelos vizinhos."
Deve-se entender que essa era a opinião popularmente difundida, que não tinha, obrigatoriamente, que corresponder à realidade, principalmente para efeito de consideração de casos particulares.
(ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, p. 208.)
(4) FLORENCE, Hércules. Op. cit. p. 14.
(5) Ibid., p. 15.


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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

As lavouras nas proximidades das Minas do Cuiabá e o que nelas se cultivava

Quem viajava pela rota das monções até as Minas do Cuiabá tinha de levar boa quantidade de suprimentos. Como já se explicou em postagem anterior, esses suprimentos quase sempre acabavam antes do final da viagem e, por vezes, a fome era uma companhia extremamente cruel aos esfomeados do ouro. Por isso, aos poucos foram surgindo roças a distâncias não muito grandes das minas, nas quais os monçoeiros podiam comprar algum mantimento para amenizar as dificuldades da longa jornada que haviam empreendido.
A pergunta é: Por que roças somente tão perto de Cuiabá, e não mais longe, já que eram tão necessárias e certamente haveria compradores para a produção?
Primeiro, as roças não eram vistas como uma prioridade - importante, mesmo, era a busca pelo ouro e, nesse sentido, poucos eram os que se dispunham a desenvolver algum tipo de cultivo. Quando isso acontecia, era interessante estar perto do núcleo de povoação, pois os preços que nas minas se pagavam por gêneros alimentícios eram extremamente altos.
Bananeira, segundo gravura de Debret (*)
Além disso, havia uma outra razão para que a lavoura não se fizesse muito longe da povoação: os confrontos com a população indígena foram, nessa área, particularmente violentos. Inconformados com a presença de "gente nova" em áreas que consideravam como suas, os índios atacavam as roças, levavam a colheita, queimavam casas e outras instalações e, muitas vezes, matavam senhores e escravos que ali viviam (não se surpreenda, leitor: os povoadores não agiam de modo muito diferente). Daí se vê que, por razões defensivas, os agricultores não queriam tentar o estabelecimento de plantações muito distantes, ainda que os monçoeiros muito procurassem por alimentos em seu caminho. Há relatos de gente que foi cultivar áreas distantes e que conseguiu fazê-lo por certo tempo, até que uma monção, por ali passando (em intensa expectativa de comprar novos suprimentos), constatava estar tudo completamente destruído pelas chamas e, para horror geral, chegava-se a avistar ossadas humanas expostas, talvez como uma espécie de advertência.
Sendo as coisas assim, o que se cultivava nas roças existentes nas imediações nas minas? A lista não é muito extensa e inclui, como não poderia deixar de ser, aquilo que produzia sem muita dificuldade: milho (com uma infinidade de aplicações), mandioca (principalmente para se fazer farinha), feijão, batata, melão e melancia, banana e, certamente não para atender necessidades alimentares, fumo. Rotineiramente, criavam-se galinhas e porcos e, algumas vezes, cabras também. Não era muito, mas era disso que se abastecia a população mineradora em Mato Grosso, uma vez que, ao contrário do que ocorria nas Gerais, em que grande parte dos suprimentos vinha de longe, nas costas das mulas dos tropeiros, aqui já não havia essa possibilidade. A distância dos maiores centros de povoação era muito maior e, até por restrições governamentais para evitar o contrabando de metal precioso não quintado, um caminho terrestre que fosse praticável demorou a ser estabelecido.

(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Haja apetite! Alimentos embarcados na monção do governador Rodrigo César de Meneses em 1726

A alimentação de monçoeiros - pobres ou ricos - foi assunto da postagem anterior. Houve, no entanto, exceções à regra absolutamente notáveis. Uma delas foi o excelentíssimo senhor governador capitão-general Dom Rodrigo César de Meneses, obrigado, por ordens de Sua Majestade, o rei de Portugal, a deixar São Paulo, empreendendo a duríssima viagem até Cuiabá, isso em 1726.
Acontece que esse homem não era daqueles que perderiam a pose, mesmo metido em estreita embarcação meses a fio. Por isso, levou consigo gente que cuidasse de tornar sua vida tão cômoda quando fosse possível e, naturalmente, farta matalotagem para satisfazer-lhe o voraz apetite. Seu secretário, Gervásio Leite Rebelo, teve o cuidado de tudo registrar com o máximo critério, de modo que eis aí a lista de tudo o que se embarcou para alimentação específica do governador, assegurando-lhe não ser torturado, diariamente, com o mesmíssimo virado à paulista que se preparava para os demais:

Grãos (não se especificam quais) ............................................ 4 alqueires

Aletria ............................................................................................ 7 arrobas

Cuscuz .......................................................................................... 4 arrobas

Manteiga ....................................................................................... 7 arrobas

Peixe seco ................................................................................... 4 arrobas

Doces ........................................................................................... 8 arrobas

Chocolate ..................................................................................... 4 arrobas

Marmelada ................................................................................... 144 caixas

Biscoitos ....................................................................................... 6 barris

Paios ............................................................................................. 2 barris

Queijos .......................................................................................... 60 unidades

Azeite de oliva ............................................................................. 5 barris

E, para que o digno representante de sua majestade "matasse a sede", embarcaram-se também:

Vinho .............................................................................................. 8 barris

Aguardente do Reino, ou seja, de uva ...................................... 8 frasqueiras

Aguardente da Terra, ou seja, de cana-de-açúcar .................. 3 barris

Para os demais integrantes da dita monção, foi embarcada uma grande quantidade de farinha (150 alqueires de farinha de milho e 100 de farinha de mandioca, além de 23 alqueires de farinha de trigo, o que era pouco usual), 65 alqueires de feijão e 12 porcos.
Ainda assim, o estrito secretário de Dom Rodrigo César de Meneses registrou que o fim da viagem, concluída a 15 de novembro de 1826, se fez sob muita falta de alimentos, a ponto de os remadores estarem bastante enfraquecidos. Nenhuma surpresa, já que eram eles que realizavam o mais árduo trabalho e os que, com frequência, menos cuidados recebiam.


domingo, 11 de dezembro de 2011

Alimentos que os monçoeiros levavam em viagem pelo Tietê e outros rios

Embora confiassem encontrar caça e peixe pelo caminho, os monçoeiros que desde Araraitaguaba (Porto Feliz) partiam para as minas do Cuiabá pela rota do rio Tietê precisavam de considerável volume de suprimentos para a longa jornada. Assim, era rotina que, para "pessoas comuns", a matalotagem consistisse, basicamente, em feijão, farinha de mandioca e/ou farinha de milho, um pouco de toucinho e, obviamente, sal - ingredientes que eram usados a cada noite, ao ser preparada a comida do dia seguinte e que, em seu conjunto, originaram o "virado à paulista". A razão do nome fica portanto evidente, e ilustra muito bem como, de circunstâncias adversas, como eram as da rotina monçoeira, pode nascer uma especialidade culinária. Aliás, os chamados pratos típicos do Brasil encerram uma variedade de casos análogos. Aos que se interessam pelo assunto, digo que consultei um famosíssimo livro de receitas, muito popular no Brasil, que lista quase os mesmos ingredientes para o virado à paulista, apenas usando óleo e temperos diversos e sugerindo algumas guarnições, como ovos fritos e linguiças...
Os escravos remadores e a gente pobre que sonhava enriquecer com o ouro das minas não tinham a possibilidade de complementar a alimentação praticamente igual a cada dia, a menos que por sorte lhes caísse nas garras alguma caça. Se a infeliz vítima era uma anta (¹), então havia festa geral, com o churrasco inesperado seguindo noite adentro.

Araraitaguaba, o local de onde partiam as monções (Porto Feliz, SP)

No entanto, se o monçoeiro era endinheirado (havia quem arriscasse os bens para tentar fortuna maior nas minas, ainda que fosse muito comum que alguém se desse por muito feliz se pudesse voltar com a vida e uns trapos sobre o corpo), podia incluir, por conta própria, outros itens em sua ração diária, desde que fossem passíveis de conservação, como biscoitos e presuntos. E não imagine o leitor que isso gerava constrangimentos entre os viajantes: nesses tempos anteriores à influência da Revolução Francesa as diferenças sociais eram vistas como coisa normal, que não se devia questionar, e sim aceitar. Nascia-se assim, e ponto final. Qualquer ideia fora disso era olhada com horror, e os poucos que ousavam expressar pontos de vista contrários eram tidos como uma espécie de lepra social altamente contagiosa e, por isso mesmo, perigosíssima, da qual gente decente devia fugir, e o Estado, zelando paternalmente, exterminar. A igualdade, porém, às vezes comparecia sob a forma da fome que acometia a todos, indistintamente, quando os alimentos acabavam ou se perdia uma embarcação que os transportava. Sobre isso, escreveu o secretário de D. Rodrigo César de Meneses, que foi a Cuiabá em 1726: "... tanto mais se quer antes perder um negro, sendo estes tão necessários, que um alqueire de mantimento, feijão ou farinha." (²) Malgrado a óbvia desvalorização da vida de um ser humano que transparece neste registro, vê-se o quanto o fantasma da falta de comida atormentava os monçoeiros. (³)
Exceções a essa regra geral sobre alimentação? Sim, podia haver. Sabemos pelo relato feito pelo Conde de Azambuja, Dom Antônio Rolim, que empreendeu a rota monçoeira em 1751, que usava-se levar algumas galinhas (vivas) para servirem de alimento (mortas, naturalmente) aos que adoecessem em razão das agruras da viagem. Fora disso, embarcava-se alguma cachaça, cuja utilidade oficial era a de medicamento em caso de picada de cobra. (⁴)
(2) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas vol. 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 117.
(3) A postagem "Cobras, lagartos e outros bichos - De que se alimentava a população das minas coloniais quando faltava comida" trata do assunto da falta de alimentos entre monçoeiros e mineradores.
(4) Jamais tente isso, leitor. Evite picadas de cobra, mas se isso acontecer, recorra imediatamente ao soro apropriado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cobras, lagartos e outros bichos - De que se alimentava a população das minas coloniais quando faltava comida

Afoitos pela busca do ouro, os mineradores estabelecidos precariamente nas Gerais enfrentaram, por vezes, situações extremas de falta de alimentos. Há relatos de alguns que, na ausência de suprimentos adequados, acabaram comendo lagartixas, lagartos, cobras, içás e lagartas encontradas na madeira apodrecida de algumas árvores. A febre das riquezas que podiam vir rapidamente levava multidões ao esquecimento de uma das mais básicas condições para a sobrevivência, ou seja, a necessidade de que fossem estabelecidas lavouras dos gêneros necessários ao sustento de tanta gente.
Já nas minas de Cuiabá uma série de fatores veio a contribuir para que a fome grassasse no ano de 1725, levando a população mineradora às raias do desespero, em decorrência da falta geral de víveres. Sem poder contar com o abastecimento que vinha de longe, já que uma monção que devia conduzi-los foi exterminada em combate com indígenas, restava à população sobreviver apenas de produtos locais. Ocorre que, a despeito de neste caso haver roças, duas pragas terríveis - de ratos e de gafanhotos - destruíram praticamente toda a safra de milho e feijão. Nos extremos da penúria, consta que um frasco de sal chegou a ser cotado a meia libra de ouro, enquanto que um casal de gatos (para combater os ratos) foi vendido por nada menos que uma libra (¹).
Um século mais tarde, fazer a jornada fluvial pela mesma antiga rota das monções podia, ainda, significar a necessidade de "adaptação" a alimentos que pareciam ser algo estranhos, conforme sabemos pelo relato de um dos desenhistas da Expedição Langsdorff, Hércules Florence:
"Deixando a monção continuar a subir o rio com a habitual lentidão, fomos, eu e os Senhores Riedel e Taunay, por terra umas duas léguas até ao salto do Corau. Não leváramos senão uma espingarda de caça, algumas cargas de chumbo fino, uma bala e dois biscoitos que constituíram nosso jantar. Chegamos antes do pôr do sol ao salto, demo-nos pressa em formar provisório abrigo com folhas de palmeira guacuri. Felizmente matou o Sr. Taunay um lagarto que nos serviu de ceia e que a fome transformou em manjar suculento. Deparou-se-nos também um cacho de bananas que pendia de raquítico tronco. Caso houvessem estado maduras, não teriam escapado à gente de Costa Rodrigues: por incomíveis as deixaram, mas nosso apetite era tal que, assadas assim mesmo verdes, foram regalo precioso." (²)


(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 63.


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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Os preços dos alimentos nas minas de ouro do Brasil Colonial no início do Século XVIII

A corrida às minas de ouro conhecidas como "Gerais" nos últimos anos do século XVII e primeiras décadas do século XVIII provocou uma elevação brutal nos preços dos gêneros alimentícios em boa parte do Brasil - nas minas quase nada se cultivava e, desse modo, os gêneros de subsistência para ali direcionados chegavam a preços absurdos, quer por sua óbvia falta, quer pela dificuldade de transporte e, nas áreas produtoras, escasseavam e subiam de preço em virtude da "exportação".
A população das minas, predominantemente urbana, cresceu muito depressa, sendo composta por empreendedores da mineração e sua multidão de escravos, além de faiscadores livres, comerciantes, funcionários públicos e outros mais. Consta, em virtude desse fato, que tão ricos quanto alguns mineradores (e com menor risco nos negócios) tornaram-se alguns comerciantes de gêneros alimentícios e artigos básicos de vestuário. Qual o segredo? Recebiam sempre em ouro, sem ter de provar a sorte na procura da riqueza que se arrancava da terra com o suor da escravaria.
Sobre os preços alcançados pelos alimentos nessas circunstâncias existe o excelente relato de Antonil (c. 1711), a partir do qual tem-se a tabela abaixo:

Alimentos consumidos nas minas e seus respectivos preços, de acordo com Antonil (¹)
uma rês ...................................................................... 80 oitavas (²)
um boi ....................................................................... 100 oitavas
sessenta espigas de milho ......................................... 30 oitavas
um alqueire (³) de farinha de mandioca .................... 40 oitavas
seis bolos de farinha de milho ................................... 3 oitavas
um paio ...................................................................... 3 oitavas
um presunto de oito libras (⁴) .................................... 16 oitavas
um pastel pequeno ..................................................... 1 oitava
uma libra de manteiga de vaca .................................. 2 oitavas
uma galinha ............................................................... 3 ou 4 oitavas
seis libras de carne de vaca ....................................... 1 oitava
um queijo da terra ..................................................... 3 ou 4 oitavas
um queijo flamengo ....................................................16 oitavas
um queijo de Alentejo ............................................... 3 ou 4 oitavas
uma caixa de marmelada ...........................................3 oitavas
um frasco de confeitos de quatro libras ................... 16 oitavas
uma arroba (⁵) de açúcar .......................................... 32 oitavas
um barril pequeno de azeite ..................................... 2 libras

Note-se, mais uma vez, que tudo se cotava em ouro, não em moeda corrente. Observe-se, também, a exorbitância dos preços, já que, muitas vezes esfomeados, os mineradores pagavam o que se lhes pedia por comida, havendo não poucos registros de gente que morreu de fome, por absoluta falta de víveres, ainda que rodeada de ouro.
Assim como na matalotagem dos navegantes, também nas minas eram consumidos alimentos que podiam suportar o transporte em estado satisfatório de conservação (ao menos para os padrões da época) e, antes que alguém faça objeções, lembro que o gado era conduzido vivo por tropeiros até o local do abate, não sendo, por isso, uma exceção. Mais tarde o charque resolveria, em parte, esse incômodo.

Lavagem do ouro nas minas (⁶)

(1) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. 1711. 
(2) 1 oitava corresponde a cerca de 3,58 gramas.
(3) 1 alqueire corresponde a 13,8 litros.
(4) 1 libra corresponde a 0,453 gramas.
(5) 1 arroba corresponde a cerca de 14,7 quilogramas.
(6) TAUNAY, Hippolyte et DENIS, Ferdinand. Le Brésil, ou Histoire, Moeurs, Usages et Coutumes des Habitants de Ce Royaume, vol. 3. Paris: Nepveu, 1822.


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domingo, 4 de dezembro de 2011

Técnicas antigas de conservação de alimentos para viagens marítimas

Quem leu a postagem anterior deve ter considerado que os marinheiros de antigamente tinham, de ordinário, um passadio até confortável. Ledo engano. Como veremos a seguir, os métodos de conservação dos alimentos eram detestáveis, de modo que não bastava embarcar suprimentos adequados e em quantidade suficiente.
Lucas Rigaud, cozinheiro que trabalhou para várias casas reais europeias, publicou um livro cujo título era Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha, tendo a primeira edição circulado em 1780. Pois bem, esse especialista em satisfazer o apetite e a gula de muitas cabeças coroadas resolveu dar seus conselhos para a conservação de triviais presuntos destinados à alimentação dos navegantes, por um método que, segundo dizia, garantia que permanecessem adequados ao consumo. Escreveu ele:
"Para se conservarem os presuntos e transportar para climas mais quentes e remotos e passarem a linha (¹) sem risco de se perderem, deve-se observar a regra seguinte:
Depois de os presuntos estarem bem enxutos e corados, passem-se por vinagre bem forte e pulverizem-se e cubram-se de cinza de vides peneirada, e tornem-se a pendurar até enxugarem. Metam-se depois em uma caixa com a mesma cinza peneirada por cima e por baixo, e assim se irão pondo as camadas de presuntos e de cinza até encher a caixa, e pelos intervalos uma pouca de carqueja. Feito isto, pregue-se a tampa da caixa por tal modo que lhe não possa entrar o ar, e ao embarcar, ter o cuidado de a pôr na parte mais fresca e enxuta do navio. Por este modo certamente se poderá comer o presunto com toda a sua perfeição, ainda que a viagem seja de dois ou três anos, e girem o globo em redondo."
Não contente em esbanjar seus conhecimentos, o bravo cozinheiro ainda explicou por que tratava desse assunto, entrando na questão que mais nos interessa:
"O que me fez lançar aqui esta receita foi estar eu no Rio de Janeiro com o Excelentíssimo Conde da Cunha (²), e todos quantos presuntos nos mandaram de Lisboa, chegaram sempre corruptos, ou fosse pelo calor ou umidade, ou pelas borras de azeite em que os metiam, que além do mau gosto e mau cheiro que lhe davam, não deixa de ser uma grande porcaria."
Fiquem à vontade, meus leitores, podem torcer o nariz diante desse espetáculo nada agradável de presuntos nadando em azeite! Bem tinha suas razões Lucas Rigaud, era mesmo uma porcaria... Mas isso nos manda de volta ao assunto inicial sobre a alimentação em embarcações oceânicas nos séculos XVI, XVII ou XVIII: Se assim se conservavam os presuntos, imagine-se o restante, ainda mais se pensarmos nas péssimas condições de higiene vigentes, quando ratos de todo tipo infestavam os navios e tinham, necessariamente, até por uma questão de sobrevivência, que compartilhar as viandas destinadas aos marinheiros. Quanto a estes, não havia escolha, ou compartilhavam as refeições com seus colegas murídeos, ou morriam de fome.
Resta apenas uma interrogação: sendo certo que se procurassem meios de melhor conservar os alimentos durante as viagens marítimas, que necessidade havia de que no Rio de Janeiro se comessem presuntos mandados de Lisboa?

(1) Refere-se, naturalmente, à ultrapassagem da linha do Equador, por navegantes que vinham do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

De que se alimentavam os marinheiros e soldados em uma armada portuguesa no Século XVII

Data de 1624 a tentativa de ocupação holandesa da região da Bahia - uma área considerada muito interessante não apenas por ser, na época, a capital do Brasil, mas principalmente pelos engenhos de açúcar que havia nas redondezas. Aliás, foi por causa do precioso açúcar, segundo Frei Vicente do Salvador, que Portugal resolveu enviar uma armada que pudesse prestar auxílio aos moradores da terra, na luta pela expulsão dos holandeses.
Para se ter uma ideia da importância da produção açucareira da Bahia nessa ocasião, deve-se levar em conta o número de engenhos que ali havia, comparando-se inclusive com o existente em outras áreas, ainda segundo Frei Vicente do Salvador:

Localidade                                                                  Número de Engenhos
Bahia .................................................................................... 50
Rio de Janeiro ...................................................................... 40
Pernambuco ......................................................................... 100
Itamaracá (era capitania separada) ...................................... 18 ou 20
Paraíba ................................................................................. 18 ou 20

Ora, diante desses dados, compreende-se porque é que, após o fracasso da tentativa de ocupação da Bahia, intentaram os holandeses, a partir de 1630, estabelecer-se em Pernambuco e adjacências.
Mas, retomando a questão da presença holandesa na Bahia, bem se pode entrever a opinião que os moradores daquela região tinham do socorro enviado desde a Europa, já que nosso padre historiador não deixou de salientar que toda a preocupação era com o eventual prejuízo que a falta do açúcar daria às alfândegas. Não nos esqueçamos: eram ainda os tempos da chamada "União Ibérica" (¹) e um rei espanhol. Filipe III, governava Portugal.
A armada que veio ao Brasil precisava, naturalmente, trazer suprimentos que permitissem aos combatentes uma sobrevivência adequada. E, nesse sentido, Frei Vicente do Salvador deixou-nos um registro admirável, que nos permite saber, com precisão, de que se alimentavam os marujos e soldados. Observe-se, pois:
"... se carregaram para a campanha sete mil e quinhentos quintais (²) de biscoito, oitocentas e cinquenta e quatro pipas (³) de vinho, mil trezentas e sessenta e oito de água, quatro mil centro e noventa arrobas (⁴) de carne, três mil setecentas e trinta e nove de peixe, mil setecentas e oitenta e duas de arroz, cento e vinte e dois quartos (⁵) de azeite, noventa e três pipas de vinagre, fora outro muito provimento de queijos, passas, figos, legumes, amêndoas, açúcar, doces, especiarias e sal [...]." (⁶)
A partir disso, podemos fazer algumas considerações:
a) Os alimentos trazidos eram aqueles que tinham condições minimamente satisfatórias de conservação, tanto para a longa viagem como para um período ainda indefinido de combate;
b) Os portugueses já tinham muita experiência nesse sentido, uma vez que estavam habituados a preparar a matalotagem de navegantes que ficavam longos períodos no mar;
c) Era necessário trazer água (que, a propósito, ficava imprestável na viagem), porque a armada poderia encontrar dificuldade para o desembarque de tropas e reabastecimento;
d) Independente da questão de conservação dos alimentos, não se pode deixar de notar que o carregamento refletia, também, as preferências e hábitos alimentares da maioria dos portugueses da época. Esses hábitos influenciaram bastante os costumes do Brasil Colonial, de modo que só gradualmente é que outras tradições culinárias - brasileiras, propriamente ditas - foram se estabelecendo.

(1) 1580 a 1640.
(2) Um quintal era medida equivale a quase 59 kg.
(3) Uma pipa correspondia a 420 litros.
(4) Uma arroba era correspondente a pouco mais de 14,6 kg.
(5) Um quarto geralmente correspondia a meia pipa, portanto 210 litros.
(6) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. O autor foi testemunha ocular da ocupação holandesa da Bahia.


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