quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 4

Não deveríamos ter estradas de ferro em lugar de tropas de muares?


Na postagem anterior mencionei um cálculo que apareceu no jornal O Agricultor Brasileiro em novembro de 1853, segundo o qual a perda com a morte de escravos em todas as Províncias brasileiras, a contar do ano da Independência (1822), seria de, pelo menos, 509.175 contos de réis, quantia essa que, se aplicada a juros de 6% ao ano, estaria produzindo naquele mesmo ano de 1853 uma renda anual superior a 30 mil contos de réis, um valor enorme para a época. Esse cálculo era feito na suposição de que um escravo morto significava imediatamente a compra de um novo escravo, prática que, conforme mostrei na primeira postagem desta série, era habitual entre os latifundiários brasileiros.
Pois bem, se todo esse dinheiro não se gastasse em escravos, que se poderia fazer com ele? A resposta vinha prontamente no jornal citado: devia ser investido na construção de ferrovias:
"Dada a hipótese que ela houvesse sido aplicada à confecção de estradas de ferro, e supondo que cada légua destas estradas importasse em cem contos de réis, teria hoje o Brasil não menos de 305 léguas de caminhos de ferro." (¹)
Não havia, no entanto, nesse ano de 1853, nem mesmo uns poucos metros de estrada de ferro devidamente inaugurados.
Expliquemos.
A parte mais lucrativa da lavoura brasileira era, no Século XIX, aquela destinada à exportação. Ocorre, no entanto, que muitas propriedades agrícolas localizavam-se bem longe dos portos e, por esse motivo, era preciso fazer transportar a produção, toda ela, até os locais de embarque, de onde seria enviada para a Europa e, um pouco mais tarde, também para os Estados Unidos. O caso é que esse transporte era feito, nem mais, nem menos, que nas costas de mulas!... Haja eficiência, pois.
Aqui o fazendeiro tinha duas possibilidades, e podia escolher uma delas ou, ainda, adotar um sistema misto: ter sua própria tropa de muares ou contratar os serviços de tropeiros. Em ambos os casos, teria grandes despesas, mas o pior era a condição das mercadorias, assim transportadas, quando finalmente chegavam aos portos, depois de serem carregadas, mundo afora, por caminhos péssimos e empoeirados, mal-acomodadas ao lombo dos pobres animais, e expostas de contínuo ao sol e à chuva. Tal sistema de transporte resultava em depreciação do produto, nem seria preciso dizer.

Tropa de mulas, de acordo com desenho aquarelado de Thomas Ender (²)

A despeito de um sistema tão deficiente, demorou para que as primeiras ferrovias chegassem a operar. Afinal, os investimentos em sua construção precisavam ser muito grandes e não havia certeza de que os lucros chegassem a ser compatíveis com os riscos envolvidos. Excetuando-se a pequena ferrovia de Mauá datada de 1854, linhas mais importantes somente começaram a funcionar a partir de fins da década de 1850. Resultaram, porém, em uma melhoria geral nas condições de exportação e provaram ser um investimento compensador. Ferrovias de São Paulo, por exemplo, em época de safra do café, chegavam a rejeitar o transporte de outras mercadorias, tal era a demanda dos cafeicultores para que o produto chegasse rapidamente ao porto de Santos. (³)

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6. O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Para ter uma ideia mais completa das mercadorias que eram transportadas nas ferrovias paulistas, veja a postagem "O que se transportava nas ferrovias paulistas no Século XIX".


Veja também:

domingo, 25 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 3

Refletindo sobre o prejuízo gerado pela escravidão


Escravos trabalhando em plantação,
de acordo com gravura de Rugendas (³)
A escravidão era brutal, era desumana, mas considerações desta ordem dificilmente levariam os senhores de escravos a desistirem de seus "direitos de propriedade". Tornava-se necessário convencê-los de que o escravismo era prejudicial aos seus interesses econômicos, o que vinha a ser uma árdua tarefa. A maioria dos grandes latifundiários brasileiros, ao menos durante a primeira metade do Século XIX, estava longe de ter a instrução necessária para compreender o raciocínio que poderia induzi-los à revolução nas práticas agrícolas de que a lavoura brasileira tanto necessitava.
Como argumentar de forma simples o suficiente para fazê-los entender que a escravidão, em última análise, dava prejuízo?
Uma tentativa nesse sentido apareceu na primeira edição do jornal O Agricultor Brasileiro, datada de novembro de 1853. Dizia:
"Suponha-se que desde o ano de 1822 tem morrido em cada província do Império cinco escravos por dia, e que cada um deles não tem custado mais de 500 mil réis, e veremos que cada uma tem perdido
por dia ....................................... 2 contos e 500 mil réis
por ano ...................................... 912 contos e 500 mil réis
Portanto as dezoito províncias do Império têm perdido anualmente a quantia de 16.425 contos de réis, quantia esta que, calculada desde a época da nossa emancipação política, isto é, em trinta e um anos, se eleva à soma espantosa de 509.175 contos de réis, equivalente a um milhão e dezoito mil, trezentos e cinquenta escravos." (¹)
Assim posta, a questão talvez fizesse pensar, não é mesmo? Mas havia mais:
"Se esta quantia houvesse sido empregada de outro modo, ao juro de 6% a.a., produziria atualmente a renda anual de 30.550 contos e 500 mil réis." (²)
Os leitores talvez se perguntem se o argumento deu, logo, algum resultado prático. Ora, basta lembrar, neste sentido, que a escravidão, como se sabe, perdurou no Brasil até 1888.

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6.
O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) Ibid.
(3) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



Veja também:

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 2

Que tal substituir as enxadas por arados?


Até meados do Século XIX, o equipamento de uso agrícola mais moderno que frequentava a maioria das lavouras brasileiras chamava-se enxada, equipamento esse que era, usualmente, posto em funcionamento mediante o emprego da força muscular de escravos vigorosos.
Não venham me dizer, senhores leitores, que isso é inacreditável. Correspondia à rotina das plantações, independente do cultivo que se praticava.
Em O Agricultor Brasileiro, publicação já mencionada na postagem anterior, apareceu um cálculo interessante, demonstrando quanto podia fazer um escravo diariamente em seu trabalho, seguindo-se uma comparação quanto ao que se obteria no caso de se utilizar um arado, um prosaico arado, em lugar de tantos escravos na lavoura. Eis a informação do trabalho feito com enxada e a despesa estimada com escravos:
"A despesa que mais avulta na agricultura é a de braços em número suficiente para lavrar. Um trabalhador não pode lavrar mais de vinte braças quadradas por dia, trabalhado dez horas diárias [sic], e duas braças por hora; de sorte que para lavrar duzentas braças serão necessários dez trabalhadores em um dia, ou dez dias para um trabalhador. Ora, sendo escravos os nossos trabalhadores e custando cada um pelo menos oitocentos mil réis, tem-se a necessidade de empregar oito contos de réis, que produzem, ao juro de 6% ao ano, a renda de 480 mil réis, ou cerca de 1.315 réis por dia, além do sustento e risco do capital empregado nos escravos, que morrem mais cedo ou mais tarde." (¹)
Façamos uma pausa para algumas considerações. Antes de mais nada, observaram os leitores a longa jornada - dez horas - que se estimava como normal para um escravo na lavoura? Além disso, percebe-se que o "normal", da época, era mesmo o trabalho feito sempre com enxadas. Qualquer modernização nas práticas agrícolas devia parecer muito perturbadora aos fazendeiros. Observe-se também que, em 1853, quando foi publicado o primeiro número de O Agricultor Brasileiro, os preços dos escravos estavam ficando cada vez mais altos. A causa disso? O fim do tráfico de africanos, a partir da Lei Eusébio de Queirós, datada de 1850. Mas vamos em frente, com a proposta de adoção do arado para substituir as enxadas:
"Porém, se na nossa lavoura estivesse admitido o uso dos arados, grande seria a economia dos proprietários. Existem presentemente no país arados construídos para diversas sortes de terrenos, e cujos preços variam de 15 mil a 100 mil réis. Este instrumento de tão simples estrutura e de tanta duração lavra tanta terra em um dia quanta podem lavrar dez homens, pelo menos." (²)

Modelo de arado que ilustrava o primeiro número do jornal O Agricultor Brasileiro (³)
Não era recente a advertência quanto à necessidade de pôr fim à escravidão, com a adoção do trabalho livre assalariado e o uso de máquinas agrícolas que reduzissem a demanda por trabalhadores e aumentassem a produtividade. Já na primeira Assembleia Constituinte, instalada em 1823 - aquela que D. Pedro I dissolveu - a questão havia sido levantada. Quase toda mudança no Brasil do Século XIX era, contudo, morosíssima. Por que, nesse caso, seria diferente? A escravidão acabaria acabando, é verdade, mas só mesmo quando já era, na prática, insustentável.

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, pp. 7 e 8.
O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado para a discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro, Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(2) Ibid., p. 8.
(3) Ibid. p. 7.


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domingo, 18 de agosto de 2013

Causas do atraso da agricultura brasileira no Século XIX - Parte 1

Investimentos? Só em escravos!


Era abril de 1822 quando Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês em viagem pelo Brasil, escreveu:
"Quanto mais me aproximo da Capitania do Rio de Janeiro mais consideráveis se tornam as plantações (¹). Várias existem também muito importantes, perto da Vila de Resende. Proprietários desta redondeza possuem 40, 60, 80 e até 100 mil pés de café. Pelo preço do gênero devem estes fazendeiros ganhar somas enormes. Perguntei ao francês, a que me referi ontem, em que empregavam o dinheiro. "O Sr. pode ver, respondeu-me, que não é construindo boas casas e mobiliando-as. Comem arroz e feijão. Vestuário também lhes custa pouco, nada gastam também com a educação dos filhos que se entorpecem na ignorância, são inteiramente alheios aos prazeres da convivência, mas é o café o que lhes traz dinheiro (²). Não se pode colher café senão com negros; é pois comprando negros que gastam todas as rendas e o aumento da fortuna se presta muito mais para lhes satisfazer a vaidade do que lhes aumentar o conforto."" (³)
Escravos trabalhando acorrentados, de acordo
com 
desenho aquarelado de Thomas Ender (⁶)
A mentalidade do fazendeiro típico era, deduz-se, a seguinte: "Se tenho mais escravos, planto mais café (ou algodão, ou cana, ou ainda qualquer outra coisa); plantando mais, posso colher mais, e meus ganhos serão maiores. Se ganhar mais... Se ganhar mais, compro mais escravos, porque assim posso plantar mais, colher mais..." Repetia-se o ciclo, indefinidamente, até que más colheitas pusessem tudo a perder, o que não era assim tão incomum.
Não, meus leitores, não passava pela cabeça, pelo menos da maioria desses escravocratas, que fosse necessário aplicar parte dos lucros em modernizar as práticas agrícolas. Bastava, supunha-se, aumentar o número de braços na lavoura - o que significava, na época, comprar mais escravos - e aumentar a área cultivada. O resto viria "naturalmente".
Mas não vinha. Escravos, como se sabe, eram seres humanos. Fugiam, morriam... O resultado disso é que os fazendeiros viam-se sempre envolvidos em comprar, geralmente a crédito, mais escravos, ao menos para repor os que haviam "perdido", pagando depois, quando vendessem a safra. Isso explicava, em parte, a lucratividade bem menor do que a que poderia, de fato, ser obtida.
O pior, no entanto, é que a visão curta desses fazendeiros continuou a vigorar pelos anos afora. A independência política não trouxe, para o Brasil, qualquer mudança significativa no plano econômico. E, tanto isso é verdade, que três décadas mais tarde, no primeiro número do jornal O Agricultor Brasileiro (⁴), datado de novembro de 1853, constava a seguinte afirmação:
"Presentemente o fim do agricultor é obter lucros das suas colheitas para comprar escravos que substituam os que lhe morrem todos os anos, para que com eles possa continuar a lavrar as suas terras [...]." (⁵)

(1) Antes de espalhar-se pelo chamado "Oeste Paulista" na segunda metade do Século XIX, o café foi bastante cultivado no Rio de Janeiro, particularmente no Vale do Paraíba, de onde passou a São Paulo, ainda no mesmo Vale do Paraíba.
(2) Cafeicultores da segunda metade do Século XIX adotariam um estilo de vida radicalmente diverso deste descrito por Saint-Hilaire em 1822.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 119 e 120.
(4) O Agricultor Brasileiro era um jornal voltado à discussão de questões relacionadas à lavoura, como pretexto para divulgar máquinas e equipamentos agrícolas vendidos pela Casa Nathaniel Sands & C., instalada no Rio de Janeiro à Rua da Alfândega, nº 20, que editava a publicação.
(5) O AGRICULTOR BRASILEIRO, Ano I, nº 1, p. 6.
(6) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mulheres paulistas do Período Colonial, viúvas de maridos (talvez ainda) vivos

Na Capitania de São Vicente, e em particular na povoação de São Paulo do Período Colonial, era traço marcante o intenso amor que a população masculina devotava às aventuras pelo sertão, fosse no intuito de aprisionar índios para a escravização (quase sempre), fosse na procura por metais preciosos (às vezes). Para os religiosos envolvidos na catequese de nativos, eram os sertanistas considerados um verdadeiro estorvo, e isso desde a infância: a criançada, tão logo aprendia uns míseros rabiscos que só por atrevimento podiam chamar-se de escrita, metia-se com os pais em expedições que duravam meses, até anos. Um belo dia tornavam, na companhia de outros expedicionários, à vila de origem. Embrutecidos pelo viver no sertão, corriam o risco de sequer serem reconhecidos pela família. Haviam-se tornado homens, segundo os conceitos de seu tempo.
Mas em São Vicente não havia, por suposto, apenas homens. Havia as mulheres, havia as meninas...
Casamento era, em geral, coisa que os pais decidiam. A menina, quando vinha de uma família que lhe destinava um dote, apenas tida como apta para procriar (¹), casava-se com aquele que o pai escolhera, não raro um homem muito mais velho, que já se casara outras vezes. Enviuvara, ele, muito provavelmente pela morte de uma ou mais esposas no parto. Casava-se então, novamente. E a infeliz menina via-se, de um dia para outro, esposa de um bandeirante, o que significava, muitas vezes, viver quase como viúva, se levarmos em conta o fato de que os homens passavam grande parte do tempo em suas andanças mato afora. Quando o bandeirante voltava, permanecia, em geral, pouco tempo com a família, até que nova correria pelas selvas o levasse para bem longe. Acontecia, por vezes, durante essas curtas permanências do marido na vila, que a esposa engravidava e, quando o bebê vinha ao mundo, o pai, com grande probabilidade, já não estava mais em casa. Se levarmos em conta a altíssima mortalidade infantil da época, não era raro que um pai não chegasse a conhecer os filhos - muitas crianças morriam antes que o pai retornasse do sertão. Alguns bebês, naturalmente, sobreviviam, e iriam garantir a perpetuação da lógica familiar típica daquele tempo e lugar, que talvez hoje nos pareça muito estranha. (²)
Mas não era só. Para as mulheres casadas com sertanistas, essas verdadeiras viúvas de maridos vivos, ficavam pesadas responsabilidades. Deviam administrar a casa, com a ampla família que ali vivia, cuidar dos filhos, fazer trabalhar a escravaria (³), garantir que as roças fossem cultivadas - sozinhas, às vezes com a ajuda de parentes. Sem reclamar. Rezando sempre pelos que estavam distantes. Referindo-se a seus maridos como "senhores" (⁴). Esperando por um retorno que talvez nunca ocorresse.
Algumas dessas mulheres, ao morrerem, deixavam testamentos (feitos pela mão de terceiros, pois eram poucas as que sabiam escrever). Neles, diziam desconhecer se o marido, que fora ao sertão, ainda vivia. É o que relata Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarchia Paulistana, no trecho abaixo:
"Francisca Pedrosa, faleceu com testamento a 4 de julho de 1725, natural de Itu, e declarou ser filha de Florência Corrêa e Sebastião Pedroso, que fora casada com Bartolomeu Rodrigues Bezaranno, o qual logo depois de casado fora para o sertão do rio Paraguai; até aquele ano não havia notícia se era vivo ou morto."
Ou neste outro:
"Catarina Bicudo casou na matriz de São Paulo a 2 de outubro de 1637 com Gaspar Vaz Madeira [...], que foi para o sertão [...] na tropa de Antônio Raposo Tavares, e ficou dito Pedro Vaz Madeira no Grão-Pará, de onde não tinha vindo mais até o ano de 1686, nem se tinha notícia dele."
Eventualmente, porém, a tal viuvez com marido vivo acabava tomando outros rumos. Ainda segundo a Nobiliarchia Paulistana:
"Sebastiana Pedroso [...] casou em São Vicente com Antônio de Faria Vilas-Boas, natural de Lisboa. [...] Porém, estando ausente seu marido, o dito Vilas-Boas, adulterou com seu cunhado Inácio da Costa de Siqueira, alferes de infantaria da praça de Santos [...]. Deste incesto teve Sebastiana Pedroso três filhas, que foram expostas em diversas casas."

(1) A adolescência, como uma fase de transição, tal qual hoje a entendemos no mundo ocidental, era coisa desconsiderada naquela época.
(2) Talvez não totalmente.
(3) Em geral de origem indígena, e tanto mais numerosa quanto mais sucesso tivesse o bandeirante de quem era "propriedade".
(4) Era usual, na época, e o foi por muito tempo, entre pessoas de origem ibérica, que em público a mulher chamasse o marido de "Senhor Fulano", devendo o marido dizer "Dona Sicrana" ou ainda "Senhora Dona Sicrana".


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domingo, 11 de agosto de 2013

Brincando de adivinhar

Quem de meus leitores será capaz de dizer, corretamente, qual o assunto da foto abaixo?


Não, não, senhores. Não se trata do degelo de um dos polos. É coisa bem diferente, asseguro-lhes!
É simplesmente um "detalhe" da poluição química aerada que cobria o rio Tietê na tarde do dia 17 de julho de 2013. Um observador desavisado, que olhasse a foto ao lado, mostrando o Tietê (em primeiro plano) e parte da cidade de Salto - SP, poderia até pensar que os extremos do inverno teriam feito o rio congelar...
Como o poluição do Tietê já foi alvo de várias postagens neste blog, parece-me desnecessário tecer maiores considerações. Basta apenas lembrar o quão hipócrita pode ser a sociedade contemporânea: faz-se um enorme barulho (quase sempre acertadamente) por causa de uma única árvore que eventualmente é cortada, e aceita-se, já quase sem estranheza, uma aberração dessas em um rio que atravessa quase todo o Estado de São Paulo. Os leitores devem conhecer outros exemplos.


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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Os saltos do Piracicaba e do Tietê, há quase um século e atualmente

Vai aqui, hoje, uma postagem diferente do habitual. Os leitores verão, a seguir, duas fotos com quase cem anos - a primeira, do salto do rio Piracicaba (na cidade de mesmo nome), tendo M. Ferraz como fotógrafo, publicada na revista A Cigarra em 15 de maio de 1919 (¹), e a segunda, do salto do rio Tietê, (na cidade de Salto - SP), também publicada em A Cigarra, desta vez na edição de 30 de abril de 1918 (²). Não há, neste segundo caso, menção do nome do fotógrafo.
Cada uma dessas fotos quase centenárias está acompanhada de uma outra, atual, dos mesmos lugares (ainda que não com o mesmo ângulo de visão). Para tornar a coisa mais interessante, são dois exemplares de fotografia infravermelha.

Salto do Piracicaba






Salto do Tietê





Divirtam-se, senhores leitores, e tenham um ótimo dia!
Observação muito importante: O aspecto um tanto leitoso do rio Tietê não é obra do acaso, nem uma peça que nos prega a fotografia infravermelha. Trataremos da explicação desse "fenômeno" na próxima postagem.

(1) Ano VI, nº 112.
(2) Ano V, nº 90.


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domingo, 4 de agosto de 2013

Peste Negra

Ratos, pulgas e uma doença que devastou a Europa medieval


A "Peste Negra" - peste bubônica - aterrorizou a Europa no Século XIV, embora nos subsequentes XV e XVI ela não deixasse de fazer eventuais aparições, não menos apavorantes, porém territorialmente mais restritas.
Vinda da Ásia, logo fez vítimas nas cidades portuárias, nas quais atracavam navios que traziam gente contaminada. Silenciosamente, os verdadeiros transmissores também desembarcavam: as pulgas dos ratos pretos (Rattus rattus), que infestavam as embarcações da época. (¹)
Declarada a peste, as autoridades faziam tudo o que podiam para impedir que a moléstia se propagasse, o que resultava em quase nenhum proveito, já que o "tudo" que se fazia estava totalmente errado. É que os europeus da época não faziam a mínima ideia de como, de fato, ocorria o contágio, e não podiam imaginar que as desprezíveis e incômodas pulgas eram as verdadeiras emissárias da pandemia.
Dentro das muralhas das imundas e fétidas cidades medievais, em que os mais básicos princípios de higiene eram desconhecidos, o estrago era enorme - alguns autores entendem que cerca de um terço da população europeia teria morrido durante a Peste Negra.
Contemporâneo a toda essa desgraça, o escritor Giovanni Boccaccio narrou em seu Decameron, com toda a clareza somente possível a uma testemunha ocular, o que ocorreu em Florença quando, em 1348, a peste manifestou-se na cidade. Nessa obra, um grupo de dez jovens, moças e rapazes, fugindo à contaminação, refugia-se no campo. Lá, para garantir algum entretenimento, passam os dias a contar histórias uns aos outros - aliás, histórias pra lá de licenciosas, verdadeiramente de arrepiar os cabelos, em se tratando de moral - para os padrões da época, naturalmente.
Pois bem, indo ao texto de Boccaccio, temos logo a descrição da chegada da peste e das providências que se tomaram, ainda que fracassadas, na tentativa de conservar saudável a população:
"No ano da encarnação de nosso Bendito Salvador de 1348, aquela notável mortandade apareceu na excelente cidade, assim como em todo o restante da Itália, cuja praga, por operação dos corpos superiores (²) ou, talvez, por nossas grandes iniquidades, foi, pela justa ira de Deus, enviada sobre nós, mortais. Alguns anos antes ela começara nas partes orientais, ceifando então inumerável quantidade de almas viventes. Estendeu-se de um lugar a outro até alcançar o Ocidente, chegando à dita cidade, onde nenhum conhecimento ou providência humana deixou de usar-se para a prevenção, fazendo-se todo o possível para afastá-la mediante diligentes funcionários para isso designados: nem a proibição da entrada de todas as pessoas doentes, nem toda a provisão diária para a conservação daqueles que estavam saudáveis, com incessantes orações e súplicas do povo devoto foram eficazes para manter distante a tão perigosa doença." (³)
Passa, então, a descrever os sintomas da enfermidade, conforme observou em seus dias:
"Por volta do princípio do ano, ela começou estranhamente, com o aparecimento de vários sintomas admiráveis, não como ocorrera nos lugares do Oriente, onde homens e mulheres por ela atingidos manifestavam os sinais de morte inevitável que se seguia ao sangramento do nariz. Aqui ela começou atingindo as crianças pequenas, tanto meninos como meninas, com o aparecimento de inchaços tanto nas axilas como na virilha, que eram do tamanho de uma maçã, em alguns casos, ou de um ovo, em outros [...]. Em breve espaço de tempo, as partes infectadas cresciam mortalmente, e então se espalhavam para todas as partes do corpo, depois do que, de acordo com a intensidade da doença, apareciam manchas negras ou azuladas, as quais podiam localizar-se nos braços ou nas coxas, ou em qualquer outra parte do corpo. Em alguns, as manchas eram poucas e grandes, e em outros, pequenas e numerosas.
Assim como o inchaço no princípio, as manchas eram um sinal certo de que a morte se aproximava [...]. Todos morriam, três dias depois do aparecimento dos primeiros sintomas [...], comumente sem qualquer febre ou outro acontecimento." (⁴)
Tratem de aguentar, leitores! O que vem a seguir é uma demonstração cabal de como a gente do Medievo não compreendia, em absoluto, como se dava o contágio, e o que é que ratos e pulgas tinham a ver com a peste:
"Esta pestilência era de tal força e violência que não somente as pessoas saudáveis que viam ou falavam com os doentes ou arrumavam suas roupas misericordiosamente para confortá-los arriscavam-se a contrair a doença, mas tocar as vestes ou qualquer alimento oferecido à pessoa enferma, ou qualquer coisa usada em seu serviço, semeava ou transferia a doença do enfermo para o saudável, de muito rara e estranha maneira. Entre tantas coisas absurdas, quero contar uma, que se os olhos de muitos (dentre os quais os meus) não houvessem visto, dificilmente eu teria coragem de escrever e muito menos acreditar, ainda que um homem digno de confiança me relatasse. Eu afirmo que a qualidade do contágio dessa pestilência era não só muito eficaz em passar de uma pessoa a outra, fosse homem ou mulher, mas ela depois se estendia, diante da vista de muitos, de tal modo que as roupas, ou qualquer outra coisa de qualquer um que morrera da doença, sendo tocadas ou postas sobre qualquer animal, independente da origem do morto, não somente contaminavam o dito animal, fosse cachorro, gato ou algum outro, mas também ele morria pouco tempo depois." (⁵)
Pulgas, pulgas, pulgas - pulgas!
Resta uma observação, algo mórbida, mas necessária. Pela época em que grassou a pandemia, a fome não era rara na Europa, em virtude de a produção de alimentos não acompanhar o crescimento populacional. A morte de tanta gente acabou por reduzir essa pressão, ainda que muitos trabalhadores da lavoura tenham acabado também nas valas comuns em que eram, às pressas, sepultadas muitas das vítimas da peste negra. Menos camponeses para trabalhar a terra, é verdade, mas também muito menos bocas para alimentar.

(1) Rattus rattus é o principal "hospedeiro" dessas pulgas, mas alguns outros roedores também podem fazê-lo.
(2) Era comum, na época, atribuir-se aos corpos celestes (planetas, estrelas e, em particular, cometas), a responsabilidade por grandes catástrofes.
(3) BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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