quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Tudo pelo ouro da América

A comparação da América ao "Paraíso" ou "Jardim do Éden" é recorrente nos relatos dos primeiros exploradores e colonizadores europeus que chegaram ao Continente. Em muito pouco tempo, porém, o paraíso seria transformado em inferno, à medida que gente desesperada por ouro e dotada de total ausência dos mais elementares sentimentos de humanidade percorresse, primeiro as ilhas, depois a "terra firme", em uma autêntica marcha de destruição. Frei Bartolomé de Las Casas (¹), dominicano que gastou a vida em defesa dos povos indígenas, assim explicou o comportamento brutal dos chamados "conquistadores da América":
"A causa por que cristãos têm matado e destruído tantas e tão infinito número de almas [os indígenas] é somente por ter como fim último o ouro, e o encher-se de riquezas em pouco tempo, e subir a estados muito altos e desproporcionais às suas pessoas, convém saber, pela cobiça insaciável e ambição que têm [...]." (²)
Segundo Las Casas, os ataques aos índios eram feitos à noite, e, quando os conquistadores espanhóis estavam a cerca de meia légua de uma povoação, para formalmente assumir um verniz de "catequese", proclamavam:
"Caciques e índios desta terra firme de tal povoado, vos fazermos saber que há um Deus, e um papa e um rei de Castela, que é senhor destas terras: vinde logo prestar obediência, etc., e em caso contrário, sabei que vos faremos guerra, mataremos, cativaremos, etc." (³)
Para completar o trabalho, vinha, sem qualquer vestígio de piedade, o ataque à população nativa, que sem saber do que se passava, ainda dormia:
"De madrugada, enquanto os inocentes [indígenas] dormiam com suas mulheres e filhos, atacavam a povoação, pondo fogo às casas que geralmente eram de palha, sendo queimados vivos os meninos, as mulheres e muitos outros, antes que acordassem; matavam a quem queriam e aos que capturavam vivos torturavam até a morte para que contassem de outras povoações em que havia ouro ou dissessem onde estava mais ouro, além do que haviam encontrado; e os que restavam marcavam a ferro como escravos. Em seguida, tendo apagado o fogo, iam buscar o ouro que havia nas casas." (⁴)
Podem imaginar os leitores quanta catequese se fazia por esse método. É óbvio que tudo não passava de uma encenação demasiado infame, que precedia invariavelmente mais um episódio de rematada crueldade, cujo único fim era arrancar o ouro que fosse possível encontrar entre a população nativa. Há quem diga que a tal "proclamação", ordenada pelos reis de Espanha, servia para acalmar consciências. Ora, talvez fosse essa a ideia quanto aos monarcas distantes, mas que dizer dos indivíduos que a ferro e fogo arrasaram civilizações inteiras em poucas décadas? Que "consciências" eram essas?
Surpreendam-se, leitores: a matança era feita sob o pretexto de que havia índios demais, sendo a colonização impossível se a população não diminuísse! 
Não faltou quem acusasse Las Casas de exagero, tanto em seus dias como nos séculos posteriores. Mas os próprios relatos feitos por alguns dos conquistadores, as cartas escritas por descobridores, nas quais diziam o que haviam encontrado, e a enorme diferença entre o que então se via na América e aquilo que hoje se vê, são evidências de que o zeloso dominicano que se empenhava por defender os povos indígenas não estava mentindo, até porque, se estivesse, teriam os conquistadores, na época, sobeja oportunidade de demonstrar a própria inocência, coisa que jamais fizeram.
Las Casas, dentro de uma perspectiva compatível com sua posição de clérigo, ainda afirmaria:
"Estas são pois as obras dos espanhóis que vão às Índias [América], que verdadeiramente muitas e infinitas vezes por cobiça que têm de ouro têm vendido e vendem hoje, neste dia, e negam e renegam a Jesus Cristo." (⁵)
Mas era quase inútil escrever ou falar. O volume de ouro enviado à Europa, para particulares ou para o tesouro real, explicava, silenciosamente, o pouco interesse em reprimir tanta maldade.

(1) A primeira edição da Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias foi publicada em 1552; havia sido escrita dez anos antes, com a finalidade de apresentar ao monarca espanhol os absurdos perpetrados pelos conquistadores. 
As citações da obra que aparecem nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, p. 18.
(3) Ibid., p. 41.
(4) Ibid., pp. 41 e 42.
(5) Ibid., p. 87.


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