sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Os temperos de Apício

Política e gastronomia na Roma dos Césares


É provável que muitos cozinheiros excelentes tenham vivido neste planeta antes do Século I; porém, se deixaram obras escritas, falando de seus procedimentos, elas, infelizmente, não chegaram até nós, ou pelo menos, não são conhecidas (¹). Tudo o que temos são fragmentos muito reduzidos, relativos a algumas práticas de cozinha que vigoravam na Antiguidade.
Com Apício é diferente, ainda que haja controvérsias quanto à autoria da obra que lhe é atribuída, De re coquinaria, da qual o mais correto a dizer talvez seja que ela é produto, em parte, de anotações do próprio Apício, compiladas e ampliadas posteriormente por um ou mais editores. No entanto, esse chef famoso, contemporâneo dos imperadores Augusto e Tibério, é referido por autores da época, e sua existência, inclusive como frequentador dos círculos do poder, constitui-se em um fato bem documentado. 
Para quem quiser cozinhar como Apício...
Apício foi, por algum tempo, o queridinho da corte quando o assunto era o preparo de comida sofisticada; porém, os romanos defensores das antigas e severas tradições estavam entre seus maiores críticos. Para eles, a comida excessivamente elaborada de Apício era apenas mais uma dentre as muitas frivolidades que se haviam infiltrado em Roma, destruindo o estilo de vida frugal, tão idealizado, que se supunha ter existido nos primeiros tempos da cidade. (²)
Acontece que, deixando de lado considerações políticas, parece que havia outra razão para as críticas a Apício. Não faltava quem alegasse que sua comida era notável por um exagero nos temperos. Ficava até difícil saber o que é que se estava comendo... 
Ora, para fazer justiça a esse polêmico chef da Antiguidade, nada melhor do que verificar o que consta em De re coquinaria, na suposição de que seja, como já disse, ao menos parcialmente uma obra sua. Recomendava, por exemplo, que ervas silvestres, usadas como salada e servidas cruas, podiam ser temperadas com azeite e vinagre, valendo o mesmo para as cenouras. Que há de estranho nisso?
Mas não se enganem os leitores. Para os padrões da Antiguidade, a obra é extensa, contendo receituário para uma enorme variedade de pratos. Veremos, então, uma lista com algumas das ervas aromáticas, especiarias e outros condimentos mencionados nela. Quem gostar de cozinha talvez queira ir à despensa para verificar se todos os itens estão à mão, e para poupar trabalho, a lista está em ordem alfabética:
Açafrão, aipo e sementes de aipo, alcarávia, alho, alho-poró, arruda, azeite, cardamomo, cártamo (ou açafrão-bravo), cebola, coentro, cominho, endro, funcho, gengibre, hissopo, junípero, lavanda, levístico, louro, malva, manjerona, mel, menta, mostarda, nepeta (ou erva-dos-gatos), orégano, poejo, pimenta, sal, salsa, sálvia, segurelha, tomilho, vinagre, vinho. Estão cansados, leitores? Não é para menos.
Será bom assinalar que muitos molhos e temperos levavam ainda outros itens, tais como ameixas, amêndoas, damascos, figos, pinhões, tâmaras e uvas-passas.
Notem os leitores que a lista de ervas aromáticas, especiarias e condimentos diversos contém alguns elementos que são típicos da Península Itálica ou de regiões adjacentes; outros, porém, tinham de vir de pontos mais remotos ao longo do Mediterrâneo, do norte da África, da Arábia e mesmo de lugares longínquos do Oriente. Vejam, então, que a culinária de Apício e/ou de seus contemporâneos só foi possível porque, àquela altura, o Império contava já com boas estradas, e a presença de guarnições de seu poderoso exército assegurava, ainda que à força das armas, a existência da Pax Romana. Aos mercadores era possível que as viagens ocorressem em relativa segurança, garantindo a concretização de transações comerciais bastante lucrativas. A riqueza circulava, e, com ela, iam as notícias, a cultura e os hábitos de luxo. A cozinha do chef Apício, com seus temperos e exageros, não seria possível em outras circunstâncias.

(1) Nunca se pode descartar alguma descoberta notável que ainda venha a ocorrer.
(2) Nem poderia ser diferente, se levarmos em conta que, segundo Tito Lívio, Roma não passava, em suas origens, de uma modestíssima aldeia de camponeses briguentos que, em tempos de paz, viviam ocupados em cultivar a terra e cuidar de rebanhos.


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2 comentários:

  1. A abundância dá sempre azo à redundância. :)
    Grato pela partilha, Marta.

    Uma boa semana :)

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