quarta-feira, 30 de março de 2016

Senhores de engenho só eram muito religiosos quando conveniente

É conceito popular que, antigamente, as pessoas eram muito religiosas, e, por isso mesmo, respeitadoras de tudo que se relacionava aos locais de culto e ao clero que aí ministrava. Ora, meus leitores, a ser verdade um caso que contou Rocha Pita, historiador baiano do Século XVIII, talvez seja preciso considerar que a gente que vivia no Brasil Colonial era em extremo piedosa só mesmo quando conveniente.
Foi no tempo que antecedeu a ocupação de Pernambuco por holandeses. Segundo Rocha Pita, a riqueza gerada pela produção açucareira fazia com que a elite colonial apreciasse alardear abastança e vivesse "cometendo muitos delitos, em que por se ostentarem mais famosos no poder, pareciam menos observantes da religião". (¹)
Sucedeu naqueles dias que um padre, sobremodo consciente de seus deveres, teve a ideia de repreender os abusos que observava, dizendo, em um sermão inflamado, que não tardaria em haver castigo a tantos desmandos, uma vez que Olinda cairia em poder de invasores holandeses. É desnecessário afirmar que essa declaração seria, pouco depois, reputada como profecia (²).
Pensam os leitores que os ouvintes, em atitude de penitentes, baixaram a cabeça ao que dizia o padre? Nada disso. Escreveu Rocha Pita:
"A estas palavras, levantando-se alguns dos principais que assistiam ao sermão, o mandaram calar, e o fizeram descer do púlpito com violência e confusão, sem poder o pároco atalhar aquela força, posto que aplicara todos os meios de a obviar; desordem a que se seguiu brevemente a perda de Pernambuco e o cumprimento daquelas palavras, tão mal recebidas nos seus ânimos então, como depois lembradas nos seus arrependimentos, e ainda hoje conservadas com lágrimas nas memórias de todos os moradores mais qualificados de Pernambuco." (³)
Vejam, portanto, leitores, em que é que deu a tão propalada religiosidade de antigamente. Resta apenas acrescentar que nem era necessário ser profeta para desconfiar da possibilidade de uma invasão: a Bahia já fora anteriormente ocupada por holandeses, e a rivalidade entre Holanda e Espanha (na época senhora do Brasil, em razão da União Ibérica) era um fator que faria qualquer analista sério da conjuntura internacional supor que uma tentativa de ocupação de Pernambuco era iminente, até pela cobiça que a rica produção açucareira despertava entre comerciantes europeus.

Olinda, em Pernambuco, durante a ocupação holandesa (⁴)

(1) PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. 
(2) A ocupação holandesa em Pernambuco durou de 1630 a 1654.
Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 120.
(3) Ibid.
(4) MONTANUS, Arnoldus. Amerika. Amsterdam: Jacobus von Meurs, 1673.


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segunda-feira, 28 de março de 2016

Cavalos na conquista da América

Não havia cavalos na América antes que, em fins do Século XV, europeus pusessem os pés no Novo Mundo. Sim, é verdade que há cavalos selvagens em uns poucos lugares do Continente, mas eles descendem de animais trazidos durante a colonização, e que, por assim dizer, "voltaram para a natureza".
Nem todo mundo sabe, porém, que os cavalos tiveram uma enorme importância na chamada "conquista da América", dando aos europeus uma vantagem que talvez nem houvessem previsto quando faziam embarcar animais para a travessia do Atlântico. Se alguém tem dúvidas quanto à veracidade desse fato, será útil considerar que o frei dominicano Bartolomé de Las Casas, em sua Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias, descreveu os cavalos como "a arma mais perniciosa que pode haver contra índios" (¹).
O mesmo Las Casas explicou, com respeito à ocupação da Nicarágua, que era prática enviar homens a cavalo, não restando "homem nem mulher, nem velho e nem idoso com vida, pelos motivos mais irrisórios, como não atender rapidamente ao chamado, ou não trazer tanto milho, que é o trigo de lá, ou tantos índios para serviço [...], porque, como o terreno era plano, ninguém podia fugir dos cavalos, nem de sua ira infernal". (²)
Como seria muito razoável supor, a população nativa tratou de procurar algum modo pelo qual pudesse dificultar o deslocamento dos cavaleiros. Indígenas começaram a cavar grandes buracos, dentro dos quais colocavam estacas pontiagudas. Tudo era então coberto com bastante capim e ramos de árvores. Vindo os cavalos, caíam nesses fossos e acabavam morrendo em consequência dos ferimentos.
Ora, a resposta dos conquistadores não se fez esperar. Conta Las Casas:
"Não mais que uma ou duas vezes caíram cavalos [nos fossos]; mas, para vingança, os espanhóis fizeram lei, segundo a qual todos os índios, de todo gênero e idade que capturassem com vida, fossem lançados nos fossos, assim mulheres grávidas ou com bebês, crianças e velhos; a quantos alcançavam, lançavam nos fossos, até que ficavam repletos de atravessados pelas estacas, o que era uma grande lástima de ver, especialmente as mulheres com seus filhinhos." (³) 
É possível que alguns dos leitores entendam que nos relatos de Las Casas (⁴) havia, talvez, certo exagero, porém nunca será demais recordar que tudo isso se publicou ainda em vida da maioria dos "conquistadores" da América, que jamais apresentaram qualquer defesa convincente para suas ações. A conquista rendia muito ouro, um fato que explica o silêncio, na época, de muitos daqueles a quem cabia fazer justiça contra tanta monstruosidade.

***

Para satisfazer a curiosidade de leitores que talvez queiram saber se alguma coisa semelhante aconteceu no Brasil, menciono aqui um incidente relatado por Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil (⁵), quanto a uma ocasião em que colonizadores ameaçaram tomar vingança da morte de alguns brancos por uma tribo indígena, com a qual viviam em atrito: "Isto bastou para os alborotar e pôr a todos em fugida, o que também fizeram por verem no nosso exército cavalos, porque os temem muito."
Fatos como esse, porém, não eram generalizados, já que parte expressiva do território brasileiro ocupado nos tempos coloniais não era muito favorável a investidas de cavalaria, fosse pelo relevo, fosse pela densa cobertura vegetal.

(1) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, p. 27.
(2) Ibid., p. 45.
(3) Ibid. p. 68.
(4) As citações da obra de Bartolomé de Las Casas incluídas nesta postagem (cuja primeira edição foi publicada na Espanha em 1552), são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) O manuscrito data de c. 1627.


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sexta-feira, 25 de março de 2016

Escravas vendiam doces por conta própria na Quinta-feira Santa

Escravas vendedoras no Rio de Janeiro (¹)

Escravos urbanos eram muito frequentemente ocupados por seus senhores na tarefa de vender pelas ruas uma grande variedade de mercadorias, nas quais se incluíam verduras, café, limonada e, para encanto da criançada, doces. É óbvio que o dinheiro resultante das vendas pertencia aos proprietários dos escravos, ainda que haja relatos de arranjos entre senhores e cativos para que esses últimos recebessem uma pequena "comissão", proporcional ao lucro obtido.
Havia, porém, ao menos uma ocasião no ano (²) em que as escravas que vendiam doces podiam fazê-lo por conta própria: era a quinta-feira da Semana Santa.
Descrevendo como a população da capital do Império celebrava a data, o missionário e pastor metodista Daniel P. Kidder, que andou pelo Brasil entre 1837 e 1840, observou:
"Não se tocam sinos nem se queima foguetes nesse dia. As igrejas são vedadas à luz do dia e seu interior profusamente iluminado por velas de cera, no meio das quais fica exposta, no altar-mor, a Sagrada Hóstia. Dois homens paramentados em seda roxa postam-se de guarda. Em algumas igrejas fica exposta a imagem do Senhor morto, sob um pequeno dossel, tendo apenas uma das mãos para fora, de maneira que o povo possa beijá-la. Numa salva de prata que fica ao lado da imagem, depositam óbolos em dinheiro." (³)
E o que é que esse ritual fúnebre tinha a ver com a venda de doces? Não se esqueçam os leitores que era Quinta-feira Santa, sim, mas no Brasil. Sigamos com Kidder:
"À noite o povo passeia pelas ruas e visita as igrejas. Por essa ocasião, há geralmente profusa troca de presentes, o que redunda em benefício das escravas que nesses dias têm licença para vender doces por conta própria." (⁴)
À parte todo o horror da escravidão, é bem possível que, sob o aspecto festivo, venhamos até a ter saudades de um tempo no qual não vivemos...

(1) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Não desconsiderando, por certo, outros costumes regionais.
(3) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 133.
(4) Ibid.


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quarta-feira, 23 de março de 2016

Exportações brasileiras em meados do Século XIX

A Bruzundanga, segundo Lima Barreto, era um país que "vivia de expedientes, isto é, de cinquenta em cinquenta anos, descobria-se nele um produto que ficava sendo a sua riqueza. Os governos taxavam-no a mais não poder, de modo que os países rivais, mais parcimoniosos na decretação de impostos sobre produtos semelhantes, acabavam, na concorrência, por derrotar a Bruzundanga; e assim, ela fazia morrer a sua riqueza, mas não sem os estertores de uma valorização duvidosa. Daí vinha que a grande nação vivia aos solavancos, sem estabilidade financeira e econômica; e, por isso mesmo, dando campo a que surgissem, a toda a hora, financeiros de todos os seus cantos e, sobretudo, do seu parlamento".
Mas por que gastaríamos tempo com a Bruzundanga? Falemos do Brasil.
Ainda há quem discuta se é correto referir-se a um "ciclo econômico" do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro, do café, e assim por diante. Ora, deixando de lado essa questão, pode-se dizer que, pelos tempos do Império, a pauta de exportações brasileiras era até bastante diversificada. Sabemos, pelo que se publicou no Almanaque Laemmert de 1852 (¹), quais eram os itens exportados no Rio de Janeiro e qual era o imposto de exportação com que cada mercadoria era taxada. Querem ver? A lista é longa, mas muito instrutiva para quem quiser compreender a situação econômica do Brasil daquela época:
  • Com imposto de 1%, "ouro em barras, sendo fundidas nas casas de fundição de moeda do Império";
  • Com imposto de 2%, "pólvora, a prata em bruto ou manufaturada, as joias, as pedras preciosas, exceto os diamantes, ouro em pó e em barra não legalizado";
  • Com imposto de 7%, "aguardente de cana, cachaça restilada; algodão em rama, do Espírito Santo, de Minas, tecido branco, riscado; amendoim em casca; anil; araruta; arroz; açúcar branco, mascavo refinado; atanados; azeite de peixe; barbatana; batatas; betas; bolacha grossa; cabos de couro; café em grão, em pó; caixas para cera ou doce; cal de marisco; carne-seca; chifres; charutos; chapéus de pelo, de palha; chocolate; cristal; crina em rama, beneficiada; couros de cavalo, de boi, salgados; cola; doces de qualquer qualidade; esteiras para forro; estopa; farinha de mandioca, de milho; feijões; fio de algodão, de ticum; fumo em rolos, em folha; foguetes; goma; ipecacuanha; lã em bruto, beneficiada; lenha; licores; mamona em grão; mate; mantas de algodão; melado milho; óleo de rícino, de mamona; peles de cabra, etc.; queijos; quina; raiz de abutua; rapadura; rapé; refrescos ou capilés; resina de batatas; roscas; sabão; sal; sebo em rama, derretido; sola ou vaquetas; surrões; salsaparrilha; sanga de arroz; tabaco em pó; tamarindos em rama; tamancos; tapioca; tatajiba; tartaruga; telhas; tijolos de barro; tucum em rama; toucinho, lombo ou banha; trançado de algodão; unhas de boi; madeiras de todas as qualidades, pernas de serra, caibros, ripas, etc.";
  • Diamantes, com imposto de 1500 réis por oitava, ou 1/2%.
Vamos, agora, a umas poucas observações. A primeira delas é que as "exportações" e seus respectivos impostos não eram relativos apenas ao que seguia para o exterior, incluindo, também, aquilo que era mandado para outras províncias do Império. 
A segunda observação é destinada aos leitores que ficaram preocupados com os itens exportáveis que, eventualmente, não estivessem contidos na lista. Acontecendo um caso omisso, dizia o Almanaque Laemmert, "os gêneros que não estão incluídos nesta pauta são avaliados pelos feitores da Mesa do Consulado". (²)

Embarcações nas proximidades do Rio de Janeiro, Século XIX (³)

Finalmente, alguém poderá pensar que tamanha variedade de artigos para exportação deveria refletir uma economia muitíssimo dinâmica. Puro Engano. Os produtos que de fato contavam eram poucos. Uma pequena nota que apareceu no primeiro número de O Agricultor Brasileiro, publicado no ano de 1853, provê uma concisa (porém eficiente) visão do problema:
"Durante o findo mês de outubro saíram cinquenta e oito embarcações estrangeiras carregadas de gêneros do País, constando pela maior parte, de café e açúcar." (⁴)
Café e açúcar - estava aí o nexo perfeito entre a base de grande parte da economia colonial (o açúcar) e o produto que ditaria os rumos da monocultora exportadora não só no Império como em toda a República Velha (⁵).

(1) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, pp. 230 e 231.
(2) Ibid., p. 231.
(3) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) O AGRICULTOR BRASILEIRO. Rio de Janeiro: Typographia de Nicolau Lobo Vianna Junior, 1853, p. 30.
(5) Os Bruzundangas foi publicado em 1922.


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segunda-feira, 21 de março de 2016

Produção e exportação no Brasil Colonial

A prioridade no Brasil, desde os primeiros tempos coloniais, era produzir para exportação. Mercado interno, quase não havia, e mesmo que houvesse, sem vias e meios de transporte adequados seria impraticável interiorizar a produção. Com isso, parecia sábio que o extrativismo ou a monocultura ocorressem perto do litoral. As embarcações transoceânicas viriam aos portos, as mercadorias seriam embarcadas, exportadores e comerciantes teriam, respectivamente, a sua parcela nos lucros. Nem é preciso lembrar que essa dinâmica, em razão dos impostos, era muito interessante para a Coroa.
Quase todos os colonizadores que vinham ao Brasil tinham um sonho louco, que não receavam confessar - queriam enriquecer o mais rápido possível e, então, como triunfadores, voltar ao Reino, para desfrutar a riqueza acumulada. Poucos, no entanto, conseguiam, mas entendia-se que o caminho para isso era encontrar alguma coisa, extraída ou cultivada, que pudesse ser vendida na Europa por preço compensador. Foi assim com madeiras nobres, com aves e pequenos animais exóticos, e com o açúcar, à medida que canaviais e engenhos começavam a aparecer junto à costa.
Por outro lado, havia restrições e/ou proibições à exportação de mercadorias que pudessem fazer concorrência àquelas que eram trazidas do Oriente. Durante longo tempo as atividades econômicas no Brasil foram tratadas como complemento ao que se produzia no Reino ou nas "Índias". Isso valia, também, no sentido contrário, ou seja, havia regulamentos que obrigavam os residentes no Brasil à importação de determinados artigos, ainda que fosse perfeitamente possível sua produção por aqui mesmo. Quem detinha o monopólio (concedido pela Coroa) acabava vendendo produtos importados a preços exorbitantes. Tantas imposições acabavam, uma vez ou outra, degenerando em rebeliões localizadas.

Embarcações à vista da Bahia (*)

Ora, em conjunto, esses fatos resultaram em um foco no comércio exterior, que prevaleceu após a Independência, seguiu firme nas décadas do Império e invadiu o Período Republicano. A atenção a um nascente mercado interno, ainda que modesto, somente ganharia corpo com a urbanização (que, um pouco preguiçosamente, tratou de aparecer no começo do Século XX), com a ajuda nada desprezível de crises externas, que favoreceram a produção nacional mediante a chamada substituição de importações.

(*) O original pertence à BNDIgital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 18 de março de 2016

Ascensão e decadência de impérios, de acordo com Heródoto

Tratando da ascensão e declínio de impérios, Heródoto de Halicarnasso observou, em Histórias, que "aqueles que foram grandes no passado vieram a ser, posteriormente, muito pequenos; por outro lado, muitos que eram pequenos chegaram, em nosso tempo (¹), a ser grandiosos. Isso me convenceu de quão inconstante é o poder e de que tudo o que se relaciona à humanidade nunca se mantém imutável..." (²)
Esse pensamento era perfeitamente apropriado a quem pretendia, entre outras histórias, contar como é que os gregos, segundo todas as aparências, fragilizados pelas divisões e lutas internas, haviam temporariamente superado suas rivalidades, chegando a derrotar o Império Persa, que se supunha imbatível;  ao mesmo tempo, o falante narrador de Halicarnasso apontava as encrencas dentro da própria Grécia como uma grande ameaça, visto que, num futuro não muito distante, vizinhos poderiam lançar sobre ela olhares cobiçosos,  a tal ponto que a independência, que os gregos tanto prezavam, iria por água abaixo. Os leitores que conhecem um pouco de História sabem, com certeza, que nesta questão Heródoto estava certíssimo.
Impérios grandes declinam... Povos insignificantes alcançam as alturas. Não é difícil pensar em exemplos para ambas as situações. O Antigo Egito esteve no topo do cenário político em sua região por muitos séculos; menos duradouro, mas tão poderoso quanto, ou até mais, o Império Assírio aterrorizou os vizinhos; babilônios, persas, macedônios, romanos - se tentarmos enumerar as grandes forças do passado iremos muito longe, apenas citando aqueles povos de maior relevância para as origens civilização ocidental. Qual seria a dimensão da lista de déssemos um passeio histórico pelo Extremo Oriente? Reinos, impérios, civilizações, que começaram quase imperceptíveis, chegaram a ter amplo domínio, depois declinaram, alguns de um mal súbito, outros lentamente. Para alguns, restou apenas a sobrevivência. Outros, só para história e arqueologia.
Por outro lado, o que pensariam os romanos, se alguém lhes dissesse, talvez nos dias de César, que, num futuro não tão distante, os bárbaros, a quem desprezavam, seriam os novos senhores de parte considerável da Europa e mesmo do norte da África? Que diriam os grandes almirantes, cujas esquadras exploraram os oceanos nos Séculos XV e XVI, se soubessem que uns centênios minguados seriam suficientes para que, de terras pouco povoadas e recém-descobertas (³), nascessem países independentes, alguns com status de potências?
É óbvio que as causas para a ascensão e queda de impérios são altamente complexas, e não podem ser reduzidas a um único fator ou à vontade de uma só pessoa. Tampouco acontecem do dia para a noite, sendo, ao contrário, sutilmente desenvolvidas, sem que os controladores - a que chamamos governantes - tenham disso uma percepção muito clara. Uma questão interessante, não contemplada pelo pensamento de Heródoto, talvez proporcione um debate nada desprezível: Pode um Estado, que já teve seu auge de poder e declinou, voltar à posição de domínio perdida? Os exemplos históricos não parecem muito animadores...

(1) No tempo de Heródoto, claro: Século V a.C.
(2) O trecho citado da História de Heródoto é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Assumindo, neste caso, a visão dos descobridores/exploradores europeus.



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quarta-feira, 16 de março de 2016

Escravizados, mesmo após a Abolição

Assinada a Lei Áurea, no domingo, 13 de maio de 1888, a notícia correu com rapidez, primeiro na capital do Império, onde houve grandes festejos populares, e, depois, através de telégrafo, correio, jornais, dos trens que seguiam pelas ferrovias, alcançou pontos mais distantes - alguns no mesmo dia, outros, nos dias seguintes. 
A edição de 15 de maio de 1888 do jornal Correio Paulistano, após a publicação oficial da Lei, comentava: 
"Anteontem foi sancionada a lei que decreta a extinção da escravidão no Brasil.
O projeto, consignado na Fala do Trono, passou em ambas as casas do Parlamento, em menos de uma semana, no meio de ovações e debaixo de uma chuva de flores.
Acaba o País de presenciar a maior revolução social e econômica de que dão notícia os anais da História Pátria.
E essa revolução, ao invés do que se deu na antiguidade e nos tempos modernos, consumou-se sem derramar uma gota de sangue, sem arrancar uma lágrima de dor! (¹)
As lágrimas que correram foram lágrimas de bênçãos e redenção, a orvalharem a mão augusta que acaba de abrir de par em par as portas da posteridade, ao lavrar o decreto que declara que no Brasil só há homens livres e iguais."
Não estranhem os leitores o estilo empolado que era corrente no jornalismo da época, ainda que algo possa ser creditado ao entusiasmo do momento. O que por agora nos interessa é o fato de que a notícia da abolição correu o Brasil, e qualquer pequena localidade que quisesse estar à altura da ocasião organizava seus próprios festejos, com direito a discursos, bailes e outras manifestações. Curiosamente, em meio ao regozijo nacional, os recém-libertados acabaram, em alguns casos, quase esquecidos, de modo análogo ao que ocorrera na lei emancipadora, na qual sequer foram mencionados.
No entanto, anos após a abolição formal da escravidão no Brasil, ainda havia gente escravizada. Pode soar incrível, mas foi exatamente o que aconteceu. De vez em quando a imprensa noticiava que, aqui ou ali, uma pessoa fora encontrada vivendo como se a abolição nunca houvesse acontecido. Dois trechos da obra jornalística de Machado de Assis servirão de exemplo, ambos publicados na Gazeta de Notícias, que circulava no Rio de Janeiro. Vamos ao primeiro deles, datado de 15 de maio de 1892:
Escrava, desenho
de Thomas Ender (²)
"A festa de Treze de Maio comemorava uma página da história, uma grande, nobre e pacífica revolução, com este pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de São Paulo. Após quatro anos de liberdade, é de se lhe tirar o chapéu. Epimênides também dormiu por longuíssimos anos, e quando acordou já corria outra moeda; mas dormia sem pancadas. A preta Ana dormiu na escravidão, não sabendo até ontem que estava livre; mas como o sono da escravidão só se prolonga com a dormideira do chicote, a preta Ana para não acordar e saber casualmente que a liberdade começara, bebia de quando em quando a miraculosa poção. O caso produziu imenso abalo; o telégrafo transmitiu a notícia e todos os nomes."
O segundo caso foi publicado menos de um ano mais tarde, em 1º de janeiro de 1893:
"Há o fato de um preto de Uberaba, que, fugindo agora da casa do antigo senhor, veio a saber que estava livre desde 1888, pela lei da abolição. Faz lembrar o velho adágio inglês: "Esta cabana é pobre, está toda esburacada; aqui entra o vento, entra a chuva, entra a neve, mas não entra o rei". O rei não entrou na casa do ex-senhor de Uberaba, nem o presidente da República. O que completa a cena, é que uns oito homens armados foram buscar o João (chama-se João) à casa do engenheiro Tavares, onde achara abrigo. Que ele fosse agarrado, arrastado e espancado pelas ruas, não acredito; são floreios telegráficos."
Como explicar tal absurdo? 
É preciso admitir que, para as condições de comunicação existentes no Brasil da época, é perfeitamente possível que a notícia da abolição, malgrado toda a notoriedade, tenha demorado a alcançar pontos mais remotos do território (o que, por suposto, não incluiria nem São Paulo e nem Uberaba - MG). O mais provável é que um ou outro proprietário tenha, deliberadamente, agido de má-fé, mantendo o trabalhador na escravidão pela astúcia, escondendo a informação, sem excluir o uso da coerção física, método que, aliás, fora empregado com eficácia durante séculos. De que outro modo, afinal, a escravidão se sustentaria?

(1) O jornalista provavelmente tinha a intenção de  alfinetar a maneira pela qual se fizera a abolição nos Estados Unidos, desconsiderando o fato de que, a despeito de não ter demandado uma guerra civil, a luta contra o escravismo exigira, sim, sacrifício, dor e lágrimas também no Brasil, tanto dos envolvidos no movimento abolicionista como dos próprios escravos.
(2) Desenho de Thomas Ender, Século XIX. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 14 de março de 2016

Casamentos no Brasil Colonial

Muitos dentre os primeiros colonizadores que se estabeleceram no Brasil acabaram casados com mulheres indígenas - uns poucos, "na lei da graça", como dizia a Igreja, mas a maioria sem maiores formalidades que a decisão de viver sob o mesmo teto. Não tardou, porém, que sacerdotes (jesuítas, principalmente), protestassem contra aquilo que entendiam ser um desregramento dos colonos. Não só prescindiam da chancela da Igreja para suas uniões, mas havia quem se atrevesse a ter não apenas uma, mas várias mulheres... Ninguém se esqueça de que a poligamia era um enorme escândalo, e severamente proibida pelas leis portuguesas. A questão é que, nas terras da América, dificilmente haveria quem se desse ao trabalho de, em nome do Rei, fiscalizar tamanha desobediência.
Por conta disso tudo, não era incomum que os padres solicitassem que do Reino fossem trazidas órfãs portuguesas, para futuras esposas dos colonos. Fosse, porém, porque não havia tantas órfãs para tantos colonos, fosse por outras razões que nem vale a pena mencionar (a imaginação dos leitores suprirá esta aparente lacuna), o caso é que os padres nunca conseguiam domar a má conduta dos reinóis, não faltando, dentre os jesuítas, quem afirmasse que era justamente o péssimo exemplo dos colonizadores a maior dificuldade que havia à catequese dos indígenas.
O desenvolvimento das povoações coloniais com base em atividades econômicas ligadas à agricultura e, mais tarde, à mineração, possibilitou o aparecimento de uma elite para a qual o casamento dos filhos vinha a ser um importante negócio, um assunto que envolvia o reforço de vínculos de interesse político e econômico. Nesse contexto, eram os chefes das famílias que entabulavam as negociações, combinavam o valor do dote a ser pago pela família da moça e acertavam os mais detalhes que fossem porventura convenientes. Esperava-se, como regra, que a negociação fosse tacitamente aceita pelo noivo e pela noiva. A negativa, por parte de uma menina, era, com frequência, punida com a condenação à vida de religiosa, com vocação ou sem ela, em algum convento ou "recolhimento", quer no Brasil, quer no Reino.
Não era nada extraordinário que meninas de quatorze ou quinze anos fossem negociadas em casamento com homens de muito mais idade, já várias vezes viúvos. Afinal, esses eram tempos em que a morte de mulheres durante um parto não era nenhuma raridade. Igualmente comum é que noivo e noiva só se conhecessem às vésperas da cerimônia religiosa de casamento, quando não ocorria se verem, pela primeira vez, à porta da igreja. Casamentos por procuração eram parte do mesmo cardápio, e havia até casos em que o noivo ou a noiva precisava empreender uma longa viagem, eventualmente transoceânica, para que o casamento se realizasse.
Acontece que, apesar de tantas negociações, às vezes as coisas davam errado. A Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, registra vários casos, dos quais selecionei três, para recreação dos leitores.
Primeiro caso: 
"D. Maria Teresa Isabel Paes foi contratada para casar com o capitão-mor Fernando Dias Paes, filho primogênito do capitão-mor e guarda-mor-geral das minas de ouro Garcia Rodrigues Paes [...]; e não teve efeito a consumação do matrimônio porque mandando a sua procuração contraente, por ela foi recebido, e vindo em marcha para São Paulo faleceu antes de ver sua esposa."
Outro caso, semelhante ao primeiro, mas de consequência um tanto inusitada:
"D. Inês Pedroso de Barros faleceu solteira a tempo que seus pais a tinham contratado para casar com Estanislau de Campos, excelente estudante de gramática latina, o qual vendo morta sua futura esposa, tomou a roupeta da Companhia, onde foi o maior barrete da Província."
Uma breve explicação, talvez necessária, é que Pedro Taques, ao dizer que o noivo-viúvo "tomou a roupeta da Companhia", em lugar de buscar novo casamento, estava informando que o estudante de gramática latina decidiu ser jesuíta.
O terceiro caso foi um pouco diferente, senão algo curioso. Lê-se na Nobiliarchia:
"Dona Ana de Castro e Quevedo foi casada com Salvador Bicudo de Mendonça, natural de São Paulo, onde faleceu a 15 de junho de 1697, e foi sepultado na igreja dos reverendos e religiosos carmelitas no jazigo de seus avós, não consumou o matrimônio por achaques que tinha, como declarou no seu testamento."


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sexta-feira, 11 de março de 2016

César e a duração da noite na Grã-Bretanha

Como os romanos descobriram que a duração da noite não era a mesma em lugares diferentes


A ciência, na Antiguidade, avançava com a ajuda de acontecimentos não exatamente científicos - ou seja, com um empurrãozinho do acaso, uma vez que a ideia de planejar experimentos sob estrito controle, com uma  observação cuidadosa dos resultados, não era ainda praticada como regra. No entanto, em todos os tempos, cérebros inteligentes foram capazes de observar coisas que pareciam não funcionar como esperado, tirando, daí, conclusões interessantes (ainda que nem sempre exatas).
Um caso desses ocorreu quando César e suas tropas chegaram à Britânia (*) em meados do primeiro século antes de Cristo. Ocorre que os romanos daquele tempo marcavam as horas com o emprego de relógios de água, e, com o uso deles, foi possível constatar que, àquela época do ano, as noites na ilha eram mais curtas que no Continente. Desse fato podemos extrair ao menos duas conclusões:
  • Os romanos, até esse tempo, ainda não sabiam que a latitude era um fator importante para determinar a duração do dia e da noite;
  • A guerra, que levava devastação a tantos territórios, acabou contribuindo para fazer avançar o conhecimento científico. 
Comete erro grave, porém, aquele que acha que há aqui uma boa justificativa para investidas bélicas. Pacíficas expedições comerciais, por exemplo, não seriam capazes de proporcionar o mesmo efeito?

(*) Ou Grã-Bretanha, se assim preferirem os leitores, em lugar do nome que era usual entre os antigos romanos.


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quarta-feira, 9 de março de 2016

Zona Tórrida

As grandes navegações dos Séculos XV e XVI provaram que as classificações climáticas adotadas pelos sábios da Antiguidade continham ideias absurdas


"É sempre um prazer ver as velhas e respeitáveis verdades 'respeitadas pelo tempo' de nossa infância esfrangalhadas e atiradas ao vento."
Richard Burton (1)

A ideia de classificar o mundo em três zonas climáticas surgiu, ao que parece, na cabeça de Eratóstenes (cerca de 276 a.C. a 195 a.C.), um sábio helenista que viveu em Alexandria (a do Egito). Foi ele mesmo quem colocou em prática um experimento que permitiu, naqueles tempos remotos, medir com razoável precisão a circunferência da Terra. Mas não foi só. Para chegar à noção de que a Terra tinha três zonas climáticas (frígida, temperada e tórrida), Eratóstenes precisava ter já algum conhecimento das condições do planeta em áreas que nunca havia visitado, além de supor, naturalmente, uma correspondência de climas ao longo da esfera terrestre.
Antes dele, porém, outros já haviam considerado a existência de uma misteriosa região, que, segundo conjecturavam, era tão quente que de modo algum poderia ser habitada. E, como Aristóteles (c. 384 a.C. - 322 a.C.) estava entre os defensores dessa ideia, a dita opinião foi, por muito tempo, considerada por muitos uma verdade incontestável, levando-se em consideração o prestígio atribuído ao pensamento do Estagirita entre a intelectualidade medieval.

Zonas climáticas da Terra, de acordo com a Cosmographia de Petrus Apianus,
publicada em Paris em 1553

As grandes navegações dos Séculos XV e XVI vieram provar que Aristóteles e companhia estavam simplesmente errados. Muito errados. Havia, é fato, uma região da Terra cujas temperaturas eram mais elevadas que as conhecidas na Europa da época. Não era, porém, em absoluto, impossível a existência de vida, inclusive humana, nesse lugar. E, já que na Antiguidade houve, também, quem achasse que a suposta zona tórrida devia ser um ótimo lugar, a coisa assumiu proporções de uma batalha ideológica, ainda que muitos séculos depois que os pensadores gregos e helenistas tinham andado por este pequeno planeta. Um melhor conhecimento da Terra, em decorrência das viagens marítimas, acabou, finalmente, com as dúvidas.
O Padre Simão de Vasconcelos, jesuíta que viveu no Brasil durante o Século XVII, escreveu bastante sobre o "desmentido" em relação às teorias relacionadas à zona tórrida, desde que se descobrira a América e, mais especificamente, desde que se passara a explorar o Hemisfério Sul:
"Confesso que andando correndo esta terra", observou ele, "e considerando a perfeição de sua formosura, me ria comigo algumas vezes, lembrando dos ditos dos antigos, e do engano em que viveram tantos séculos." (²)
Explicou, então, aos leitores das suas Notícias Curiosas e Necessárias:
"Aristóteles, o príncipe dos sábios, no segundo livro de seus Meteoros, capítulo V, com toda a escola de seus discípulos, foi o primeiro que infamou a América (³), apregoando dela e de toda a mais terra que corresponde à Zona a que chamava Tórrida, entre os dois círculos solstícios de Câncer e Capricórnio, ser terra inútil, seca, requeimada e incapaz de fontes, rios, pastos e arvoredos, e, por conseguinte deserta para sempre, e inabitável aos homens, pelos excessivos ardores causados da proximidade do Sol, que anda sempre sobre ela." (⁴)
Dando asas à imaginação, Simão de Vasconcelos pôs-se a pensar sobre qual seria a reação dos sábios da Antiguidade se pudessem ver o que era, de fato, a região do mundo à qual chamavam Zona Tórrida:
"Que diriam, se ressuscitassem hoje conosco, e vissem o que vemos? Sem dúvida que arrependidos diriam que a terra do Brasil, toda a América e toda a meia Zona, a que chamavam Tórrida, não só não é terra inútil, seca, requeimada, deserta, inabitável para gente humana, mas pelo contrário, que é uma região temperada, amena, abundante de chuvas, orvalhos, fontes, rios, pastos, verdura, arvoredos e frutos para perfeita habitação de viventes." (⁵)
Apresentou, por fim, em contraste, a opinião dos que, segundo ele, entendiam que a Zona Tórrida era não somente uma região perfeitamente ecúmena, mas ainda um verdadeiro paraíso terrestre:
"Não só os homens de nossos séculos, houve também muitos dos antigos que acertaram no conhecimento desta verdade. Assim o afirmavam Eratóstenes, Políbio, Ptolomeu, Avicena e não poucos dos nossos teólogos, de que faz menção São Tomás [...], que chegam a defender que nesta parte debaixo da linha equinocial criara Deus o paraíso terrestre, por ser esta a parte do mundo mais temperada, deleitosa e amena para a vida humana. Isto clamavam já tanto dantes estes autores, porém não eram cridos." (⁶)
Paraíso terrestre? Bem, aí já há certo exagero...

(1) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 306.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 236.
(3) Sem jamais tê-la visto e, provavelmente, sem ter certeza de sua existência.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de. Op. cit., p. 220.
(5) Ibid., pp. 228 e 229.
(6) Ibid., pp. 229 e 230.


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segunda-feira, 7 de março de 2016

Uso de conchas marinhas por colonizadores na Capitania de São Vicente

Hoje a prática está fora de moda, mas antigamente, quando alguém se propunha a escrever a história do Brasil, tão logo dava sua versão do Descobrimento, passava a gabar as riquezas naturais da terra, suas espécies vegetais muitíssimo curiosas, seus frutos saborosíssimos, e, para coroar tantos elogios, sua fauna variadíssima. Foi assim com Pero de Magalhães Gândavo, com Gabriel Soares, com Frei Vicente do Salvador. Anchieta, em várias de suas cartas, foi pelo mesmo caminho. Já dentro do Século XIX, alguns nomes destacados da historiografia brasileira evitaram romper com essa espécie de tradição multissecular. Não sei, leitores, se é questão para riso ou para choro, mas quem hoje lê suas obras não consegue fugir à incômoda pergunta: se tudo era tão perfeito, como é que as coisas saíram do jeito que são? Porém, a título de consolo, será útil considerar que indagação semelhante poderia ser feita em praticamente qualquer lugar deste planeta.
Mas voltemos ao assunto das glórias naturais do Brasil. Sebastião da Rocha Pita, cuja História da América Portuguesa foi publicada pela primeira vez em 1730, observou que no litoral brasileiro podiam ser encontradas "algumas ostras de tanta grandeza que as conchas delas (como de madrepérola por dentro) servem de pratos de mesa; outras se acharam tão portentosas que serviram de ministrar águas às mãos; e há tradição que indo visitar esta província [Capitania de S. Vicente] o bispo da Bahia D. Pedro Leitão, em uma concha destas lhe lavaram os pés como em bacia." (¹)
Pois bem, como notam os leitores, no trecho citado Rocha Pita estava exaltando as maravilhas da Capitania de São Vicente, e isso a despeito de, segundo as aparências, não demonstrar apreço descomunal por ela e por seus moradores; em boa verdade, porém, é preciso assumir que a ojeriza era recíproca. Autores paulistas não tardaram a apontar defeitos na História da América Portuguesa, até porque nem era preciso observação demasiado apurada para encontrá-los.
Neste caso, entretanto, devemos fazer justiça ao historiador natural da Bahia. Ele não estava mentindo quanto às tais conchas de tamanho avantajado. Elas existiam, mesmo, e ainda existem, embora, como se sabe, só possam ser encontradas em quantidade reduzida, e não com a abundância dos primeiros tempos coloniais. Sua observação quanto ao uso que delas faziam os paulistas é relevante para mostrar que, se faltavam aos colonizadores muitos dos objetos a cujo uso, como europeus, estavam acostumados (²), sobrava em tal gente a perseverança para sobreviver na América, fazendo uso dos recursos que se apresentavam disponíveis.

(1) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 65.
(2) Pratos e bacias, neste caso.


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sexta-feira, 4 de março de 2016

Licurgo e as leis de Esparta

Os antigos espartanos diziam que Licurgo era seu legislador, ou seja, o homem que havia criado as severas leis sob as quais Esparta era governada. Militarismo, domínio absoluto por parte da elite que detinha a propriedade da terra, educação rígida da juventude e repressão aos hilotas - com alguma licença, poderíamos dizer que lá vigorava um regime totalitário à moda da Antiguidade. E, se acreditássemos pura e simplesmente na tradição, tudo isso era responsabilidade de Licurgo.
O problema é que não se conhece grande coisa sobre essa ilustre personagem, e há até quem duvide de sua existência (o que não deveria surpreender, já que mesmo Homero é, nesse sentido, questionado por não poucos especialistas). Não se conhecem documentos escritos pelo próprio Licurgo, e toda a informação de que se dispõe é fruto da tradição registrada por autores que viveram muito depois da época em que se supõe que ele possa ter existido.
Entre os historiadores antigos que falaram sobre o legislador espartano está Políbio de Megalópolis, um grego que viveu entre romanos no segundo século antes de Cristo. Pois bem, de acordo com Políbio, Licurgo era um hábil usuário das crenças religiosas populares, já que buscava sempre referendar suas decisões e ideias como sendo originárias do oráculo de Delfos. Esperto, ele, não?
Deixando de lado as questões - quando, onde e se - sobre Licurgo, e assumindo que os espartanos eram muito obedientes (por bem ou por mal) às suas leis, devemos entender que o uso político das ideias religiosas em voga só era possível porque as pessoas de fato acreditavam nelas, e isso não se restringia aos pouco refinados membros da elite de Esparta. Foi também Políbio quem registrou a informação de que Cipião (conhecido como "Africano", militar romano, cuja existência está muito bem documentada), exatamente antes de atacar Cartagena, durante as Guerras Púnicas, serviu-se da religiosidade de seus comandados para incitá-los a atos de bravura. Em discurso a eles dirigido, prometeu que daria coroas de ouro àqueles que fossem os primeiros a escalar a muralha da cidade, além de outros prêmios que os generais costumavam oferecer; mas, para garantir a coragem das tropas, afirmou que, em sonhos, o deus Netuno lhe aparecera, assegurando seu favor aos romanos durante o combate. Coisas da Antiguidade, logo se vê.


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quarta-feira, 2 de março de 2016

Daguerreótipos

"O procurador vivera até ali na ignorância do que podia valer a pintura, salvo para fazer alguns retratos, e isto mesmo nem era já aplicação sensata depois do daguerreótipo, então em plena posse de ambos os mundos."
Machado de Assis, Silvestre

Nos anos trinta do Século XIX havia uma porção de gente fazendo experimentos cujo objetivo era a criação de técnicas que permitissem o registro de imagens - aquilo a que hoje, genericamente, chamamos fotografia. Sim, tratava-se de capturar a luz que entrava em uma caixa através um pequenino orifício (câmara escura), mas o grande problema da época era achar um modo de gravar a imagem produzida, tornando-a permanente. 
Um desses pesquisadores foi Louis-Jacques-Mandé Daguerre, que, entre 1837 e 1838, desenvolveu o método de revelação com mercúrio de placas de prata iodadas, conhecido como daguerreotipia. As imagens assim obtidas foram, por consequência, chamadas "daguerreótipos". O processo de Daguerre, mediante longa exposição (às vezes, até quinze minutos) produzia uma imagem "em positivo", mas avanços posteriores permitiram uma redução significativa no tempo de exposição e a reprodução das imagens sobre papel. Para os padrões da época, o resultado era considerado muito bom.
O fato é que, com este ou com outros métodos, a nascente fotografia despertava grande interesse; virou moda, e até símbolo de distinção social, fazer-se retratar mediante um daguerreótipo. 
O Almanaque Laemmert de 1854 trazia o seguinte anúncio, relativo a uma "Oficina de Daguerreótipo" existente no Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil:
"Este estabelecimento, dirigido pelo distinto artista A. Verre, é o único nesta Corte, para dar aos retratos sobre papel e marfim, esse brilho no colorido, esse bem acabado no trabalho que mostra à primeira vista o talento do retratista e a obra tocada por mãos de mestre: a oficina está aberta todos os dias das 10 horas da manhã às 3 da tarde." (¹)


Após essa generosa exibição de modéstia, será útil recordar que a mesma edição do Almanaque trazia ainda como anunciantes outros três estabelecimentos dedicados à fotografia, sendo um deles também na rua do Ouvidor (como o do Sr. A. Verre), outro na rua dos Latoeiros e o último na rua dos Ourives.
Muitos profissionais que trabalhavam em estúdios fotográficos no Brasil do Século XIX eram estrangeiros. O pintor François Biard, que esteve no Brasil entre 1858 e 1859, considerou que aprender fotografia seria útil para ajudá-lo a registrar imagens do País, sempre que não pudesse fazê-lo com pincéis e tintas. Assim, arranjou um equipamento e tratou de começar seus experimentos, que se revelaram um tanto desastrados, a princípio, mas que, afinal, acabaram sendo bastante produtivos. (²). Enquanto viajava, andava à procura de fotógrafos, para, através deles, travar contato com novas técnicas ou adquirir material fotográfico (o que, naquele tempo, significava mais ou menos o mesmo que dispor de um laboratório de química). Numa dessas ocasiões, anotou em seu registro de viagem (³):
"Vim a conhecer, por intermédio do Sr. Costa, um francês que chegara de Lima; era relojoeiro e tirava daguerreótipos." (⁴) 

François Biard fotografando (⁵)
O que há de muito interessante sobre este relato é que o encontro ocorreu em Manaus, que era, então, uma pequenina povoação, antes que o surto de exportação de borracha fizesse dela um centro importante às margens do rio Negro. Ou seja, era uma prova acabada de que a fotografia gerava interesse, fazia muitos adeptos, dava lucro e suscitava um novo ramo artístico, mesmo em pequenas localidades. 

O pintor François Biard tendo, à esquerda, seu equipamento de fotografia (⁶)

(1) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 522.
(2) Biard conjecturava que, em alguns pontos da floresta amazônica, o seu equipamento de fotografia provavelmente era o primeiro que chegava.
(3) Os desenhos em (5) e (6) são de E. Riou, a partir de esboços do próprio Biard.
(4) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 164.
(5) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 569.
(6) Ibid., p. 333.


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