Muitos dentre os primeiros colonizadores que se estabeleceram no Brasil acabaram casados com mulheres indígenas - uns poucos, "na lei da graça", como dizia a Igreja, mas a maioria sem maiores formalidades que a decisão de viver sob o mesmo teto. Não tardou, porém, que sacerdotes (jesuítas, principalmente), protestassem contra aquilo que entendiam ser um desregramento dos colonos. Não só prescindiam da chancela da Igreja para suas uniões, mas havia quem se atrevesse a ter não apenas uma, mas várias mulheres... Ninguém se esqueça de que a poligamia era um enorme escândalo, e severamente proibida pelas leis portuguesas. A questão é que, nas terras da América, dificilmente haveria quem se desse ao trabalho de, em nome do Rei, fiscalizar tamanha desobediência.
Por conta disso tudo, não era incomum que os padres solicitassem que do Reino fossem trazidas órfãs portuguesas, para futuras esposas dos colonos. Fosse, porém, porque não havia tantas órfãs para tantos colonos, fosse por outras razões que nem vale a pena mencionar (a imaginação dos leitores suprirá esta aparente lacuna), o caso é que os padres nunca conseguiam domar a má conduta dos reinóis, não faltando, dentre os jesuítas, quem afirmasse que era justamente o péssimo exemplo dos colonizadores a maior dificuldade que havia à catequese dos indígenas.
O desenvolvimento das povoações coloniais com base em atividades econômicas ligadas à agricultura e, mais tarde, à mineração, possibilitou o aparecimento de uma elite para a qual o casamento dos filhos vinha a ser um importante negócio, um assunto que envolvia o reforço de vínculos de interesse político e econômico. Nesse contexto, eram os chefes das famílias que entabulavam as negociações, combinavam o valor do dote a ser pago pela família da moça e acertavam os mais detalhes que fossem porventura convenientes. Esperava-se, como regra, que a negociação fosse tacitamente aceita pelo noivo e pela noiva. A negativa, por parte de uma menina, era, com frequência, punida com a condenação à vida de religiosa, com vocação ou sem ela, em algum convento ou "recolhimento", quer no Brasil, quer no Reino.
Não era nada extraordinário que meninas de quatorze ou quinze anos fossem negociadas em casamento com homens de muito mais idade, já várias vezes viúvos. Afinal, esses eram tempos em que a morte de mulheres durante um parto não era nenhuma raridade. Igualmente comum é que noivo e noiva só se conhecessem às vésperas da cerimônia religiosa de casamento, quando não ocorria se verem, pela primeira vez, à porta da igreja. Casamentos por procuração eram parte do mesmo cardápio, e havia até casos em que o noivo ou a noiva precisava empreender uma longa viagem, eventualmente transoceânica, para que o casamento se realizasse.
Acontece que, apesar de tantas negociações, às vezes as coisas davam errado. A Nobiliarchia Paulistana, escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, registra vários casos, dos quais selecionei três, para recreação dos leitores.
Primeiro caso:
"D. Maria Teresa Isabel Paes foi contratada para casar com o capitão-mor Fernando Dias Paes, filho primogênito do capitão-mor e guarda-mor-geral das minas de ouro Garcia Rodrigues Paes [...]; e não teve efeito a consumação do matrimônio porque mandando a sua procuração contraente, por ela foi recebido, e vindo em marcha para São Paulo faleceu antes de ver sua esposa."
"D. Maria Teresa Isabel Paes foi contratada para casar com o capitão-mor Fernando Dias Paes, filho primogênito do capitão-mor e guarda-mor-geral das minas de ouro Garcia Rodrigues Paes [...]; e não teve efeito a consumação do matrimônio porque mandando a sua procuração contraente, por ela foi recebido, e vindo em marcha para São Paulo faleceu antes de ver sua esposa."
Outro caso, semelhante ao primeiro, mas de consequência um tanto inusitada:
"D. Inês Pedroso de Barros faleceu solteira a tempo que seus pais a tinham contratado para casar com Estanislau de Campos, excelente estudante de gramática latina, o qual vendo morta sua futura esposa, tomou a roupeta da Companhia, onde foi o maior barrete da Província."
Uma breve explicação, talvez necessária, é que Pedro Taques, ao dizer que o noivo-viúvo "tomou a roupeta da Companhia", em lugar de buscar novo casamento, estava informando que o estudante de gramática latina decidiu ser jesuíta.
O terceiro caso foi um pouco diferente, senão algo curioso. Lê-se na Nobiliarchia:
"Dona Ana de Castro e Quevedo foi casada com Salvador Bicudo de Mendonça, natural de São Paulo, onde faleceu a 15 de junho de 1697, e foi sepultado na igreja dos reverendos e religiosos carmelitas no jazigo de seus avós, não consumou o matrimônio por achaques que tinha, como declarou no seu testamento."
Veja também:
O que terá acontecido à Dona Ana de Castro e à Dona Maria Teresa? Será que a família lhes negociou outro casamento? Em muitos lugares o casamento continua a ser um grande negócio familiar.
ResponderExcluirMagnífica postagem, amiga historiadora.
Ruthia d'O Berço do Mundo
Maria Teresa, ao que parece, casou-se novamente. Quanto à viúva do que "não consumou o casamento por achaques que tinha", não tenho informações rsrsrssss
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