Hoje a prática está fora de moda, mas antigamente, quando alguém se propunha a escrever a história do Brasil, tão logo dava sua versão do Descobrimento, passava a gabar as riquezas naturais da terra, suas espécies vegetais muitíssimo curiosas, seus frutos saborosíssimos, e, para coroar tantos elogios, sua fauna variadíssima. Foi assim com Pero de Magalhães Gândavo, com Gabriel Soares, com Frei Vicente do Salvador. Anchieta, em várias de suas cartas, foi pelo mesmo caminho. Já dentro do Século XIX, alguns nomes destacados da historiografia brasileira evitaram romper com essa espécie de tradição multissecular. Não sei, leitores, se é questão para riso ou para choro, mas quem hoje lê suas obras não consegue fugir à incômoda pergunta: se tudo era tão perfeito, como é que as coisas saíram do jeito que são? Porém, a título de consolo, será útil considerar que indagação semelhante poderia ser feita em praticamente qualquer lugar deste planeta.
Mas voltemos ao assunto das glórias naturais do Brasil. Sebastião da Rocha Pita, cuja História da América Portuguesa foi publicada pela primeira vez em 1730, observou que no litoral brasileiro podiam ser encontradas "algumas ostras de tanta grandeza que as conchas delas (como de madrepérola por dentro) servem de pratos de mesa; outras se acharam tão portentosas que serviram de ministrar águas às mãos; e há tradição que indo visitar esta província [Capitania de S. Vicente] o bispo da Bahia D. Pedro Leitão, em uma concha destas lhe lavaram os pés como em bacia." (¹)
Pois bem, como notam os leitores, no trecho citado Rocha Pita estava exaltando as maravilhas da Capitania de São Vicente, e isso a despeito de, segundo as aparências, não demonstrar apreço descomunal por ela e por seus moradores; em boa verdade, porém, é preciso assumir que a ojeriza era recíproca. Autores paulistas não tardaram a apontar defeitos na História da América Portuguesa, até porque nem era preciso observação demasiado apurada para encontrá-los.
Neste caso, entretanto, devemos fazer justiça ao historiador natural da Bahia. Ele não estava mentindo quanto às tais conchas de tamanho avantajado. Elas existiam, mesmo, e ainda existem, embora, como se sabe, só possam ser encontradas em quantidade reduzida, e não com a abundância dos primeiros tempos coloniais. Sua observação quanto ao uso que delas faziam os paulistas é relevante para mostrar que, se faltavam aos colonizadores muitos dos objetos a cujo uso, como europeus, estavam acostumados (²), sobrava em tal gente a perseverança para sobreviver na América, fazendo uso dos recursos que se apresentavam disponíveis.
(1) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 65.
(2) Pratos e bacias, neste caso.
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