quinta-feira, 27 de julho de 2023

Mercadorias para troca na falta de dinheiro amoedado em São Paulo

Era o Século XVII, ano de 1626. As correrias de paulistas pelo sertão, para captura de indígenas, ocorriam quase sem impedimentos, apesar das ordens em contrário de autoridades distantes. Afinal, a Justiça colonial quase sempre fazia vistas grossas porque se supunha que, em suas buscas por quem escravizar, um dia desses os paulistas acabariam topando com ouro ou prata, sonho dourado - sem trocadilho - do monarca português. Apesar disso, e talvez por causa disso, a existência de um número crescente de braços escravizados na lavoura fazia com que São Paulo fosse, nesse, tempo, povoação conhecida como área de fartura, capaz até de suprir a falta de víveres em outras regiões do Brasil.
Não obstante, faltava dinheiro, entenda-se, dinheiro amoedado, que servisse como equivalente para o comércio. Por consequência, a Câmara da vila de São Paulo tomou a iniciativa, em 19 de janeiro de 1626, de determinar quais mercadorias deveriam ser aceitas por mercadores, fossem eles habitantes do lugar ou vindos de outras localidades, com intenção de fazer comércio em seu território:
 "[...] visto não haver dinheiro na terra, os mercadores que a ela vêm, assim moradores como os que a ela vêm e forasteiros que trouxerem fazendas a esta vila para vender a não vendam senão a troco de fazendas da terra. [...]." (¹)
Zelosos pelos interesses dos moradores (e próprios), os camaristas de São Paulo tiveram o cuidado de determinar que mercadorias entrariam nas trocas, e qual seria o seu equivalente em dinheiro da época, resolvendo que "era bem que dessem [...] as carnes de porco a duas patacas a arroba nesta vila, e a farinha de trigo a duzentos réis o alqueire, digo a doze vinténs, e o trigo em grão a cento e sessenta réis, e o pano de algodão a oito vinténs a vara, o couro de vaca a oito vinténs e o arrátel de cera a meio tostão por lavrar e a lavrada a oitenta réis [...]." (²)  
Estes eram os artigos de que havia um excedente, e que poderiam entrar nas transações comerciais em espécie aprovadas pela Câmara. Compare-se, por exemplo, com o acordo feito pela Câmara com um oleiro décadas antes, em 1575, para que fizesse telhas para as casas da vila, acordo esse que determinava que, por não haver dinheiro amoedado, as telhas seriam pagas com carne bovina e suína, couros e cera, e será, desse modo, plenamente comprovado que as atividades econômicas não haviam, desde então, passado por grandes alterações. A vila crescera um pouco, é fato, mas não passara, ainda, por grandes novidades no dia a dia colonial.  

(1) O trecho citado da Ata da Câmara de São Paulo de 10 de janeiro de 1626 foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(2) Ibid. 


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quinta-feira, 20 de julho de 2023

Cincinato e os romanos que aravam com bois

Homem arando a terra com bois, imagem do Século XVI (²)
Os antigos romanos, desde tempos remotos, conheciam o uso do arado. Desse instrumento agrícola e dos bois que o puxavam dependia o preparo da terra que seria cultivada. De acordo com Lúcio Júnio Moderato (mais conhecido como Columella) (¹), no Livro II de Res rustica, os bois nunca deviam ser levados à manjedoura quando cansados e suando. Nada de apressar animais tão úteis, portanto, para encerrar logo o trabalho do dia! Quando já estivessem tranquilos, podiam receber alguma comida, não de uma só vez, mas pouco a pouco (exercício de paciência para os lavradores). Depois disso, deviam ser levados a beber água livremente e, afinal, podiam comer quanto quisessem. Como os bois eram parte importante do patrimônio de um fazendeiro romano, esperava-se que cuidasse deles quase com devoção. 
Bem, meus leitores, essa devia ser a rotina diária de um dos grandes nomes do patriciado romano dos primitivos tempos da República, Lúcio Quíncio Cincinato (³), figura que parecia encarnar os ideais de trabalho e simplicidade que os autores de Roma professavam valorizar, mas que, ao menos no final da República e já nos dias do Império, foram quase completamente esquecidos. Um episódio da vida de Cincinato ilustra perfeitamente a questão, e foi assim descrito por Aneu Floro (⁴) no Livro I de Rerum Romanarum:
"Équos e volscos foram derrotados por Lúcio Quíncio [Cincinato], que passou de agricultor a ditador, e com suprema coragem libertou o acampamento do cônsul Marco Minúcio, que estava sob cerco e quase derrotado pelo inimigo. Era estação de plantio quando o lictor (⁵) encontrou o patrício trabalhando com o arado. Foi ao acampamento e, para não interromper as ocupações habituais, passou os derrotados sob o jugo, como se fossem animais de carga. Finda a expedição, o agricultor triunfante voltou aos seus bois [com o arado]. [...] Foram apenas quinze dias entre, feito ditador, fazer a guerra, vencer e retornar ao seu trabalho [no campo]." (⁶)

A Roma dos dias de Cincinato não era, ainda, grande coisa. As transformações sociais decorrentes da expansão militar, contudo, fizeram dela um império. Teria sido o preço demasiadamente alto? 

(1) Autor romano do Século I. 
(2) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et OviparorumZürich: Christof Froshover, 1560, p. 10. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) c. 519 a.C. - c. 430 a.C.
(4) Viveu entre os Séculos I e II, e foi contemporâneo do imperador Adriano.
(5) Funcionário público enviado para informar Cincinato quanto à situação das forças romanas. 
(6) FLORO, Rerum Romanarum, Livro I. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.



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quinta-feira, 13 de julho de 2023

Meio de transporte usado pelas mulheres dos senhores de engenho quando iam à missa

Documento importante para a compreensão quanto ao modo de vida no Nordeste brasileiro por volta do começo do Século XVII, a obra Diálogos das Grandezas do Brasil (¹) inclui a informação de que as mulheres dos senhores de engenho, quando saíam de casa para ir à missa ou para visitar parentes, não tinham por hábito colocar os pés no chão, e muito menos andar a cavalo: iam sentadas em uma rede que, por sua vez, era carregada por escravos. Ingrata tarefa, a deles! No Diálogo Sexto, Brandônio afirma:
"[...] As mulheres [dos senhores de engenho] se trajam muito bem e custosamente, quando vão fora, caminham em ombros de escravos, metidas dentro de uma rede." (²)
Alviano, com certa estranheza, retruca:
"E não fora melhor em cadeira, ou em palanquim, como os da Índia [sic]?" (³)
Pacientemente, Brandônio explica:
"Não, porque a rede é excelente para se andar nela por caminhos e da cadeira seria trabalhoso usar-se, com respeito que sucedem estarem as igrejas desviadas, e da mesma maneira as visitas que fazem às suas amigas e parentas; também costumam levar consigo, para seu acompanhamento, além dos homens que levam de pé ou de cavalo, duas ou três escravas do gentio da Guiné ou da terra, que se não desviam de ir sempre ao redor da rede, a que acomodam uma alcatifa por baixo." (⁴) 
Notando, de passagem que alcatifa é uma espécie de tapete, é relevante que as redes fossem preferidas porque os caminhos eram precários, em particular em regiões rurais, onde estavam os engenhos. Mas o que acontecia à gente importante que residia nas maiores povoações pela mesma época? 
Nas cidades, a elite econômica, à medida que o processo de colonização se consolidou, tornou-se adepta das cadeirinhas de arruar, algumas delas bastante luxuosas. Uma menção a elas por José de Alencar, em As Minas de Prata, obra do Século XIX, mas ambientada no começo do Século XVII, a mesma época a que se referem os Diálogos, diz: "[...] a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia". Nada surpreendente, se considerarmos que ir à missa, para além de um dever religioso, era oportunidade para contato social, e ouvir sermões era uma diversão muito apreciada, então.
Concluindo, deve-se observar que, nesse cenário, as cadeirinhas de arruar e palanquins de luxo acabavam sendo mais um instrumento para ostentar o poderio derivado da riqueza que o açúcar proporcionava, diante dos olhares admirados da gente miúda que, à margem, nas ruas, tudo observava. As redes, porém, não caíram em desuso tão cedo - continuaram em serviço em algumas localidades, carregadas por escravos, até mesmo nos dias do Império, como meio de transporte - se é que, de fato, merecem esse nome.

(1) A autoria é atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 297.
(3) Ibid.
(4) Ibid. 


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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Pequeno monçoeiro

Um pedaço de madeira, uma faca velha meio cega. O menininho luta para entalhar a forma de um barco, como aqueles que, de vez em quando, vê partir pelo Tietê, no rumo do sertão. 
Ainda é muito cedo e a neblina cobre o rio. Deixando de lado a ferramenta improvisada, corre até o barranco, e olha, e olha... 
Quem sabe? Parece ver movimento ao longe. Seriam os batelões que, há dois anos, haviam partido, levando-lhe o pai, entre tantos outros aventureiros?
A névoa não se dissipa, só um ligeiro ruído na água reacende a esperança. Por pouco tempo. Manejando o varejão, um desconhecido se aproxima, em pé sobre a canoa, e passa adiante, acenando aos olhinhos que o espreitam.
Com persistência grande para pequena idade, volta ao trabalho. Quer fazer o seu barquinho, colocá-lo na água e pensar no dia em que também partirá. Na imaginação de menino, talvez seja isso o significado de ser homem. Abrirá caminho nas florestas, achará ouro, será rico e respeitado. De que mais não será capaz?
Esse sonhar acordado logo acaba, já a mãe é quem grita:
- Anda, menino, vem me ajudar a tirar a palha do milho!...
Pés descalços, corre à casinha em que sós, moram agora a mãe e ele. Manejar o pilão requer uma força que seus braços ainda não têm. Mas, em um acesso de valentia, quer ser grande, quer proteger a mãe, e se esforça para fazer do milho a farinha de que tanto precisam para viver.


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