quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Crimes dos traficantes de escravos

A luta pela extinção do tráfico de africanos escravizados e pela abolição da escravidão, em si, foi um processo longo no Brasil, que ocupou grande parte do Século XIX, e praticamente a totalidade da vida nacional após a Independência. 
D. João VI se comprometera a abolir o tráfico, mas foi somente na década de 1830 que, legalmente, houve uma proibição formal, que não se cumpriu. Nesse tempo é que um pequeno livro com um título enorme, Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica (¹), escrito por Frederico Leopoldo César Burlamaqui, foi publicado e começou a circular, atacando as inconveniências da escravidão, sob os mais diversos aspectos. Seu autor, em poucas palavras, expressou muito bem por que razão o tráfico de africanos era, afinal, um crime contra a humanidade:
"Amontoar indivíduos da espécie humana no interior de um navio, carregá-los de ferros (²), exterminá-los ao menor sinal de resistência, dar-lhes um sustento insalubre e mesquinho, negar-lhes as vestimentas que cubram a nudez, trazê-los ao mercado como brutos animais, e vender para sempre a sua liberdade, a de seus filhos e descendentes; degradar assim uma parte do gênero humano, negando a seu respeito a existência de todos os deveres morais, e entregá-la ao exercício contínuo de todas as violências, de que a mais refinada tirania pode ser suscetível: eis o quadro resumido dos crimes de que são responsáveis perante Deus e os homens, os primeiros introdutores de escravos, e seus imitadores!" (³) 
Como ativista pelo fim da escravidão, Burlamaqui não supunha que apenas uma proibição seria efetiva para suprimir o tráfico de africanos; defendia a pena de morte para os que isso faziam, porque, afinal, não passavam de piratas:
"Penso que o melhor meio de os convencer [os traficantes de africanos] seria o de aplicar-lhes as penas mais fortes, e fazer a lei a mais rigorosa, digo mesmo a mais bárbara, que de uma vez cortasse o cancro pela raiz, exterminando a todos os contrabandistas [de escravos], seus cúmplices e protetores, sem admitir desculpas e subterfúgios; e tanto mais pois que tais malvados são piratas estrangeiros que as leis pátrias não devem favorecer de maneira alguma." (⁴)
Embora, durante o Império, a pena capital fosse admitida no Brasil, nunca foi prevista para traficantes de escravos. Apesar disso, uma lei de 1850, respaldada inclusive pelas circunstâncias daquele momento, resultou, finalmente, na extinção do tráfico. Disto já tratamos neste blog, ao falar da Lei Eusébio de Queirós. 

Captura de africanos para escravização (⁵)

(1) Publicado em 1837, provavelmente foi escrito por volta de 1834.
(2) "Carregar de ferros" significa acorrentar. 
(3) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 2.
(4) Ibid., p. 9.
(5) THE YEAR'S ART. New York, Harry C. Jones, 1893, p. 122. Obra de Frederic Remington. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Desmatamento, há cento e vinte anos

Vivemos em dias difíceis, quanto às questões ambientais. Alguns problemas são claramente causados por ação humana - desmatamento, por exemplo - enquanto outros ainda requerem maiores estudos, mesmo que seja fácil admitir que a mão do homem, indiretamente, também esteja neles. Mas, como este é um blog voltado prioritariamente à História, vamos falar do desmatamento e suas consequências, não hoje, mas há cento e vinte anos.
Coelho Neto, em obra publicada em 1904, afirmou:
"Com a morte das árvores desaparecem as fontes; rios que rolavam águas abundantes derivam agora em filetes rasos e tão escassos que uma quente semana de verão é bastante para secá-los [...]. Estrangeiros que percorrem o interior voltam impressionados com a ausência de pássaros [...], tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem um oásis, sem uma árvore, mas os tocos adustos, que apontam à flor da terra, atestam a existência anterior de florestas grandiosas - levou-as o machado, arrasou-as o fogo [...]. O ar vicia-se, o mesmo clima modifica-se, e isto é notado pelos velhos moradores desses lugares, dantes bem-regados e sadios, e hoje secos, ingratos e insalubres, onde o homem não vive, nem a sementeira vinga." (¹) 
É de provocar riso o modo como se fazia derrubada de árvores nesses dias já distantes:
"Um ferro de bom gume (²), o carro e quatro juntas de bois bastam ao que vai à floresta, e quem atravessa as estradas ouve monotonamente os golpes do machado, de repente um grito de aviso e logo o estrondo da queda da árvore talhada." (³)
Comparem, leitores, o som e a velocidade do desmatamento descrito por Coelho Neto àquilo que se faz com umas poucas motosserras. 
No começo do Século XX, as matas eram derrubadas para dar espaço a novas áreas de cultivo de café; também se desmatava para prover lenha para as locomotivas a vapor e para a colocação de dormentes nos trilhos das ferrovias que iam sendo implantadas. Ora, o problema do fornecimento de lenha para as ferrovias foi manejado mediante a introdução e cultivo de espécies vegetais de crescimento rápido, que não interferissem na preservação das matas nativas. Que dizer, porém, daquilo que estamos presenciando? Haverá tempo, ainda, para soluções inteligentes?


Desmatamento no Século XIX para o estabelecimento de uma roça (⁴)

(1) COELHO NETO, Henrique Maximiano. A Bico de Pena
(2) Machado.
(3) COELHO NETO, Henrique Maximiano. Op. cit.
(4) Cf. SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 167. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Altares para os deuses nos portos de Atenas

Pausânias foi um grego que viveu no Século II d.C., e fez-se notável por ter prestado um grande serviço à posteridade: escreveu uma Descrição da Grécia, contando em detalhes como era a Hélade de seus dias. Não fosse por ele, e não saberíamos muitas coisas desse tempo, perdidas nos escombros da civilização.
Ao falar de Atenas, a Descrição da Grécia coloca o leitor na posição de um viajante que chega à cidade por um de seus portos. Pausânias esclarece, então, que em tempos remotos, o único porto era o de Falero, e foi só no tempo de Temístocles que o Pireu tornou-se o mais importante. Apesar disso, Falero ainda era usado, porque ficava mais perto da cidade. Quem viajava entre cidades gregas, geralmente chegava por ele, assim como os navios menores, com menos carga, preferiam-no. O Pireu era para grandes negociantes e embarcações maiores.
Politeístas como eram, os gregos amontoavam estátuas e altares para seus deuses junto aos portos. Não era bom correr o risco de irritar alguma das irascíveis divindades do Olimpo, nem mesmo algum dos heróis, igualmente cultuados. Seguindo a linha de raciocínio de Pausânias (*), quem chegava a Atenas pelo porto de Falero, poderia ver um belo templo em honra da deusa mais importante da cidade, Atena, e, a alguma distância, outro para o culto a Zeus. Vinham então, altares que homenageavam os heróis mitológicos da cidade, filhos de Teseu e Falero, que teria navegado com Jason em tempos distantes, e outro dedicado a um filho de Minos. No meio de muitos outros, um altar consagrado aos deuses cujo nome os atenienses desconheciam. Ainda assim, a cidade e seus habitantes pretendiam obter sua proteção e bom humor. Era politeísmo no mais alto grau, embora, nos dias de Pausânias, os velhos cultos fossem, já, mais convenção que convicção.  

(*) Cf. PAUSÂNIAS. Descrição da Grécia, Livro I. 


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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Como se vestiam os homens que iam à Corte durante o Governo Joanino

Para que alguém se apresentasse diante do príncipe regente, depois rei Dom João VI, era preciso que se vestisse decentemente, dentro dos padrões da moda da época. Mas como era isso?
Joaquim Manuel de Macedo, em Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro, explicou:
"Somente de calções e meias de seda ia-se naquele tempo ao paço, fazer a corte ao rei, e os magistrados usavam, por mais requinte de tafularia (¹), levar aberta a beca para mostrar os calções e as meias de seda." (²) 
O detalhe curioso é que esta moda um tanto ridícula - pelos padrões atuais, mas não daquela época - somente foi abandonada, ainda de acordo com Macedo, por volta do tempo em que ocorreu a antecipação da maioridade do segundo imperador do Brasil:
"[...] O triunfo das calças teve lugar apenas em 1840, com satisfação indizível de todas as pernas finas e de todas as pernas grossas demais.
Os calções e as calças podiam bem servir não só para representar duas épocas distintas, mas ainda dois princípios que se contrariam. Teríamos em tal caso os calções representando a aristocracia, e as calças a democracia." (³)
Calças como representantes da democracia? Ora, reconheçamos, que exagero! Mas houve quem, a despeito da nova moda, perseverasse na antiga:
"Se aceitarem a ideia, pode bem ficar determinado que o último e fiel representante da aristocracia no Brasil foi um antigo inspetor de quarteirão da freguesia de São José, homem constante, que até o último dia da sua vida, anos depois de 1840, usou de calções de ganga amarela." (⁴) 
O tal homem tinha o direito de usar a roupa que quisesse. Mas é de se admitir que, provavelmente, ao vê-lo, parecesse aos circunstantes que estavam fazendo uma viagem no tempo.

(1) Exagero no rigor ao vestir-se.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 44.
(3) Ibid.
(4) Ibid.


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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Mulheres do Brasil Colonial que viviam trancadas em casa

Houve alguma mulher que dirigisse capitania hereditária no Brasil? Sim, ao menos na menoridade do herdeiro, mas isto era exceção. Houve senhoras de engenho? Sim, mas eram exceção. Houve mulheres que comandavam fazenda e escravos na ausência do marido bandeirante em São Paulo? Certamente, embora, neste caso, até fossem numerosas. A maioria das mulheres do Brasil Colonial não tinha oportunidade de frequentar escola e, por isso, muitas não eram capazes sequer de assinar o próprio nome. Exceções? Algumas, como foi, por exemplo, uma religiosa mencionada por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão em Novo Orbe Seráfico Brasílico (¹):
"[...] Nunca teve o tempo ocioso porque ainda algum, que lhe restava dos seus espirituais exercícios e outras ocupações, o gastava em ensinar a umas a língua latina, que sabia muito bem, e a outras a doutrina cristã." (²)
Contudo, muitas mulheres que viveram no Brasil Colonial tinham uma existência de prisioneiras na casa em que moravam, isso quando não eram obrigadas, pelos homens da família, a ingressar em um convento ou em um "recolhimento".
Por que esse costume bárbaro?
A justificativa da época é que assim se fazia para preservar a moralidade e honra da família. Citando mais uma vez frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, veja-se esta referência à casa de certo homem chamado Bartolomeu Nabo Correa:
"[...] vulgarmente se comparava a casa do capitão Bartolomeu Nabo Correa com a clausura do mais religioso convento de freiras capuchas, porque nunca lhe viram porta ou janela aberta, grande documento para os pais de famílias, tendo por certo que tanto perigo correm as mulheres vendo, como sendo vistas, pois pelas janelas dos sentidos entram as distrações dos cuidados." (³) 
Jaboatão contou esse caso horroroso na intenção de servir como bom exemplo, mas não se pode supor que toda família vivesse em tal exagero. Mas as mantilhas que quase todas as mulheres vestiam ao sair de casa e as gelosias que vedavam as janelas e varandas são testemunho poderoso das condições e limites impostos às mulheres dos tempos coloniais. 

(1) Obra datada de 1757.
(2) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Seráfico Brasílico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil, Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 774. 
(3) Ibid., p. 686. 


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sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Cacau e baunilha

A culinária chocolateira de Sebastião da Rocha Pita


O cacau (¹) e a baunilha (²) são plantas nativas do Continente Americano, e parece que foram criados para perfeita harmonia entre si. Sebastião da Rocha Pita, apesar das muitas contestações de contemporâneos à sua História da América Portuguesa (³), tinha, conforme se verá, bom gosto quanto a certo artigo muito amado na atualidade - refiro-me ao chocolate - sobre o qual escreveu, ao falar do cultivo de cacau:
"O cacau [...] é árvore de mediana estatura, de ramos mui apartados do tronco; nasce o pomo todas as luas, sendo mais perfeitos os do verão; têm a forma de um pequeno melão, a cor amarela e suave o cheiro, e dentro umas poucas pevides menores que as amêndoas, mas de mesmo feitio, que são o que propriamente chamam cacau, e dão o nome à árvore e ao pomo; a polpa deste, desfeita em licor suave, serve de regalado vinho aos naturais; as amêndoas ou pevides secas ao sol são a matéria principal do chocolate [...]." (⁴) 
Reconhecendo que a baunilha era uma especiaria notável na composição do chocolate, afirmou, na mesma obra:
"A baunilha nasce em umas delgadas varas, a que no idioma dos naturais chamam cipós, compridas, sempre verdes e cheias de apertados nós, com só duas folhas em cada um; brotam umas bainhas [...]; estando sazonadas, ficam negras; o miolo é cheio de uns grãos mui pequenos, com suco que parece óleo, e cheiro fragrantíssimo, sendo o primeiro ingrediente do chocolate. [...]" (⁵) 
Inicialmente consumido como uma bebida, o chocolate passou por um longo processo de aprimoramento que levou à adição de leite, fazendo nascer, daí, o doce mais apreciado da humanidade. 

(1) Theobroma cacao.
(2) Orquidáceas de várias espécies do gênero Vanilla
(3) A primeira edição foi publicada em 1730. 
(4) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa, 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 17.
(5) Ibid., p. 18.


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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Quem costurava as roupas de dona Leopoldina

Desembarque da princesa Leopoldina no Rio de Janeiro (¹)

Durante muito tempo, ou melhor, desde o início da colonização até que viesse ao Brasil a família real portuguesa, as roupas femininas foram, como regra, costuradas em casa da interessada em usá-las, pela própria dona ou por alguma escrava que, por ter o ofício de costureira, era considerada muito valiosa. Havia alfaiates que, além de trajes masculinos, também faziam roupas simples para mulheres, porém, como fornecedores desses artigos, eram exceção.
Mas veio 1808, veio a família real, vieram as mudanças daí decorrentes, vieram as costureiras francesas, as lojas de comerciantes franceses de artigos para vestuário feminino - tecidos, rendas, fitas, e uma infinidade de outras coisas, sempre anunciadas como última moda em Paris. Daí resultaram esquisitices que, adequadas ao inverno europeu, eram, no mínimo, ridículas sob o sol da capital do Império. "Calculem e façam ideia do que custa a moda e a elegância da cidade do Rio de Janeiro!...", exclamou Joaquim Manuel de Macedo, acrescentando: "[...] em cada corte de seda, em cada toalete, em cada xale, chapéu, gravatinha, etc., a compradora paga e deve pagar no seu tanto proporcional, além do valor e lucro do objeto que adquire, o aluguel da casa, e os honorários dos empregados de escritório, dos caixeiros, das modistas, das costureiras, dos serventes e dos criados, e antes de tudo isso os tributos da alfândega, que na verdade são de arrasar!..." (²)
Mas, falando das costureiras e modistas, cada uma era tanto mais famosa quanto fosse de maior prestígio a sua clientela. Qual não seria, então, a fama daquela que costurava para dona Leopoldina, a primeira imperatriz do Brasil? Voltemos a Macedo:
"Mlle. Josephine foi a modista da primeira imperatriz do Brasil, e, portanto, de todas as senhoras da corte, e, portanto, de quantas outras senhoras tinham pais e maridos dispostos a pagar frequentemente a habilidade e a fama da modista, cuja tesoura de imperial predileção cortava cara e desapiedadamente." (³)
Estejam certos, leitores, de que, se vivemos em outros tempos, não deixou de haver alguma correspondência, embora os hábitos e sonhos de consumo sejam outros. Não é verdade que quem presta serviço a alguma celebridade, seja lá para o que for, logo ganha fama e tem uma quantidade enorme de imitadores? Em sua essência, a humanidade continua exatamente a mesma.

(1) Cf. DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor.
(3) Ibid.


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