terça-feira, 30 de outubro de 2018

Fundição e forja de ferro no interior do Brasil no Século XIX

Oficina de ferreiro (Museu Histórico e
Geográfico de Monte Sião - MG)
"É verdadeiramente vergonhoso", afirmou Saint-Hilaire (¹), "que num país onde este metal é tão abundante, proceda ainda do estrangeiro grande parte do que consome" (²). De que metal falava? Do ferro. 
Já tratei aqui neste blog de um empreendimento ambicioso, a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, da qual se esperava a produção de artefatos de ferro em larga escala. Seria injusto dizer que ela foi um fracasso absoluto; na mesma proporção seria inadequado sugerir que foi um sucesso retumbante. Assim, persistia a dependência de importações, geralmente de procedência britânica. 
Enquanto isso, em uma localidade remota no interior do Brasil, sem qualquer subvenção do Estado, trabalhava-se o ferro, ainda que em proporções reduzidas, para atender apenas à demanda local. O relato, pouco posterior à Independência, foi feito por Cunha Matos, ao visitar o arraial conhecido como Minas de Carlos Marinho, distrito de São Félix, pertencente, na época, à Província de Goiás:  "É muito abundante em excelente ferro, que vários pobríssimos fundidores reduzem a pequenas barras, que se vendem a 300 réis a libra." (³)
Décadas mais tarde (⁴), Richard F. Burton visitou a mina de Gongo Soco (⁵) e verificou que lá também se trabalhava em ferro, por um processo antiquado, apenas para atender às necessidades da extração de ouro na mesma localidade: "Aqui, a forja é um grosseiro banco de alvenaria, tendo 3,5 metros aproximadamente de comprimento por 3 metros de altura, com duas ou três bacias em forma de funil, de 30 cm de diâmetro, e abertas no fundo, adiante e atrás. [...]. O minério é quebrado em pedaços do tamanho aproximado de uma noz, sem prévio aquecimento ou joeiramento, e misturado na proporção de um terço para dois terços de carvão vegetal, mal medidos, por meio de um cesto; a mistura é colocada nas bacias do forno, que são previamente aquecidas e, de vez em quando, é ajuntado carvão vegetal. [...]. O negro (⁶) encarregado do fogo atiça-o alto com uma haste e sabe que o processo de fundição está terminado quando a espessa fumaça e a chama azul se transformam em uma labareda muito clara." (⁷)
A rabugice que transparece nos escritos de Burton poderia levar à conclusão de que exagerava nas deficiências do sistema observado em Gongo Soco. Não neste caso, porém. O processo adotado era rudimentar. De alta qualidade, somente o minério encontrado na área.

(1) Naturalista francês (1779 - 1853). Esteve no Brasil entre 1816 e 1822.
(2) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 115.
(3) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás Tomo II. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 142.
(4) Em 1867.
(5) Em Barão de Cocais - MG.
(6) Burton queria dizer que o trabalho era feito por um escravo. As ideias racistas desse autor são bastante conhecidas e dispensam comentários. 
(7) BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Ed. Senado Federal, 2001, p.. 371.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Duas coisas sobre as mulheres que os antigos romanos não sabiam

Pode ser que os antigos romanos desconhecessem muitas outras coisas sobre as mulheres, mas para estas duas de que vamos tratar existe comprovação. Ambas podem ser lidas em Naturalis historia, e, segundo todas as aparênciasPlínio, o Velho, (¹), o grande enciclopedista do mundo romano, acreditava piamente no que escreveu. Vejamos, pois..
Homens e mulheres têm número diferente de dentes? (²) Plínio achava que sim: "Homens têm trinta e dois dentes", afirmou, "mulheres têm menos" (³). Só não explicou como foi que chegou a tal conclusão.
Tem mais. Plínio sabia que a população mundial se dividia em destros e canhotos, obviamente em proporções desiguais. A partir desse fato (verídico), pontificou: "A mão direita é mais forte, embora alguns tenham ambas fortes, e outros tenham mais forte a esquerda, o que nunca ocorre em mulheres [...]." (⁴) Ora, meus leitores, contrariando Plínio, posso afirmar, no mais extremo grau de certeza, que sim, isto ocorre em mulheres!
Não imaginem que estou desrespeitando um dos maiores gênios dos dias antigos. Nada disso. A pergunta que devemos fazer é: Por que um sábio como Plínio escrevia essas tolices?
Talvez a resposta esteja, em parte, no modo como se fazia ciência na Antiguidade. Poucos eram dados a investigar supostas informações, e menos numerosos ainda os que ousavam algum experimento para comprovar ou descartar uma suposição. Então, se a crença popular era de que mulheres tinham menos dentes que homens, dificilmente alguém iria andar examinando bocas para contar os dentes das senhoras romanas. Seria, no mínimo, um brutal constrangimento.
Outra questão importante está relacionada à educação que meninos e meninas recebiam em Roma, bem como às atividades quotidianas que homens e mulheres habitualmente realizavam. É perfeitamente possível que, não tendo aprendido a escrever, uma mulher passasse a vida toda sem saber que era canhota, malgrado o bullying das amigas por ser um pouco desastrada nos trabalhos de agulha e na execução de tarefas domésticas que  lhe haviam ensinado a fazer com uso da mão direita (⁵). 
Finalmente, podemos argumentar que a convivência entre homens e mulheres no mundo romano era muito diferente da que pode ser vista hoje no Ocidente. É verdade que as mulheres de Roma tinham mais direitos e mais liberdade que as gregas; também é fato que, como regra geral, não viviam trancafiadas em um compartimento da casa, de onde seria indecoroso sair, a não ser que acompanhadas por pai, marido, filho ou outro parente do sexo masculino. Mas também é notório que muitos homens se imaginavam em um plano superior, com suas atividades na vida pública, quer no exercício da política, quer em ocupações militares, e seu contato com as mulheres não ia, muitas vezes, além do tempo gasto para gerar filhos, intencionalmente ou não. Resultava, desse cenário, o pouco conhecimento e as muitas superstições que circulavam a respeito das mulheres. Parece surpreendente?

(1) 23 - 79 d.C.
(2) Supondo dentição completa, claro.
(3) Naturalis historia, Livro VII.
(4) Ibid.
Os trechos citados de Naturalis historia foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(5) Em tempos posteriores - lembremo-nos - canhotos, fossem homens ou mulheres, ainda sofreriam a discriminação dos que os viam como mensageiros do mal, por sua incrível habilidade com a mão esquerda. Talvez o futebol tenha contribuído para reabilitar canhotos, à medida que atletas notáveis com o pé esquerdo ganharam fama mundial. Em todo caso, não estão muito longe os dias em que alunos canhotos eram maltratados na escola e, não raro, obrigados a escrever com a mão direita. E depois ainda havia quem dissesse que canhotos "tinham letra feia"...


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terça-feira, 23 de outubro de 2018

Escravos na Fábrica de Ferro de São João de Ipanema

O debate é antigo: seria possível fazer um empreendimento industrial prosperar com mão de obra escrava? A discussão não tem nada de ociosa, e incomodou muita gente no Século XIX, em particular no Brasil e no sul dos Estados Unidos, antes que, em um e outro caso, a abolição do trabalho escravo pusesse termo ao lado pragmático da questão.
Farei uma tentativa de expor o assunto de modo bastante simples. Escravos, todos sabem, somente trabalhavam porque a tanto eram obrigados (à força, geralmente). Não tinham interesse, pois, no aperfeiçoamento das técnicas de produção, porque nada ganhariam com isso. O argumento, assim, era de que somente trabalhadores assalariados, sob a motivação gerada pela promessa de maiores salários, seriam adequados às atividades industriais. 
Os exemplos práticos parecem favorecer a ideia da incompatibilidade entre mão de obra cativa e industrialização. Empreendimentos ligados à indústria algodoeira americana, implantados nos estados sulistas e fazendo uso de trabalho escravo, nunca foram um grande sucesso. No Brasil, a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, criada durante o governo joanino, tinha trabalhadores escravos e, apesar dos investimentos feitos, jamais produziu para abastecer o mercado nacional, como se desejava.
Vejamos um pouco mais sobre a Fábrica de Ipanema. Consta ter ela recebido, para início dos trabalhos, oitenta e três escravos (¹). Provavelmente, foram ocupados na construção dos primeiros edifícios e da represa (²). Décadas mais tarde (1875), sob a administração de Joaquim de Sousa Mursa, a Fábrica tinha 141 funcionários, sendo de 439 o total de habitantes da Fazenda de Ipanema. Destes, 343 eram brasileiros (242 livres, 99 libertos e 2 escravos) e 96 eram estrangeiros (83 europeus e 13 africanos) (³). O emprego de mão de obra cativa, portanto, havia quase desaparecido na localidade. A despeito dos esforços de Mursa como administrador, a Fábrica de Ferro não tardaria a entrar em novo período de dormência.
Notem, leitores, que, com escravos ou sem eles, a Fábrica de Ipanema não "decolava". Desde sua fundação, passara por problemas tão variados quanto seria possível enumerar, incluindo má administração, queixas quanto ao aporte insuficiente de recursos, falta de continuidade de algumas boas administrações, pessoal nem sempre qualificado, carência de equipamentos que deveriam ser importados, concorrência de produtos estrangeiros melhores e mais baratos, deficiência nos transportes e assim por diante. Mesmo quando teve escravos para trabalhos braçais, contou também com imigrantes europeus, contratados para trabalhar na suposição de que entendiam de metalurgia. A escravidão é muito má, e seria pouco provável que a estalos de chicote alguém conseguisse qualificar trabalhadores para uma atividade industrial meticulosa. Neste caso, porém, a escravidão não pode, sozinha, ser responsabilizada pelo projeto que fracassou. 

Represa Hedberg, em cuja construção foi, provavelmente, empregada mão de obra escrava

(1) Cf. CÂMARA, J. Ewbank da. Caminhos de Ferro de S. Paulo e a Fábrica de Ipanema em Agosto de 1875. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1875, p. 26.
(2) Represa Hedberg, datada de 1811, a primeira no Brasil construída especificamente para aproveitamento da energia hidráulica.
(3) Cf. CÂMARA, J. Ewbank da. Op. cit., p. 35.


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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Politeísmo

Religiões politeístas


Muitos povos do passado eram politeístas. Isso significa que, em suas ideias e práticas religiosas, admitiam a existência de múltiplas divindades. Contudo, não se deve pensar no politeísmo como fenômeno religioso restrito ao passado. Há religiões politeístas ainda hoje. 
Mas falemos do passado. Desconhecendo princípios científicos como atualmente entendidos, povos antigos olhavam para chuvas torrenciais, inundações, nevascas, granizo, secas devastadoras, terremotos, erupções vulcânicas, furacões, tsunamis - este planeta é um lugar perigoso - supondo tais acontecimentos como expressões de fúria dos deuses, que precisavam ser aplacados com sacrifícios. 
Gregos e romanos, por exemplo, foram politeístas. Entre divindades maiores e menores, tinham deuses para tudo, de fenômenos naturais à regência das diversas atividades humanas, da agricultura à poesia, da guerra à paz. Egípcios também foram politeístas famosos, elaboraram rituais complexos e estabeleceram um sacerdócio que tinha enorme importância até mesmo em questões políticas. 
O sacrifício de animais não era incomum entre os politeístas da Antiguidade. Servia, em alguns casos, para homenagear os deuses, não faltando quem imaginasse que era necessário, dessa forma, alimentar as divindades. Mais frequente era a ideia de que os sacrifícios funcionavam como uma barganha entre deuses e homens, tendo em vista uma colheita abundante, chuvas regulares, viagens felizes e outros favores mais.

Sacrifícios humanos


Algumas vezes, as vítimas destinadas aos sacrifícios eram seres humanos (¹). Horrível? Certamente. Dentre outros povos, os fenícios podem ser citados entre os que sacrificavam pessoas. Essa prática, porém, não esteve restrita à Antiguidade: os astecas, por exemplo, muito mais recentes, chegaram a fazer dos sacrifícios humanos uma espécie de razão de Estado, já que, por meio da religião, sustentavam a coesão interna de seu Império (²), justificando as contínuas guerras pela necessidade da captura de inimigos, cujo coração, ainda palpitante, seria oferecido aos deuses, a fim de assegurar o diário aparecer do sol e a manutenção da ordem no Universo. Privando os povos vizinhos de seus mais saudáveis guerreiros e trabalhadores, os astecas enfraqueciam a concorrência pelo domínio da região em que viviam. Simultaneamente, a imposição de pesados tributos aos povos derrotados em combate garantia o fluxo contínuo de riquezas na direção de Tenochtitlán, a bela e orgulhosa capital asteca no lago Texcoco. 
É difícil julgar o grau de intencionalidade e manipulação das ideias religiosas por parte da nobreza e sacerdotes astecas (³), com vistas à preservação de sua elevada posição social, mesmo porque nem todos os sacrificados eram estrangeiros, mas é bastante provável que os sacrifícios humanos, eventualmente praticados na suposição de obter favores dos deuses, tenham, aos poucos, chegado a ser uma forma deliberada de cravar a mais férrea dominação sobre outros grupos, com os quais era preciso disputar território e recursos naturais. Embora as estimativas variem, supõe-se que sacerdotes astecas efetuavam pelo menos vinte mil sacrifícios humanos a cada ano.  

(1) É evidente que nem todas as religiões politeístas incluíram sacrifícios humanos em seus rituais.
(2) Não foram os únicos a fazer uso de crenças e práticas religiosas para fins políticos..
(3) Muito do que sabemos sobre essas questões decorre de registros feitos por colonizadores espanhóis que, como é natural, filtravam o que observavam por sua própria visão de mundo.


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terça-feira, 16 de outubro de 2018

A Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema

Edifício que serviu como sede da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema
e como residência de seu diretor

Acreditem, leitores: o país que é um dos maiores produtores mundiais de minério de ferro andou às voltas, durante longo tempo, com dificuldades para estabelecer uma fabricação regular de objetos de ferro. Soa ridículo, é certo, mas essa busca pela "idade do ferro" nada tem de pré-histórica ou remotamente histórica. É coisa muito mais recente. 
As tentativas de trabalhar o ferro no interior da Capitania de São Vicente datam dos tempos coloniais, talvez do final do Século XVI. Pedro Taques de Almeida Paes Leme refere na Nobiliarchia Paulistana:
"Cecília Ribeiro foi mulher de Bernardo de Quadro, nobre sevilhano, provedor e administrador das minas de São Paulo e juiz de órfãos, proprietário, senhor do engenho de fundir ferro e aço na Serra de Biraçoyaba [sic] [...]." 
O texto de Pedro Taques é um tanto confuso, de modo que não é fácil estipular com exatidão uma data para esse engenho de fundir ferro e aço; sabe-se, porém, que desde fins do Século XVI a região do morro de Araçoiaba despertava interesse para a mineração, e Afonso Sardinha, dentre vários outros, fez por lá explorações com vistas à descoberta de ouro e outros recursos minerais. Teria sido o mesmo Sardinha o fundador da fundição de ferro, pelo que relata Pedro Taques em outra obra, a História da Capitania de São Vicente:
"Nesta serra de Biraçoiaba [sic] houve um grande engenho de fundir ferro, construído à custa do paulista Afonso Sardinha, cuja manobra teve grande calor pelos anos de 1609 [...], com o decurso dos anos se extinguiu o labor da extração do ouro e da fundição de ferro. [...]." (¹)
No entanto, no Século XVIII uma nova fundição de ferro voltou a funcionar no mesmo local, ainda de acordo com Pedro Taques:
"No presente tempo desde o ano de 1766 existe a extração do ferro na dita serra de Biraçoiaba [sic], cuja fábrica se construiu por expensas de alguns acionistas que se uniram, a quem a real grandeza conferiu a graça de fundir o ferro por tempo de dez anos livre de quintos." (²)
Já no Século XIX, estando a Corte no Brasil, o lugar viu nascer um projeto ambicioso (³), que pretendia desenvolver tecnologia para tornar o país autossuficiente na produção de artefatos de ferro: era a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema (⁴). O investimento, para os padrões da época, foi considerável. Diferentes técnicas, sob a supervisão de vários especialistas, foram tentadas, sem que produzissem resultados esplêndidos, e isso por razões as mais diversas, desde incompetência pura e simples até falta de continuidade nos processos que se mostraram promissores, como os ensaiados pelo engenheiro Friedrich Ludwig Wilhelm Varnhagen. Nas décadas seguintes, a Fábrica agonizou entre frustradas tentativas de ressurreição e anos de abandono. 
Apesar disso, era comum que viajantes nacionais e estrangeiros que visitavam a Província de São Paulo tomassem tempo para ir a Ipanema. Daniel P. Kidder, missionário metodista americano, lá esteve na década de quarenta do Século XIX, ocasião em que observou:  "O estabelecimento é um próprio do governo e consiste em seis ou oito prédios onde se faz a redução e fundição de ferro. Existem ainda, uma grande casa onde reside o diretor e diversos outros prédios menores, ocupados pelos operários e suas famílias, das quais, por ocasião de nossa visita, vinte e sete eram alemãs." (⁵) Pôde ver a Fábrica em funcionamento, mas fez constar que "em relatório oficial datado de 1843, perguntava certo ministro, se depois de trinta e quatro anos de experiências, não seria melhor abandonar inteiramente o estabelecimento, pelo menos até que deixasse de constituir fonte de despesas para o erário imperial" (⁶). A questão não era descabida. 
Em 1861, quando Augusto-Emílio Zaluar esteve em Ipanema, a situação era ainda pior:
"Fomos visitar a fábrica de ferro de São João de Ipanema. Fica três léguas distante da cidade de Sorocaba, por um caminho quase todo plano e no centro de agradáveis planícies. Está toda desmontada e quase deserta.
Encontramos por toda parte, em lugar da orquestra animadora do trabalho, o silêncio sepulcral da esterilidade.
E no entanto, como tudo que ainda aí existe é grandioso e belo! Os dois fornos altos, os encanamentos de água por toda a fábrica, obra de muita dificuldade e arte, o forno de porcelana, o hospital, as senzalas, a botica, a cadeia, a excelente casa da diretoria, o depósito, servindo atualmente de escritório, e finalmente a casa das máquinas, onde fomos advertidos, de dia, que andássemos com cuidados por causa das cascavéis que se aninham entre os tijolos quebrados do assoalho, tudo está em abandono, em tristeza e solidão!" (⁷)
Posteriormente, a extensão de uma linha ferroviária deu sobrevida ao empreendimento que estertorava, e não mais que isso. Hoje, a Real Fábrica de Ferro é parte da FLONA Ipanema. A impressão de grandiosidade, descrita por Zaluar, não desapareceu. O lugar é, de fato, belíssimo, um dos mais expressivos conjuntos históricos que alguém verá no Brasil (8). A vista, dos pontos de maior altitude, é de tirar o fôlego. Podem achar pérfida a ideia, leitores, mas se a Fábrica de Ipanema tivesse prosperado e, em consequência, recebido seguidas modernizações, hoje não seria possível, a quem visita essa joia, dar um mergulho no passado.

A represa Hedberg, datada de 1811, foi a primeira a ser construída no Brasil para fins de
aproveitamento da energia hidráulica

Casa das Armas Brancas

Os altos-fornos da Fábrica de Ferro de São João de Ipanema datam do chamado Período Joanino

Interior de um dos fornos da Fábrica de Ferro de Ipanema

Construído entre 1878 e 1885, sob a supervisão do engenheiro Joaquim de Souza Mursa (daí ser chamado "alto-forno de Mursa"),. este alto-forno, por falta de um equipamento, nunca entrou em operação

Fornos de carvão construídos em 1913, em mais uma tentativa de reativar a
Fábrica de Ferro de Ipanema

(1) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. História da Capitania de São Vicente. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 130.
(2) Ibid.
(3) A Fábrica de Ipanema não foi a única tentativa feita no Século XIX no sentido de estabelecer a produção regular de artigos de ferro no Brasil. Apenas para constar, houve outra em Minas Gerais. Seria bom que pruridos regionalistas fossem afastados do estudo deste assunto.
(4) Como quase tudo no Período Joanino, recebeu o nome de "São João" em homenagem ao príncipe regente, mais tarde rei com o nome de D. João VI. Na época, a Fábrica de Ferro pertencia aos limites de Sorocaba. Hoje pertence a Iperó - SP.
(5) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 236.
(6) Ibid., p. 238.
(7) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, 1862, pp. 272 e 273.
(8) Registro aqui meu agradecimento à administração e funcionários da FLONA Ipanema que me receberam com o máximo da gentileza e atenção. O zelo na conservação do lugar, a ordem e a limpeza que pude observar em tudo, dão mostras da seriedade e competência dos que lá trabalham.


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quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Negociando com os deuses

Para muitos povos da Antiguidade, os deuses, e não os homens, eram os verdadeiros donos de um território. Assim, em caso de guerra, o confronto armado entre homens era entendido como a parte visível do combate entre deuses. A vitória de um determinado povo seria, portanto, resultado do poderio das divindades correspondentes. Em última instância, os deuses é que venciam ou eram derrotados. Estranho? Sim, para a nossa mentalidade, mas não para assírios, babilônios, hititas, egípcios... E, até certo ponto, mesmo para gregos e romanos. Que se deveria então fazer, sendo preciso enfrentar algum povo, digo, algum deus estrangeiro?
Talvez fosse possível entabular uma negociação com as divindades - é o que se depreende de uma informação dada por Macróbio, um autor que viveu no mundo romano entre os Séculos IV e V. Afirmou ele que, estando Cipião já pronto para o ataque final a Cartago (¹), teria feito uso da seguinte fórmula:
"Deus ou deusa que, por acaso, proteja o povo e a cidade de Cartago: eu te conjuro, pedindo que abandones este povo e esta cidade, e a tutela que exerces sobre suas casas, templos, edifícios públicos e muros, que te afastes daqui, espalhando entre o povo desta cidade o pavor, o medo e o esquecimento. Deus ou deusa, eu te conjuro a vir a Roma conosco, para habitar entre nós em nossas casas, templos, edifícios públicos e muros, sendo guia para o povo romano, para meu exército e para mim, dando a nós capacidade [para vencer]. Prometo, se isso for aceito, oferecer-te templos e jogos [em Roma]." (²)
Meus leitores, que nome daríamos a isto? Tentativa de suborno, corrupção, cooptação, aliciamento, traição?! Como chamar tal proposta? Ao que parece, uma fórmula semelhante era usada sempre que um comandante militar romano estava prestes a liderar a conquista de território estrangeiro. É claro que não sabemos se Cipião estava apenas cumprindo um ritual (³), ou se acreditava, de fato, que era possível negociar com deuses e deusas, mas, de qualquer modo, fica evidente que, em caso de dúvida, julgava ser melhor não deixar de lado tal precaução. Não é por acaso que nos triunfos que homenageavam generais romanos vitoriosos, não somente os monarcas e comandantes vencidos eram, carregados de correntes, arrastados atrás do vencedor, como também as estátuas dos deuses derrotados e outros objetos de caráter religioso eram levados em procissão. Acreditando neles ou não, era conveniente, diante da plebe, que os deuses romanos fossem responsabilizados pela vitória.

(1) 146 a.C.
(2) Saturnalia, Livro III. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Se é que, de fato, proferiu as palavras a que Macróbio alude. Em qualquer caso, a ideia prevalece, porque era tida por admissível para os leitores da época.


terça-feira, 9 de outubro de 2018

Nada de chiqueiros perto do muro!

Quem vivia em São Paulo no Século XVI criava porcos junto ao muro da vila


A pequena São Paulo de Piratininga foi, nos tempos coloniais, famosa por seus "grandes capados", como disseram autores da época. Agora, digam-me, leitores: Onde vocês acham que os moradores de São Paulo criavam porcos? Ah, dirão, em chiqueiros, naturalmente!... Sim, em chiqueiros, mas a questão é: Onde ficavam os ditos chiqueiros?
Uma ata da Câmara de São Paulo, tendo a data de 4 de fevereiro de 1575, nos informa que, só para variar, a povoação estava às voltas com a ameaça de um ataque. Portanto, foram deliberadas providências para a defesa da vila, que incluíam consertar o muro (mais uma vez) e mudar os chiqueiros de endereço. 
Vamos ao documento:
"Requereu o [...] procurador que João Anes, Domingos Roiz e Manoel [Félix?] tinham nos muros desta vila aberto buracos e portas nos ditos muros, que eram grande prejuízo e podiam cair os ditos muros, que suas mercês lhes mandassem notificar com séria pena que os tapassem dentro de certo tempo, ao que os senhores oficiais responderam e mandaram a mim, escrivão, que notificasse aos sobreditos que dentro [...] de um mês eles tapassem as ditas taipas de taipas de pilão, com pena de quinhentos réis [...]."
Informo, de passagem, que as vírgulas foram acrescentadas por mim, para tornar o [dito] documento minimamente compreensível (¹). Prossigamos, pois, com a [dita] ata de 4 de fevereiro de 1575:
"Requereu mais o dito procurador do conselho aos ditos senhores oficiais que nesta vila havia pessoas que tinham chiqueiros de porcos e casas para eles arrimados aos muros desta vila, que eram grande prejuízo, porque sucedendo alguma guerra, pelos ditos chiqueiros podiam subir os contrários. [...] lhes requeria da parte de el-Rei (²) lhes mandasse notificar ou apregoar que os tirassem donde estavam e os fizessem apartados dos ditos muros três braças, ao que os ditos oficiais responderam e mandaram que fosse apregoado que qualquer pessoa que tivesse chiqueiros nesse lugar os tirasse dali dentro de dois meses do dia do pregão para diante, com pena de duzentos réis para o conselho e mandaram que se fizesse dito termo." 
Cabe aqui, creio, a explicação de que braça é uma medida antiga equivalente a 2,2 metros. Portanto, as três braças dariam 6,6 metros - era essa a distância que deveria ser guardada entre os chiqueiros e o muro de taipa que protegia a vila. 
A ata não diz se os porcos residiam dentro ou fora dos muros, mas é razoável supor que fosse do lado de fora, e não apenas por razões aromáticas. É que os chiqueiros e abrigos cobertos para os animais somente facilitariam aos "contrários" o acesso ao muro se estivessem localizados externamente. Admitindo que fosse esse o caso, as portas (ou buracos) abertos no muro tinham a provável finalidade de facilitar as idas e vindas de quem cuidava dos animais. Portanto, os dois requerimentos apresentados pelo procurador talvez se resumissem em uma coisa só.
E quem eram, afinal, os "contrários", cujo ataque se esperava, justificando a imposição de multas para obrigar à conservação do muro? Eram indígenas, com toda certeza. Alvo contínuo das provocações dos moradores de São Paulo, faziam-se temidos pela possibilidade de uma desforra. Se assim acontecesse, era melhor, no raciocínio dos oficiais da Câmara, que o muro estivesse em boas condições, livre de buracos, de chiqueiros e de porcos.

(1) Tentem ler o texto suprimindo as vírgulas...
(2) Seria interessante saber se sua majestade alguma vez teve ciência dos problemas relacionados à manutenção do muro e aos chiqueiros da Vila de São Paulo.


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Supostas vantagens da localização de Roma

Faço um convite a vocês, leitores: peguem um mapa do Brasil e procurem localizar as primeiras povoações estabelecidas por portugueses nessas terras, ainda no Século XVI. Encontraram São Vicente, Santos, Itanhaém, Salvador? Rio de Janeiro? Vila Velha? Olinda?
Creio que já é suficiente. Digam, agora: o que essas povoações tinham em comum, em se tratando de localização? Vocês acertarão, se concluírem que todas foram estabelecidas junto ao Atlântico (¹). Era mais fácil, após o desembarque, iniciar a ocupação em algum lugar nas proximidades. Se a terra fosse promissora e logo houvesse o que exportar, a existência de um porto satisfatório nas imediações favoreceria o envio de mercadorias à Europa. Não menos importante, se colonizadores recém-chegados não encontrassem uma acolhida gentil da parte dos que já viviam na terra, seria mais rápido voltar às embarcações e procurar outro ponto, provavelmente também na costa, para nova tentativa de fundar uma vila.
Na Antiguidade, porém, houve um político e escritor romano, Marco Túlio Cícero, que levantou dúvidas quanto ao acerto da fundação de cidades litorâneas. Escrevendo ao estilo dos diálogos de Platão, Cícero, em De re publica, imaginou uma conversa em que tomavam parte personagens ilustres de Roma. Assim, na voz de Cipião Africano, expôs o pensamento de que Rômulo (²) teria escolhido a mais favorável localização para a cidade que iria fundar, a alguma distância do mar e, contudo, capaz de efetuar comércio marítimo pelo porto de Óstia, ao qual era ligada por um rio. Todavia, em termos práticos, Cícero não desprezava as vantagens do comércio marítimo, como se vê nesta passagem: "Em meio a essas inconveniências [da localização litorânea] há, todavia, uma grande vantagem, qual seja a de que tudo chega à cidade, de qualquer lugar estrangeiro, pelo porto, e, reciprocamente, tudo o que os campos produzem, pode ser mandado a outros lugares." (³)
Agora, leitores, vamos explorar o que esse sisudo pensador romano via de errado nas cidades portuárias da Antiguidade. Primeiro, supunha perigo em caso de guerra, porque as forças contrárias chegariam mais rápido para um ataque. Cícero acreditava que, vindo o inimigo por terra, sempre haveria tempo para que a notícia chegasse com antecedência, permitindo, assim, a preparação da defesa. Entendia, portanto, que, na hipótese de uma batalha naval pelo controle de uma cidade costeira, a possibilidade de êxito dos defensores seria menor (⁴). Além disso, a proximidade do mar e de um porto favoreceria, em sua concepção, que fossem introduzidos idiomas e costumes estrangeiros, descaracterizando a cultura local. Finalmente, em virtude do comércio, seria fácil a introdução de hábitos de luxo, que iriam minar o estilo de vida austero que entendia ser atributo dos primitivos e verdadeiros romanos. 
Será que Cícero tinha razão? O passar dos anos, formando décadas e séculos, se encarregaria de berrar que não. Roma não nascera afixada ao mar, mas os costumes estrangeiros foram importados pelos próprios romanos, que, em contato com outros povos, não vacilaram em copiar tudo o que julgaram interessante. O luxo e o consumo excessivo vieram, também, em decorrência do espólio das guerras e, quando Roma entrou em declínio, foi por terra, e não do mar, que vieram alguns de seus maiores inimigos. Quanto à introdução de idiomas estrangeiros, Cícero se encarregou de negar Cícero: apaixonado pela língua grega, foi um extraordinário divulgador do pensamento dos grandes mestres da filosofia helênica. A distância do mar não fez, neste caso, qualquer diferença.

(1) Embora a colonização tenha começado no litoral, houve exceções notáveis - São Paulo foi uma delas.
(2) Cícero não questionou a lenda da fundação de Roma; também assumiu que os acontecimentos associados aos tempos da realeza eram autênticos. Como se sabe, há ainda muitas dúvidas e questões sem resposta em relação às origens de Roma, embora as contínuas pesquisas ofereçam algumas pistas. Em todo caso, o assunto, aqui, não é a historicidade de Rômulo, mas a conveniência da localização de Roma.
(3) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro Segundo. A citação foi traduzida por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(4) Essa ideia, por si, já oferece um panorama das comunicações na Antiguidade. 


terça-feira, 2 de outubro de 2018

Execuções "em boca de peça"

Apedrejamento, enforcamento, afogamento, decapitação, fuzilamento, cadeira elétrica, garrote, empalamento, injeção letal... A lista de métodos de execução já inventados pela crueldade humana é enorme. Alguns tinham o propósito de tornar a morte lenta e dolorosa; outros, com intenções supostamente humanitárias, queriam-na rápida e, tanto quanto possível, indolor. Em qualquer caso, a ideia é que a execução servisse (ou sirva) de exemplo.
Dentre os povos antigos, os assírios foram notáveis pela crueldade, e gostavam de empalar inimigos derrotados, mas também usavam outros métodos para execução que, quase sempre, só vinha depois de muita tortura.

Relevo assírio em que o rei é visto executando um prisioneiro de guerra (¹)

Sêneca, o filósofo estoico e professor de Nero, defendeu, nestes termos, a aplicação da pena de morte em Roma: "Aqueles que, com sua vida, não quiseram cooperar com a República, devem ser úteis com a morte" (²). E então, leitores, acham que ele estava certo?
Há tempos, tratei, neste blog, de uma ocasião em que Tomé de Sousa (³) fez executar um índio, amarrando-o à boca de um canhão que, ato contínuo, foi disparado. Ora, esse horripilante espetáculo, cujo objetivo era desencorajar potenciais delinquentes, não foi caso isolado no Brasil. Franceses que tentaram estabelecer uma colônia no Maranhão empregaram a mesma "técnica" - a informação vem de Yves d'Évreux, um capuchinho que esteve no Brasil como missionário nos anos de 1613 e 1614. Dentre outros episódios que registrou, examinemos um, bastante significativo, no qual o sentenciado à morte foi um indígena que, supostamente, se opusera à colonização e à catequese. Capturado, foi condenado à morte "em boca de peça" (⁴), como se dizia. Antes, porém, recebeu o batismo, embora o próprio d'Évreux tenha delegado a outro o ato de ministrar o sacramento, julgando que seria melhor para a imagem dos missionários se fossem associados à misericórdia e não à severidade. Pois bem, a execução assim foi descrita pelo religioso francês:
"Este infeliz condenado recebeu as consolações de muito boa vontade [sic], e antes de caminhar para o suplício disse aos que o acompanhavam: "vou morrer, não mais os verei, não tenho mais medo de Jeropary (⁵) pois sou filho de Deus, não tenho que prover-me de fogo, de farinha, de água, e nem de ferramenta alguma para viajar além das montanhas, onde cuidais que estão dançando vossos pais (⁶). Dai-me porém um pouco de petum (⁷) para que eu morra alegremente, com voz e sem medo". 
[...].
Feito isso, levaram-no para junto da peça montada na muralha do Forte de São Luís, junto ao mar, amarraram-no pela cintura à boca da peça, e o Cardo Vermelho (⁸) lançou fogo à escorva, em presença de todos os principais, dos selvagens e dos franceses, e imediatamente a bala dividiu o corpo em duas porções, caindo uma ao pé da muralha, e a outra no mar, onde nunca mais foi encontrada." (⁹) 
Vejam, leitores, que d'Évreux descreve a execução como se fosse a coisa mais natural deste mundo - não seria capaz de maior doçura se referisse a busca por flores silvestres ou por pequenas conchas marinhas em alguma praia. Será que os homens de seu tempo eram mesmo brutais, ou somos nós que nos tornamos demasiadamente sensíveis?

(1) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853.
(2) Sêneca, De Ira. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) Primeiro governador-geral do Brasil.
(4) Referência a um canhão ou outra peça de artilharia.
(5) Figura da mitologia indígena que os missionários identificavam com um demônio.
(6) Lugar onde indígenas supunham ser a residência dos mortos.
(7) Fumo.
(8) Cardo Vermelho era um chefe indígena já catequizado.
(9) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 232 e 233.