quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Negociando com os deuses

Para muitos povos da Antiguidade, os deuses, e não os homens, eram os verdadeiros donos de um território. Assim, em caso de guerra, o confronto armado entre homens era entendido como a parte visível do combate entre deuses. A vitória de um determinado povo seria, portanto, resultado do poderio das divindades correspondentes. Em última instância, os deuses é que venciam ou eram derrotados. Estranho? Sim, para a nossa mentalidade, mas não para assírios, babilônios, hititas, egípcios... E, até certo ponto, mesmo para gregos e romanos. Que se deveria então fazer, sendo preciso enfrentar algum povo, digo, algum deus estrangeiro?
Talvez fosse possível entabular uma negociação com as divindades - é o que se depreende de uma informação dada por Macróbio, um autor que viveu no mundo romano entre os Séculos IV e V. Afirmou ele que, estando Cipião já pronto para o ataque final a Cartago (¹), teria feito uso da seguinte fórmula:
"Deus ou deusa que, por acaso, proteja o povo e a cidade de Cartago: eu te conjuro, pedindo que abandones este povo e esta cidade, e a tutela que exerces sobre suas casas, templos, edifícios públicos e muros, que te afastes daqui, espalhando entre o povo desta cidade o pavor, o medo e o esquecimento. Deus ou deusa, eu te conjuro a vir a Roma conosco, para habitar entre nós em nossas casas, templos, edifícios públicos e muros, sendo guia para o povo romano, para meu exército e para mim, dando a nós capacidade [para vencer]. Prometo, se isso for aceito, oferecer-te templos e jogos [em Roma]." (²)
Meus leitores, que nome daríamos a isto? Tentativa de suborno, corrupção, cooptação, aliciamento, traição?! Como chamar tal proposta? Ao que parece, uma fórmula semelhante era usada sempre que um comandante militar romano estava prestes a liderar a conquista de território estrangeiro. É claro que não sabemos se Cipião estava apenas cumprindo um ritual (³), ou se acreditava, de fato, que era possível negociar com deuses e deusas, mas, de qualquer modo, fica evidente que, em caso de dúvida, julgava ser melhor não deixar de lado tal precaução. Não é por acaso que nos triunfos que homenageavam generais romanos vitoriosos, não somente os monarcas e comandantes vencidos eram, carregados de correntes, arrastados atrás do vencedor, como também as estátuas dos deuses derrotados e outros objetos de caráter religioso eram levados em procissão. Acreditando neles ou não, era conveniente, diante da plebe, que os deuses romanos fossem responsabilizados pela vitória.

(1) 146 a.C.
(2) Saturnalia, Livro III. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Se é que, de fato, proferiu as palavras a que Macróbio alude. Em qualquer caso, a ideia prevalece, porque era tida por admissível para os leitores da época.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.