terça-feira, 23 de outubro de 2018

Escravos na Fábrica de Ferro de São João de Ipanema

O debate é antigo: seria possível fazer um empreendimento industrial prosperar com mão de obra escrava? A discussão não tem nada de ociosa, e incomodou muita gente no Século XIX, em particular no Brasil e no sul dos Estados Unidos, antes que, em um e outro caso, a abolição do trabalho escravo pusesse termo ao lado pragmático da questão.
Farei uma tentativa de expor o assunto de modo bastante simples. Escravos, todos sabem, somente trabalhavam porque a tanto eram obrigados (à força, geralmente). Não tinham interesse, pois, no aperfeiçoamento das técnicas de produção, porque nada ganhariam com isso. O argumento, assim, era de que somente trabalhadores assalariados, sob a motivação gerada pela promessa de maiores salários, seriam adequados às atividades industriais. 
Os exemplos práticos parecem favorecer a ideia da incompatibilidade entre mão de obra cativa e industrialização. Empreendimentos ligados à indústria algodoeira americana, implantados nos estados sulistas e fazendo uso de trabalho escravo, nunca foram um grande sucesso. No Brasil, a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, criada durante o governo joanino, tinha trabalhadores escravos e, apesar dos investimentos feitos, jamais produziu para abastecer o mercado nacional, como se desejava.
Vejamos um pouco mais sobre a Fábrica de Ipanema. Consta ter ela recebido, para início dos trabalhos, oitenta e três escravos (¹). Provavelmente, foram ocupados na construção dos primeiros edifícios e da represa (²). Décadas mais tarde (1875), sob a administração de Joaquim de Sousa Mursa, a Fábrica tinha 141 funcionários, sendo de 439 o total de habitantes da Fazenda de Ipanema. Destes, 343 eram brasileiros (242 livres, 99 libertos e 2 escravos) e 96 eram estrangeiros (83 europeus e 13 africanos) (³). O emprego de mão de obra cativa, portanto, havia quase desaparecido na localidade. A despeito dos esforços de Mursa como administrador, a Fábrica de Ferro não tardaria a entrar em novo período de dormência.
Notem, leitores, que, com escravos ou sem eles, a Fábrica de Ipanema não "decolava". Desde sua fundação, passara por problemas tão variados quanto seria possível enumerar, incluindo má administração, queixas quanto ao aporte insuficiente de recursos, falta de continuidade de algumas boas administrações, pessoal nem sempre qualificado, carência de equipamentos que deveriam ser importados, concorrência de produtos estrangeiros melhores e mais baratos, deficiência nos transportes e assim por diante. Mesmo quando teve escravos para trabalhos braçais, contou também com imigrantes europeus, contratados para trabalhar na suposição de que entendiam de metalurgia. A escravidão é muito má, e seria pouco provável que a estalos de chicote alguém conseguisse qualificar trabalhadores para uma atividade industrial meticulosa. Neste caso, porém, a escravidão não pode, sozinha, ser responsabilizada pelo projeto que fracassou. 

Represa Hedberg, em cuja construção foi, provavelmente, empregada mão de obra escrava

(1) Cf. CÂMARA, J. Ewbank da. Caminhos de Ferro de S. Paulo e a Fábrica de Ipanema em Agosto de 1875. Rio de Janeiro: G. Leuzinger & Filhos, 1875, p. 26.
(2) Represa Hedberg, datada de 1811, a primeira no Brasil construída especificamente para aproveitamento da energia hidráulica.
(3) Cf. CÂMARA, J. Ewbank da. Op. cit., p. 35.


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