quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Águias romanas

A força, ou a sagacidade, agilidade e beleza de certos animais e aves são tão notórios que, no passado, resultaram em identificação de reinos e exércitos com um ou mais deles. Não só no passado: que se vejam, por exemplo, os mascotes de equipes de futebol, e, aqui e ali, serão encontrados o leão, a águia, o galo - o canário?!! - quase um zoológico completo, cuja lista, por muito extensa, deixo a cargo dos leitores.
Se a Macedônia de Filipe e Alexandre Magno tinha um caprino como símbolo, os romanos ostentavam águias nos estandartes que, orgulhosamente, eram conduzidos à frente de suas legiões. Contudo, nem sempre foi assim. No dizer de Plínio, o Velho, esse costume foi introduzido por volta de 104 a.C., durante o segundo consulado do famoso e polêmico Caio Mário (¹):
"As águias foram adotadas como distintivo das legiões romanas durante o segundo consulado de Caio Mário. Outros quatro símbolos foram usados anteriormente, os lobos, os minotauros, os cavalos e os javalis, diante das respectivas colunas; poucos anos mais tarde tornou-se costume que apenas as insígnias das águias fossem conduzidas ao campo de batalha, ficando as outras no acampamento. [...]." (²)
Deixando de lado algumas lendas que se criaram em torno desse fato, é preciso considerar que, entre os romanos, a divindade principal, Júpiter, vinculava-se à águia desde tempos remotos. Essa é uma explicação simples e plausível para a adoção dessa ave nos estandartes romanos, porque, para a mentalidade religiosa que imperava na Antiguidade, levar o símbolo de um deus ao campo de batalha equivalia a ter, ali, sua presença real, e, portanto, também o poder e a força da divindade assim honrada.
Plínio referiu, ainda, que, desde que as águias passaram a figurar nos estandartes, "[...] notou-se que dificilmente havia um acampamento de inverno das legiões em que não houvesse um casal de águias por perto" (²). Credulidade? Coincidência? Talvez a explicação mais lógica esteja ligada às condições vigentes nos locais tradicionalmente escolhidos para que a soldadesca invernasse.

(1) Caio Mário foi cônsul por nada menos que sete vezes.
(2) PLÍNIO, o Velho. Naturalis Historia, Livro X. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Sem roupas novas para o Natal

Argumentos usados no Século XVII para justificar a escravização de indígenas


Padre Antônio Vieira (²)
Quando se tratava de encontrar argumentos que justificassem a escravização de indígenas, parece que a criatividade da elite colonial quase não conhecia limites. Veremos aqui, especificamente, o que acontecia no chamado Estado do Maranhão e Grão-Pará que, durante algum tempo, teve governo separado do Estado do Brasil.
Suponho, contudo, que entre os leitores possa logo surgir a seguinte questão: a quem a elite colonial dirigia argumentos para obter autorização para o "descimento de gentio", eufemismo que, ao fim e ao cabo, significava simplesmente escravização? No Século XVII, monarcas portugueses, talvez até com boas intenções, vinham proibindo a escravização dos nativos da América, admitindo, porém, algumas exceções, e era nisso que consistia o problema. Seria permitida a "guerra justa" contra indígenas que atacassem fazendas e povoações de colonizadores, bem como daqueles que recusassem a catequese. Portanto, no caso específico do Maranhão e do Pará, seria necessário que o governador, que em nome do rei exercia o mando, autorizasse uma expedição de apresamento (¹). Admite-se que, às vezes, os próprios governadores tinham interesse nessas expedições de escravização, não hesitando em alocar recursos públicos para tanto, além de providenciar uma justificativa considerada plausível para que indígenas fossem atacados, tivessem suas aldeias incendiadas e, quanto aos sobreviventes, fossem, acorrentados, trazidos às povoações, para distribuição entre os interessados. 
Mas havia outro obstáculo. Os missionários jesuítas insistiam em ter o controle sobre a catequese de indígenas e, por isso, eram opositores severos à sua escravização. Daí resultava o ódio que parte da população colonial votava aos "padres da Companhia", e que, em não poucos casos, resultou até em violência explícita. Dentre os religiosos que se destacaram na oposição ao cativeiro de ameríndios estava o padre Antônio Vieira (³), a quem os moradores de Belém do Pará, no ano de 1661, dirigiram uma carta, na qual, entre outros, apresentavam os seguintes argumentos para justificar a alegada necessidade de escravizar indígenas:

1. Colonizadores e suas famílias não podiam viver sem escravos
 "Representa a Câmara desta Cidade de Belém, Capitania do Grão-Pará, que serve este presente ano de 1661, ao M. Reverendo Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus, Visitador Geral das missões deste Estado, as grandes necessidades que padecem estes povos, causadas da limitação em que vivem, de alguns anos a esta parte, por muita falta que têm de escravos com que se sirvam, sendo impossível o viverem sem eles [sic]." (⁴)
2. Moradores precisavam de escravos para o trabalho de remeiros
"[...] Está este povo  e os moradores dele em estado o mais miserável que se pode considerar, razão por que alguns homens nobres, conquistadores e povoadores, que derramaram o seu sangue e têm gastado a sua vida em serviço de Sua Majestade, e ajudaram a conquistar esta Conquista, não trazem seus filhos e família a esta cidade, por não terem remeiros que lhes comboiem canoas para virem, sendo coisa infalível e certa ser a navegação por mar, a qual se não pode conseguir sem escravos [...]." (⁵)
3. Moradores de Belém não tinham quem realizasse tarefas domésticas
"[...] muitos vivem nesta cidade, que não têm quem lhes vá buscar um feixe de lenha, nem um pote de água; e assim que estão perecendo muitos, por não terem com quem lavrarem suas fazendas, para comprar o que lhes é necessário, tudo procedido da falta de escravos, havendo tantos em muitos sertões [sic!!!] em quantidade [...]." (⁶)
4. A pobreza em que os colonizadores viviam era tanta, que nem mesmo tinham roupas novas para a missa do Natal
"[...] esta festa passada do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, não vieram a esta cidade as famílias de alguns homens nobres, por causa de suas filhas donzelas não terem o que vestir para irem ouvir missa, nem seus pais possuem cabedal para o comprarem, e tudo procedido de não resgatarem escravos [...]." (⁷)
Pobre (e hipócrita) religiosidade dos que se pretendiam tão nobres! Toda gente, ou quase toda ela, se achava, de algum modo, com direitos de fidalguia. Por que iria, então, suar em qualquer trabalho que pusesse em risco a pretendida nobreza? Ao que parece, moradores não reconheciam (ou não queriam reconhecer) que seu modo de vida é que os tornava, em tudo, dependentes do trabalho dos escravizados, coisa que, também, em certo sentido, não deixava de ser um tipo de escravidão, na qual, deliberadamente, haviam se metido. Note-se, porém, que, se a ideia era provocar lágrimas no padre Vieira, em virtude da alegada penúria em que viviam os escravizadores, convencendo-o a apoiar as expedições de captura de indígenas, a carta foi um fracasso absoluto.
 
(1) A situação era diferente em São Paulo, de onde, por muito tempo, partiram expedições de apresamento de indígenas. O governo português estava longe e, na prática, era apenas formalmente reconhecido. Até mesmo camaristas de São Paulo, que alegavam em documentos oficiais sua oposição às levas de bandeirantes escravizadores de ameríndios, acabavam, em não poucos casos, se juntando a eles e indo passar meses no sertão. Os jesuítas faziam ameaças, sugerindo até que fariam vir a Inquisição, pobre argumento quando se considera a dificuldade de acesso a São Paulo que havia pelo escabroso Caminho do Mar. Quando teimaram na defesa dos indígenas, jesuítas foram expulsos de São Paulo e só muito tempo depois readmitidos, sob a condição de que não dariam palpites em assuntos seculares.
(2) Cf. BARROS, André de, S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira. Lisboa: Officina Sylviana, 1746.
(3) Sim, aquele mesmo dos famosos "Sermões" que vocês, leitores, devem ter estudado em suas aulas de Literatura.
(4) Cf. BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão, Livro XIV. Lisboa: Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 448.
(5) Ibid., p. 449.
(6) Ibid. 
(7) Ibid.


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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Vendeiros e quitandeiras

Não é de hoje que comerciantes estabelecidos protestam contra a presença de vendedores ambulantes diante de suas lojas, sob a alegação de concorrência desleal, visto que eles, os estabelecidos, em virtude dos impostos que pagam, não podem praticar preços similares aos dos ambulantes. Vou mostrar a vocês, leitores, que essa questão não tem, mesmo, nada de recente.
Quando São Paulo era apenas uma vila pequenina, vereadores tentavam atrair comerciantes que quisessem vender gêneros alimentícios, mas tinham dificuldade nessa tarefa. Afinal, para quem viesse do porto de Santos, existia o desafio, enorme para as condições da época, de atravessar as escarpas da Serra do Mar. Nenhuma surpresa, portanto, que poucos julgassem que a empreitada valia a pena. Mas, com o correr dos anos, a vila cresceu, tornou-se cidade e chegou a capital da Província. Muitos comerciantes se estabeleceram, e não tardou para que vendeiros começassem a pressionar a Câmara da cidade para que impedisse, ou, ao menos, limitasse o trabalho das quitandeiras. 
É melhor explicar: vendeiros eram proprietários de uma "venda", um estabelecimento que comercializava uma grande variedade de mercadorias, incluindo alimentos, artigos de couro e ferragens e, quase sempre, alguma cachaça, além de outras bebidas. Já as quitandeiras eram vendedoras ambulantes, algumas livres, muitas delas escravas, que comercializavam frutas, legumes e verduras, principalmente, embora, em menor número, também doces, pães, aves para abate e (até) cachaça. A aglomeração de algumas dessas quitandeiras diante da entrada ou perto de uma venda ou taberna era óbvia concorrência ao comércio estabelecido. 
Dada a explicação, é simples compreender o motivo de a Ata da Câmara de São Paulo trazer este registro, relativo à vereação de 21 de fevereiro de 1821: "Nesta despachou-se o requerimento dos vendeiros desta cidade e mandou-se passar edital na forma requerida contra as quitandeiras, para não venderem gêneros que dependem de peso e medida, e próprios das tavernas (¹) [...]" (²). Comerciantes estabelecidos eram obrigados a dispor de pesos e medidas aferidos periodicamente por pessoa determinada pela Câmara, ainda que, por parte da população, as queixas contra fraudes não fossem nenhuma raridade.
Exatamente um mês mais tarde, em 21 de março de 1821, registrou-se na Ata: "[...] lavrou-se edital sobre as quitandeiras, a requerimento dos vendeiros desta cidade, para as mesmas não venderem gêneros dependentes de peso e medidas, e sim próprios de quitandas" (²). Admitidas eventuais exceções, os vendeiros eram gente de condição livre, enquanto a maioria das quitandeiras, escravizadas que praticavam o comércio ambulante para lucro dos respectivos senhores. Esse prosaico conflito de interesses abre uma fresta na cortina do tempo para que vejamos alguma coisa das lutas de quem ocupava as ruas de São Paulo em dias já distantes.
Desde então, são passados mais de duzentos anos. A escravidão, é claro, ficou para trás, mas o mundo do trabalho, em meio aos solavancos da economia, ainda oferece, ao observador inteligente, um panorama que grita por soluções justas e duradouras.

(1) Taberna ou taverna, o significado é o mesmo.
(2) Os trechos aqui citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Regulamentos para vendedores de rua em São Paulo no Século XIX

Vendedora de frutas no Rio de Janeiro, Século XIX,
de acordo com Rugendas (¹)
Parte expressiva do comércio que se fazia nas vilas e cidades dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, nas primeiras décadas do Império, era obra de vendedores ambulantes. Disciplinar essa prática não era exatamente uma tarefa fácil: afinal, se um desses comerciantes cometesse alguma infração e, tão rápido quanto possível, desse no pé, como encontrá-lo e chamá-lo às contas, em meio à vastidão do Brasil ainda escassamente povoado? 
Era preciso, além disso, garantir alguma qualidade e higiene no que se comercializava, ainda que essas palavras não tivessem, na prática, o mesmo significado que a elas atribuímos. E, de não pouca importância, era preciso assegurar também que vendedores ambulantes não prejudicassem os comerciantes estabelecidos em pontos fixos, ou seja, em vendas e tabernas. Acrescente-se, ainda, que muitos vendedores ambulantes eram escravos, mandados às ruas pelo respectivo senhor, que esperava receber, a cada dia, os lucros desse comércio, e ter-se-á uma ideia da variedade de questões envolvidas.
Em 8 de março de1820 - há mais de duzentos anos, portanto - a Câmara de São Paulo decidiu lançar um conjunto de posturas, algumas delas destinadas a disciplinar o comércio ambulante dos "vendedores de rua", como então se dizia. Era o caso da 7ª Postura, que enunciava:
"Que todas as pessoas que andarem pelas ruas vendendo mantimentos, gêneros ou fazendas, sejam obrigados a apregoar o que vendem, pena de seiscentos e quarenta réis, sejam forros ou escravos." (²)
Que vantagens poderiam vir dessa obrigação de proclamar o que é que se vendia? Ressalvado o desconforto com o eventual berreiro na rua, quem estivesse dentro de casa poderia ouvir e, tendo interesse, sair para comprar; evitava-se, também, que se vendesse qualquer coisa proibida. Esta 7ª Postura resultava, simultaneamente, em um favor à população e em um instrumento de controle. A imposição de multa aos desobedientes era garantia, ao menos sob o aspecto formal, de que a ordem era séria e devia ser cumprida. 
Já a 11ª Postura dizia:
"Que todos os que andarem vendendo pelas ruas desta cidade os mantimentos de farinha, feijão e milho sejam obrigados a trazer duas medidas, uma de quarta e outra de meia quarta, e a venderem ao povo [..] as quantidades [de] que precisar, com a pena de seis mil réis [...]." (²)
Disso resultavam pelo menos duas vantagens aos compradores: o uso de medidas (cuja honestidade era passível de fiscalização), garantia que se entregasse a quantidade efetivamente solicitada; por outro lado, os vendedores ficavam impedidos de impor uma quantidade mínima para aquisição.
Tudo isso parece muito justo e razoável. Nesses tempos já longínquos, contudo, nem sempre leis e regulamentos eram tão prontamente cumpridos quanto se esperava, fosse por falta de fiscalização, que não era tarefa fácil, ou mesmo por conivência de quem deveria exercer o controle. No ano seguinte, 1821, o conflito entre vendeiros e quitandeiras seria assunto na Câmara de São Paulo, e virá a ser também neste blog. Aguardem a próxima postagem. 

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827.
(2) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A educação das meninas espartanas

A educação das meninas espartanas era assunto de Estado, tanto quanto a dos meninos. Não se esperava, como regra geral, que aprendessem o manejo das armas para a ida aos campos de batalha; contudo, deviam realizar exercícios físicos que fizessem delas mulheres saudáveis, capazes de gerar filhos adequados às exigências militares de sua cidade-Estado.
Se podemos crer no que Plutarco escreveu em Vitae parallelae, Licurgo, o legislador de Esparta, determinou que as meninas "ao contrário do que sucedia em outros lugares, não permanecessem desocupadas em casa, mas deviam exercitar o corpo em corrida, luta, lançamento do dardo e no tiro com arco. Desse modo, seriam tão fortes quanto os rapazes, e seriam aptas a resistir às dificuldades que sobreviessem. [...] Licurgo pensava que as jovens habituadas a esses exercícios [...] seriam posteriormente mais fortes e capazes para resistir às dores do parto" (¹). Portanto, sem mais rodeios, a educação das meninas tinha por objetivo garantir a contínua produção de novos soldados para Esparta.
Não menos curioso é que Licurgo, rompendo com a tradição grega que ordenava às mulheres que cobrissem a cabeça quando em público, teria determinado que as jovens e mulheres espartanas não deveriam fazê-lo. Voltemos a Plutarco: "[Licurgo] fez com que as jovens espartanas, à semelhança dos rapazes, se habituassem a estar com a cabeça descoberta nos lugares públicos [...], com toda a honestidade e respeito, diante da presença dos anciãos e cidadãos de renome. [...] O costume de terem [as meninas] a cabeça descoberta não era fruto de leviandade, mas, [...] com essa prática, estavam sempre limpas e eram tão fortes quanto os rapazes" (²).
Essa educação tinha impacto considerável no comportamento das mulheres espartanas quando adultas. Ainda conforme Plutarco: "Conta-se que Górgona, mulher de Leônidas, ao ter em certa ocasião a companhia de uma estrangeira, foi por ela questionada quanto aos costumes que vigoravam em Esparta, dizendo que, ao que parecia, as mulheres da Lacônia tinham autoridade sobre os maridos. A isso a espartana teria respondido: Não se espante. É que somente nós trazemos homens ao mundo" (³). Como negar, então, que meninas e mulheres de Esparta tinham uma condição muito diferente daquela que podia ser encontrada no restante da Grécia Antiga?

(1) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História e Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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