terça-feira, 10 de julho de 2018

O padre Antônio Vieira e as confissões dos escravizadores de indígenas

Como alguém que, nascido no Reino, se criara na Bahia, o padre Antônio Vieira, ao ir por escolha própria ao Maranhão para a catequese de indígenas, pressentiu que logo teria de enfrentar a oposição dos colonizadores. A razão para atrito seria, como é fácil deduzir, o costume já arraigado de "descer índios" para obrigá-los à mais amarga escravidão.
Vieira era reputado grande pregador; ir às igrejas ouvir sermões era, em seus dias, parte da vida social nas cidades coloniais. Sem travas na língua, o jesuíta fazia uso do púlpito para atacar os desmandos correntes, enquanto o povo, zeloso em manter as aparências, ouvia em silêncio, ainda que, interiormente, moído de ódio. Vale uma pequena amostra, palavras introdutórias do Sermão de Santo Antônio, proferido em São Luís do Maranhão em 1654, em que vocês, leitores, poderão medir a audácia desse notável orador sacro:
"Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra, e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar." (¹)
Com um pouco de imaginação, quase podemos ouvir uma interjeição a custo abafada pelos devotos ouvintes!... Os sermões eram longos e a multidão reunida na igreja ouvia e ouvia. No confessionário, porém, a situação era outra.
Chega a ser surpreendente que o mesmo Vieira, que não temia desafiar os poderosos enquanto pregador, fosse partidário de muita prudência quando os figurões da São Luís colonial compareciam para confissão. Uma decisão nesse sentido fora tomada em conjunto com os mais jesuítas que o haviam acompanhado, após um debate sobre "casos de consciência", no melhor estilo da época. Disso sabemos porque, escrevendo ao Provincial do Brasil em 22 de maio de 1653, o próprio padre Antônio Vieira explicara:
"Resolveu-se que a quem se não confessasse deste pecado [de escravizar indígenas] não tínhamos obrigação de lhe falar nele, assim por não poder constar de certo de tal penitente em particular estar em má consciência, como por se presumir geralmente de todos, que o mover-lhe escrúpulo em semelhante matéria seria sem nenhum fruto (...)." (²)
Na mesma carta, Vieira passa, em seguida, a expor mais detalhadamente o procedimento que eles, inacianos, haviam combinado, ainda em relação ao espinhoso assunto da escravização de indígenas:
"Sobre esta resolução assentamos três coisas muito necessárias ao serviço de Deus, e à nossa conservação nestas partes (³). Primeira, que nas conversações com os seculares, nem por uma nem outra parte falássemos em matéria de índios. Segunda, que nem ainda na confissão se falasse em tal matéria, salvo quando a disposição do penitente fosse tal, que se julgasse seria com fruto, principalmente na morte [sic!]. Terceira, que se na confissão por escrúpulo, ou fora dela por conselho, algum nos perguntasse a obrigação que tinha, lha declarássemos com toda a sinceridade e liberdade." (⁴)
À primeira vista, alguém poderia julgar covarde a atitude dos padres, mas as últimas palavras citadas demonstram que não era nem de longe por fraqueza que se adotavam precauções. Os missionários sabiam os riscos que corriam, e que uma postura imprudente podia pôr a perder seus projetos de catequese. Talvez seja admissível, sim, levantar a questão quanto ao que teria ocorrido se a conduta assumida fosse diametralmente oposta, ou seja, se houvessem calado, enquanto pregadores, sobre a escravização de ameríndios, reservando ao confessionário mais veementes admoestações - haveria alguma diferença?
Nem toda a cautela deste mundo impediu que os moradores de São Luís e adjacências levantassem uma feroz oposição aos "padres da Companhia". Interesses econômicos pesavam mais que convicções religiosas na hora de explorar a força de trabalho dos indígenas. Vieira chegou a ir ao Reino para dar queixa ao monarca quanto à má conduta de administradores do Maranhão e do Pará, assim como do povo em geral. Tudo em vão: o apoio formal obtido na Corte não era obstáculo de robustez suficiente para deter a maré de destemperos coloniais.  

(1) VIEIRA, Antônio S. J. Sermões vol. 2. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1682, p. 309.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 324.
(3) Percebe-se que o padre Antônio Vieira tinha consciência de quão arriscada era a proposta dos missionários em defesa dos indígenas, diante da oposição dos colonizadores.

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