segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Esqueletos de baleia no caminho do padre Anchieta

Relatos dos primeiros tempos coloniais dão conta de que as baleias eram, então, muito numerosas no litoral brasileiro, a tal ponto que a Coroa concedia o monopólio de sua captura àquele que fizesse a proposta mais vantajosa. Ao traçar a biografia do padre José de Anchieta, Simão de Vasconcelos, jesuíta que escreveu no Século XVII, observou que, ao caminhar pelas areias de Itanhaém, seu biografado achava, pelo caminho, restos de baleias que por ali haviam encalhado:
"É a praia desta costa, por onde caminhava, tão áspera e dura, que um carro bem carregado não deixa sinal nela, e comumente embaraçada com armações desfeitas de corpos de baleias, que ali se dão à costa, cujos ossos perturbam, impedem a praia e fazem o caminho mais áspero; contudo esse mesmo caminho era a recreação de José, a pé, comumente descalço, costume seu em todas as mais peregrinações." (*)
Se vivesse no Século XXI, e supondo que caminhasse descalço pelas praias do Brasil, Anchieta não teria, por certo, que topar a cada passo com vestígios de baleias. Elas são, hoje, muito menos numerosas (por que seria?!!), embora vez ou outra, alguma ainda encalhe num ponto qualquer do litoral, dependendo então da boa vontade de ambientalistas dedicados para voltar a nadar, feliz da vida, pelas águas do Atlântico.

Esqueleto de baleia exposto em Ubatuba - SP

(*) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 169.


Veja também:

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Escorbuto

A alimentação pobre em vitamina C provocou muitas mortes entre marinheiros na era das grandes navegações


O escorbuto, como se sabe, é causado pela carência de vitamina C (¹). Embora já conhecido muito antes, foi ao tempo das grandes navegações que sua ocorrência veio a ser mais notada, porque os marujos ficavam longo tempo no mar, submetidos a uma alimentação péssima, e, como não poderia deixar de ser, quase sem ingredientes frescos. O problema era então gravíssimo, e muitos acabavam morrendo. 
Que tal um limão?
Todas as providências adotadas na época eram falhas, uma vez que a causa da doença era desconhecida. Ninguém sequer sabia da existência de vitaminas, e só muito tempo depois é que se verificou que um suprimento de limões e outras frutas cítricas podia ser muito útil para debelar os casos de escorbuto. 
Por séculos, no entanto, as gengivas inchadas e sangrando, que  aterrorizavam os valentes exploradores do oceano como sinal fatídico da doença, foram atribuídas a causas que não estavam de modo algum associadas a ela. Nieuhof, que esteve no "Brasil Holandês" entre 1640 e 1649, escreveu, logo depois de cruzar a Linha do Equador:
"O calor, aí, é terrível e a grande escassez de água potável - pois que se não pode contar com a das chuvas, alterada pelo ardor dos raios solares - constitui a causa principal do escorbuto." (²)
Como os leitores pode ver, Nieuhof estava completamente errado. No entanto, até que a verdadeira causa fosse descoberta, muita gente perdeu a vida, submetida, talvez, a tratamentos que nada tinham de eficazes (³).

(1) Ácido ascórbico.
(2) NIEUHOF, Joan. Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil. São Paulo: Livraria Martins, s.d., p. 7.
(3) O que surpreende é saber que ainda hoje há casos de escorbuto, e não simplesmente entre pessoas que não têm acesso a uma alimentação saudável. Ocorrem em gente que, por negligência ou desconhecimento, adota uma dieta equivocada.


Veja também:

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

As fazendas de café do Vale do Paraíba e os feudos medievais

Ao descrever as fazendas de café que visitou entre 1860 e 1861, Augusto-Emílio Zaluar fez uma observação muito interessante, que sugere algumas considerações:
"Os grandes proprietários de terrenos, deixando de frequentar os povoados, e reconcentrando-se em suas fazendas, que são os verdadeiros castelos feudais do nosso tempo, fazem convergir aí toda a vida, que reflui das povoações para essas moradas ostentosas onde muitas vezes o luxo e a riqueza disputam a primazia à magnificência dos palácios da capital." (¹)
Zaluar não estava propondo nenhuma interpretação político-econômica das fazendas de café do Vale do Paraíba como um tipo de feudalismo no Brasil. O feudalismo, antes de mais nada, caracterizou-se pela descentralização política, coisa que de modo algum ocorria no Brasil - a centralização era até exagerada e havia um governo constitucional em que a figura do imperador não era irrelevante. O que Augusto-Emílio Zaluar notou em suas viagens é que, em alguns aspectos, o estilo de vida nas fazendas é que recordava um pouco o feudalismo. 
Sim, leitores, pode até ser redundância, mas não custa lembrar que a vida dos fazendeiros e suas famílias era essencialmente rural, exceto por alguma rara viagem à Corte ou pelas idas à povoação mais próxima para festas religiosas importantes. As escassas visitas entre fazendeiros e suas famílias, em ocasiões especiais, davam motivo a grandes celebrações. Além disso, dentro da fazenda a autoridade era, salvo alguma exceção, concentrada na figura do fazendeiro cafeicultor, que, em muitos casos, era detentor de um título nobiliárquico do Império (era o "barão fulano", "visconde sicrano", etc.). A vida diária era pautada por um conservadorismo extremo e o próprio Zaluar notou que, em algumas fazendas, as mulheres ainda viviam reclusas e só apareciam em público cobertas por mantilhas. Observem os leitores que isso sucedia quando o Século XIX já passara da metade. 
É também verdade que muitas fazendas produziam quase tudo o que nelas se consumia, com exclusão de sal ou de algum artigo de luxo. O desenvolvimento das técnicas agrícolas não era prioridade, o que se constituiu, aliás, em um dos fatores para o declínio da agricultura cafeeira no Vale do Paraíba. 
Por outro lado, nenhum fazendeiro tinha exército próprio, não estava autorizado a cobrar pedágio e não doava terras para estabelecer uma relação de suserania e vassalagem (²). Acrescente-se ainda que a maior parte do trabalho nas fazendas do Império do Brasil, no Vale do Paraíba ou fora dede, era feito por mão de obra escrava, enquanto que no feudalismo vigorava a servidão, o que significava, na prática, que os trabalhadores, cuja condição era compulsória e hereditária, não podiam, apesar disso, ser comprados e/ou vendidos. Servos não eram mercadoria. Escravos, sim. 
Muito diferente foi a situação nascida a partir da expansão da lavoura cafeeira no Oeste Paulista: houve desenvolvimento da urbanização e dos transportes (³), fazendeiros tinham belas casas nas cidades, viajavam com certa frequência à Europa, adotavam um estilo de vida compatível com seu status social e faziam questão de que os filhos, ao menos os do sexo masculino, estudassem. 
Haveria alguma semelhança entre a lavoura cafeeira do Vale do Paraíba e a do Oeste Paulista? Sim, leitores havia: em ambos os casos a produção era voltada aos interesses do mercado externo (muito diferente, portanto, do que acontecia nos feudos medievais). A cotação internacional do café era determinante para a prosperidade ou a bancarrota dos fazendeiros. Interessava também a quem administrava a economia do País, que mantinha a tradição de dependência das exportações de um só produto. Na segunda metade do Século XIX a pauta de exportações do Brasil era bastante diversificada, mas, em termos de quantidade, o café era mais importante que todos os demais itens, daí resultando um elevado grau de dependência, cuja ruptura, vista por muitos como necessária, parecia, no entanto, quase impossível. 

(1) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, p. 55.
(2) Mais tarde, nos primeiros tempos da República, com a suposta universalidade do voto para indivíduos do sexo masculino, muitos fazendeiros que admitiam trabalhadores livres vivendo como agregados em suas terras não hesitavam em fazê-los votar nos candidatos de sua preferência, mas seria pouco razoável comparar práticas de manipulação eleitoral com as relações de suserania e vassalagem que estabeleciam a obrigação de assistência recíproca em caso de guerra.
(3) Para as condições da época, a expansão da malha ferroviária foi notável. 


Veja também:

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Tupinambás seriam bons franciscanos?

Quem veio com a ideia foi Gabriel Soares, autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Observando que os indígenas e, especificamente, os tupinambás, pareciam não ter um senso de propriedade privada muito apurado, já que estavam dispostos a compartilhar tudo o que tinham com seus companheiros, chegou a sugerir que esses nativos seriam ótimos franciscanos:
"Têm estes tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos, porque o seu fato e quanto têm, é comum a todos os da sua casa que querem usar dele, assim das ferramentas, que é o que mais estimam, como das suas roupas, se as têm, e do seu mantimento; [...] quando estão comendo, pode comer com eles quem quiser, ainda que seja contrário (¹), sem lhe impedirem nem fazerem por isso carranca." (²)
Percebam, leitores, que temos aqui um caso muito interessante do que chamaríamos "choque cultural": por um lado, Gabriel Soares espantava-se com a postura dos indígenas quanto à posse de coisas que, na lógica do colonizador, deveriam ser de uso individual; de outra parte, já que os nativos eram tão desapegados em relação aos bens materiais (assim é que seu comportamento estava sendo interpretado), talvez dessem bons franciscanos... 
Apenas como conjectura, devemos considerar a possibilidade de que Gabriel Soares quisesse, discretamente, sugerir que franciscanos, e não jesuítas, é que deveriam trabalhar na catequese dos tupinambás. Independente disso, o conceito de que os indígenas tinham um estilo de vida próprio, que devia ser respeitado, e que só a eles competia decidir sobre eventuais mudanças não fazia parte do panteão de ideias de um colonizador típico do Século XVI. Fica só uma dúvida: estará isso devidamente claro nesta segunda década do Século XXI?

Indígenas do Brasil com seus pertences (³)

(1) Isto é, inimigo.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 322.
(3) NIEUHOF, Johan. Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien. Amsterdam: de Weduwe van Jacob van Meurs, 1682, p. 218.


Veja também:

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Pedro Vaz de Barros e a fartura de sua mesa

Hospedagem principesca nos tempos coloniais


Pedro Vaz de Barros, fundador da capela de São Roque, que deu origem à cidade de mesmo nome no Estado de São Paulo,  foi um dos homens mais ricos de seu tempo (segunda metade do Século XVII) - pelo menos é o que assegura a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de A. Paes Leme. 
De acordo com o mesmo autor, a casa de Pedro Vaz de Barros vivia cheia de visitas. Como verão os leitores, não era para menos. A fim de manter satisfeitos os hóspedes que iam e vinham, era preciso uma cozinha eficiente, e que eficiência era essa! Conta a Nobiliarchia:
"Todos eram agasalhados com grandeza daquela mesa, na qual com muita profusão havia pão e vinho da própria lavoura, e as iguarias eram vitelas, carneiros e porcos, além das caças terrestres e voláteis, das quais os seus caçadores [...] conduziam com fartura, e por isso de tudo havia com abundância, e com tanta prevenção que, a qualquer hora da tarde que chegavam novos hóspedes, estava a mesa pronta, como se para estes fora conservada."
Pedro Taques escreveu a Nobiliarchia quando Pedro Vaz de Barros e seus contemporâneos já eram há muito falecidos, de modo que uma dose de exagero não pode ser descartada nessa história (*), mas os senhores leitores sabem muito bem que, naqueles tempos, não havia hotéis em terras do Brasil, e, por essa razão, era esperado que as pessoas que dispunham de recursos recebessem em casa os viajantes. Não ficava tal prática restrita à Capitania de São Vicente. Podia ser encontrada, por exemplo, nos engenhos de cana do Nordeste. Mas a fartura oferecida à mesa de Pedro Vaz de Barros devia ser pouco usual, ou Pedro Taques não iria falar dela com tanta admiração.
Menciona-se ainda, a respeito de Pedro Vaz de Barros, um detalhe curioso, que remete aos tempos em que, de portas adentro, era a língua indígena que predominava em São Paulo:
"Foi cognominado Grande, chamando-se-lhe assim pelo idioma brasílico: Pedro Vaz Guaçu, que quer dizer grande."
Ah, um outro detalhe, também da Nobiliarchia. Pedro Vaz de Barros, ou Vaz Guaçu, como queiram os leitores, ao contrário da regra geral de seu tempo, nunca se casou. Porém... Porém "teve vários filhos bastardos, havidos em diversas mulheres, que por todos foram nove". Para sua época, até que não foram muitos.

(*) Dizem que "quem conta um conto, acrescenta um ponto"...


Veja também:

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Os feitores dos engenhos coloniais

A maioria dos dicionários define feitor como sendo o indivíduo que administra bens ou negócios em lugar do proprietário. Andei fazendo uma investigação informal, com gente de vários níveis de escolaridade, e constatei que, no imaginário popular do Brasil, a palavra está revestida de outro significado: para a maioria, é alguém que manda ou tem poder para impor a própria vontade, enquanto que alguns foram explícitos em fazer a ligação com o indivíduo que comandava o trabalho dos escravos. Embora a minha pesquisa, até pelo caráter de informalidade, não tenha nenhuma pretensão a rigor científico, é fácil verificar que o papel do feitor, como elemento responsável pela subordinação dos cativos nos locais de trabalho, acabou impregnando o vocábulo com um aspecto altamente pejorativo, que contraria a aparente neutralidade que os dicionários tendem a apresentar.
O padre André João Antonil, escrevendo no começo do Século XVIII, foi autor da famosíssima definição, segundo a qual os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho"; foi ele, também, quem comparou os feitores aos braços do senhor:
"Os braços de que se vale o senhor de engenho, para o bom governo da gente e da fazenda, são os feitores. Porém, se cada um deles quiser ser cabeça, será o governo monstruoso, e um verdadeiro retrato do cão Cérbero, a quem os poetas fabulosamente dão três cabeças." (¹)
Que comparação essa de Antonil! Cérbero era o cão mitológico que, para os gregos, guardava a entrada do mundo dos mortos - ou inferno, se quiserem...
A questão, aqui, é que Antonil era enfático em recomendar aos senhores que cuidassem em explicitar aos feitores os limites à autoridade, para que excessos não fossem cometidos (²):
"Eu não digo que se não dê autoridade aos feitores; digo que esta autoridade há de ser bem ordenada e dependente, não absoluta, de sorte que os menores se hajam com subordinação ao maior, e todos ao senhor, a quem servem. Convém que os escravos se persuadam que o feitor-mor tem muito poder para lhes mandar e para os repreender e castigar, quando for necessário, porém de tal sorte que também saibam que podem recorrer ao senhor e que hão de ser ouvidos, como pede a justiça." (³)
É difícil saber se, de fato, senhores tinham alguma preocupação com as arbitrariedades dos feitores. Como regra geral, o que importava era que, ao fim de cada safra, os lucros que o açúcar proporcionava fossem elevados. Porém, eventualmente, algum feitor podia "sair dos trilhos", suplantando a própria autoridade do senhor ou, pior ainda, dando motivo para uma revolta de escravos. Antonil sugeria, portanto, um expediente para acalmar o cativo injustiçado e dar a entender que o senhor não fechava os olhos para os erros dos feitores, sem, no entanto, reduzir a autoridade que lhes conferia: 
"Nem os outros feitores, por terem mando, hão de crer que o seu poder não é coartado, nem limitado, principalmente ao que é castigar e prender. Portanto o senhor há de declarar muito bem a autoridade que dá a cada um deles, e mais ao maior, e se excederem, há de puxar pelas rédeas com a repreensão que os excessos merecem, mas não diante dos escravos, para que outra vez se não levantem contra o feitor, e este leve a mal de ser repreendido diante deles, e se não atreva a governá-los. Só bastará que por terceira pessoa se faça entender ao escravo que padeceu, e a alguns outros dos mais antigos da fazenda, que o senhor estranhou muito ao feitor o excesso que cometeu, e que quando se não emende, o há de despedir certamente." (⁴)
Um feitor-mor, que na prática quotidiana era quem administrava um engenho, tinha uma série de encargos suficiente para mantê-lo muito ocupado. Sua lista de tarefas em nada ficaria devendo, em termos quantitativos, à do administrador de uma grande empresa na atualidade:
"Obrigação do feitor-mor do engenho é governar a gente e reparti-la a seu tempo, como é bem, para o serviço. A ele pertence saber do senhor a quem se há de avisar para que corte a cana, e mandar-lhe logo recado. Tratar de aviar os barcos e os carros para buscar a cana, formas e lenha. Dar conta ao senhor de tudo o que é necessário para o aparelho do engenho, antes de começar a moer, e logo acabada a safra, arrumar tudo em seu lugar. Vigiar que ninguém falte à sua obrigação, e acudir depressa a qualquer desastre que suceda, para lhe dar, quanto puder ser, o remédio. Adoecendo qualquer escravo, deve livrá-lo do trabalho e pôr outro em seu lugar, e dar parte ao senhor, para que trate de o mandar curar, e ao capelão, para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os mais sacramentos para morrer. Advirta que se não metam no carro os bois que trabalharam muito nos dias antecedentes, e que em todo o serviço, assim como se dá algum descanso aos bois e aos cavalos, assim se dê, e com maior razão, por suas equipações, aos escravos." (⁵)
O trabalho do feitor-mor era complementado, na maioria dos engenhos, pelo de um feitor encarregado exclusivamente da moenda, havendo, também, feitores "dos partidos", ou seja, feitores encarregados de administrar as plantações de cana-de-açúcar.
O minucioso Antonil (⁶) ainda tratou de explicar qual deveria ser o salário anual dos feitores:
"Ao feitor-mor dão, nos engenhos reais, sessenta mil réis. Ao feitor da moenda, aonde se mói por sete e oito meses, quarenta ou cinquenta mil réis, particularmente se se lhe encomenda algum outro serviço, mas aonde há menos que fazer, e não se ocupa em outra coisa, dão trinta mil réis. Aos que assistem nos partidos e fazendas, também hoje, aonde a lida é grande, dão quarenta ou quarenta e cinco mil réis." (⁷)
É difícil determinar, com exatidão, qual era o poder de compra dos salários referidos, mas sabe-se que antes que o preço dos cativos chegasse às nuvens em decorrência da descoberta do ouro das Gerais, sessenta mil réis era o preço usual de um escravo forte e saudável. A conclusão óbvia é que, malgrado a autoridade de que era investido, da brutalidade no trato com os escravos que o caracterizava, do verdadeiro terror que impunha aos subordinados, um feitor era, afinal, também um indivíduo de baixa posição social. Trabalhava muito, tinha enormes responsabilidades, mas não via qualquer perspectiva de enriquecer com a renda que lhe cabia (⁸). Os verdadeiros lucros do açúcar iam para outros bolsos.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 14.
(2) Vê-se, portanto, de onde é que vem o conceito popular da palavra feitor, a que me referi; o conselho dado por Antonil deixa entrever o fato de que os homens encarregados de comandar os escravos eram dados a cometer arbitrariedades.
(3) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio).  Op. cit., p. 14.
(4) Ibid., pp. 14 e 15.
(5) Ibid., pp. 15 e 16.
(6) A obra de Antonil é valiosa, entre outros aspectos, porque preservou detalhes da vida nos engenhos que, de outro modo, talvez fossem perdidos para sempre.
(7) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio).  Op. cit., p. 17.
(8) Antonil explicava, na mesma obra, que os capelães de engenho recebiam, anualmente, quarenta ou cinquenta mil réis, mais alimentação à mesa do senhor. Havia, em cada engenho, muitos outros trabalhadores livres.


Veja também:

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Jangadas

Jangada ao mar... (¹)

Já faz bastante tempo, leitores, mas quando estava com uns sete anos, eu tinha de praticar uma lição de piano cuja letra dizia: "Minha jangada de vela, que vento, queres levar..."  Lembrando a cançãozinha irritante, trato hoje justamente das jangadas e, como não poderia deixar de ser, da importância histórica dos jangadeiros.

Jangadas indígenas

Dentre as embarcações usadas por indígenas do Brasil, as jangadas despertaram a curiosidade dos colonizadores europeus devido à simplicidade com que eram feitas, aliada à eficiência quando era preciso vencer as ondas na navegação costeira do Atlântico. Escrevendo no Século XVI sobre o fato de que os ameríndios eram hábeis na pesca, Pero de Magalhães Gândavo explicou, em sua História da Província de Santa Cruz:
"Também se sustentam de muito marisco e peixes que vão pescar pela costa em jangada, que são uns três ou quatro paus pregados nos outros e juntos de modo que ficam à maneira dos dedos da mão estendida, sobre os quais podem ir duas ou três pessoas ou mais se mais forem os paus, porque são muito leves e sofrem muito peso em cima d'água." (²) 
Quase um século mais tarde o jesuíta Simão de Vasconcelos descreveria a jangada dos indígenas de modo semelhante: 
"No mar usam por embarcação de jangada, que vem a ser três até quatro paus boiantes ligados entre si, onde levam linhas e anzóis, e pescam peixe grosso." (³)

A jangada indígena ganhou uma vela

Os leitores que conhecem as jangadas que ainda hoje andam em uso devem ter notado que nas descrições dos primeiros tempos coloniais falta alguma coisa - a vela. Vê-se, portanto, que houve, neste caso, uma fusão de elementos da cultura indígena e do conhecimento náutico que sobrava aos portugueses. Assim, a pequena embarcação usada pelos nativos ganhou um modo de tirar partido dos ventos. A nova versão foi muito bem descrita por François Biard, pintor francês que esteve no Brasil entre 1858 e 1859:
"Uma velazinha parece surgir de dentro do mar; caminha na nossa direção com vento a favor. Vemos apenas uma vela, sem sabermos qual o seu ponto de apoio. [...]. "São jangadas, diz-me ao ouvido um marselhês que vivia há anos em Buenos Aires. O senhor vai ver daqui a pouco como são embarcações seguras, embora não o pareçam." Efetivamente, era segura. Meia dúzia de paus amarrados entre si, um banco e, ao centro, um furo onde se fixava o mastro. Nada mais. Nessa espécie de embarcações não se vai ao fundo, é verdade, porém tem-se os pés sempre dentro d'água, e, às vezes, um pouco mais do que os pés." (⁴)

Jangadas e jangadeiros cearenses na luta abolicionista

Ocorre que as jangadas do Ceará e, naturalmente, os respectivos jangadeiros, tiveram participação importantíssima à época em que fervia a campanha abolicionista. Foi entre 1880 e 1881, e, para bom entendimento da questão, será preciso dizer que, nesse tempo, eram os jangadeiros que transportavam, desde os navios, aqueles passageiros que queriam ir à cidade de Fortaleza. Isto posto, vamos ao que explicou Osório Duque-Estrada, relativamente à ação antiescravista dos jangadeiros cearenses:
"Desde 1867, constituíra-se o Ceará em centro do comércio exportador de escravos para as províncias do Sul para onde seguiam constantemente, separados para sempre de filhos, esposas e mães, levas e levas de míseros escravizados. 
Francisco do Nascimento, que gozava de grande influência na sua classe, reuniu logo todos os jangadeiros e obteve deles o juramento de que nenhum escravo seria mais embarcado, para entrar ou para sair, no porto de Fortaleza." (⁵)
Com grande probabilidade, a maioria dos jangadeiros devia ser composta por gente de pouca instrução formal, o que torna ainda mais surpreendente o nível de consciência cívico-política de sua decisão. Ora, não satisfeitos com esse notável serviço que já prestavam ao Brasil, os jangadeiros foram além, e decidiram não desembarcar os deputados que haviam participado da articulação com vistas a impedir o que viria a ser a Lei dos Sexagenários (aprovada em 1885):
"Um telegrama de Fortaleza, publicado na Gazeta da Tarde, anunciava que os jangadeiros reunidos no dia 6 de agosto, haviam resolvido impedir o desembarque dos representantes do Ceará que votaram a moção contra o gabinete Dantas.
Esse fato deu lugar a sátiras e humorismo de quase todos os jornais ilustrados da época." (⁶)
Convenhamos: não era para menos!

(1) KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1816. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 138.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 126.
(4) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 25.
(5) DUQUE-ESTRADA, Osório. A Abolição. Brasília: Ed. Senado Federal, 2005, pp. 97 e 98.
(6) Ibid., p. 122.


Veja também:

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A influência do despotismo de Estado no âmbito das relações familiares

Qualquer jovem estudante sabe: no Brasil dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, os senhores de engenho, fazendeiros, bandeirantes, etc., comandavam as respectivas famílias com autoridade inconteste. Para eles, pouco valiam as leis escritas. A justiça, eles a faziam aplicar como bem entendiam, o que significava que, à menor suspeita de alguma falta, mandavam matar mesmo a mulher ou algum dos filhos. Há, por exemplo, um caso célebre de um sujeito que mandou que um de seus filhos matasse um seu outro filho (irmão, portanto, daquele a quem se encomendou o assassinato), em virtude de desconfiar de que o rapaz andava de caso com uma de suas amantes (dele, pai). A ordem foi cumprida e o patriarca ainda teve o desplante de ordenar que o padre das redondezas comparecesse para o ofício fúnebre de missa por intenção da alma do assassinado.
Terrível? Essa é apenas uma dentre muitas histórias mais ou menos parecidas. 
Joaquim Manuel de Macedo, médico por formação, porém mais conhecido como romancista (foi também professor de História no Imperial Colégio de Pedro II), tinha uma ideia interessante sobre as atitudes brutais que, em certo tempo, imperaram nas famílias brasileiras - elas seriam apenas a aplicação, em família, do mesmo princípio que regulava o despotismo no âmbito do Estado, ainda que admitindo haver, apesar de tudo, casais que viviam bem e pais que, de fato, tinham grande amor pelos filhos. Ressalvava, no entanto, que "estas exceções não destruíam a regra que proviera daquela rudeza de costumes e da educação mais que austera, quase bárbara, da sociedade daqueles tempos de despotismo do governo do Estado, e despotismo do governo das famílias." (¹)
Um desdobramento do tal despotismo patriarcal, que hoje salta aos olhos de quem se dá ao trabalho de estudar a sociedade dos tempos coloniais, está relacionado à maneira como eram contratados os casamentos, em particular nos casos de famílias dotadas de algum patrimônio. Sigamos apreciando o humor no estilo de Macedo:
"Naquele tempo (no bom tempo), em grande número de casos o marido não era um consorte, era um senhor, e as moças casavam sem saber com quem, viam os noivos no dia do casamento, porque os pais tomavam pelos noivos e noivas o trabalho de enlaçar-lhes os corações sem consultá-los. O pai do noivo e o pai da noiva namoravam-se mutuamente com todos os preceitos e regras da aritmética, e desde que se punham de acordo na discussão do dote, ficava resolvido que o rapaz e a rapariga se adoravam perdidamente, ainda que nunca se tivessem visto, e realizava-se o casamento.
Quantas uniões infelizes resultavam de semelhante prática pode-se bem calcular. Deviam por certo abundar os maridos tiranos e as mulheres vítimas, as mulheres infiéis e os maridos desgraçados, e verdadeiros purgatórios nas vidas que passavam muitos casais." (²)
Ah, leitores, acho que tudo isso põe de sobreaviso quem quer que tenha a veleidade (ou, talvez, a ingenuidade) de achar que tempos antigos eram, necessariamente, tempos melhores. Joaquim Manuel de Macedo por certo não concordaria. Se vivesse em um universo patriarcal, a sua Moreninha estaria em muito má situação. Não era, porém, descabida entre a elite educada da capital do Império.

(1) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, pp. 378 e 379.
(2) Ibid., pp. 377 e 378.


Veja também:

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Modo indígena de evitar uma luta contra inimigos mais poderosos

O problema, desde a Antiguidade, tem inquietado comandantes militares e estrategistas das mais variadas civilizações: como proceder para uma retirada segura, sempre que se verifica que o inimigo tem forças muito superiores? Sim, porque, afinal, retirada não é derrota, e pode ser um recurso eficiente para preservar as tropas, adiando o confronto até uma ocasião mais favorável.
Indígena brasileiro com armas (²)
Os indígenas do Brasil, se podemos confiar no relato feito pelo Padre Simão de Vasconcelos no Século XVII, tinham uma tática bem definida para essas situações:
"Em suas guerras contam alguns destes um modo gracioso de que usavam os menos poderosos, quando queriam evitar o encontro; que como ordinariamente vivem em ilhas ou ribeiras do rio, e usam de canoas mui leves, no tempo em que hão de ser acometidos, passam à outra parte do rio, e logo tomando as canoas às costas, as vão esconder em algum dos muitos lagos que há entre as matas, e fogem, deixando os contrários frustrados; e idos eles, tornam a restituir-se às suas terras com as mesmas canoas." (¹)
Fica apenas uma dúvida: o que acontecia ao vinho de caju que as tribos contendoras deviam ter preparado para comemorar a vitória?

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 37.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 270. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O Calendário Republicano da Revolução Francesa

Como era estruturado o Calendário Republicano

Na febre de remover tudo o que recordava o Antigo Regime, as lideranças revolucionárias na França da Convenção Nacional decidiram criar um novo calendário, que nem de leve remetesse os usuários às crenças judaico-cristãs. Foi assim que nasceu o Calendário Republicano, que vigorou de 22 de setembro de 1792 a 31 de dezembro de 1805. Napoleão Bonaparte encarregou-se de colocar-lhe um termo, ainda que durante a chamada Comuna de Paris (1871) tenha passado por uma brevíssima ressurreição, para, em seguida, ser definitivamente sepultado.
Para quem ficou curioso por saber como era estruturado o novo calendário, vamos à explicação. Era mantido o mesmo número de meses do calendário juliano/gregoriano - doze, portanto - sendo trinta os dias de cada mês, com um acréscimo de cinco dias a cada ano, para totalizar 365. Os anos bissextos tinham, por suposto, um acréscimo de seis dias.
Os meses tinham, pela ordem, os seguintes nomes: Vindemiário, Brumário, Frimário, Nivoso, Pluvioso, Ventoso, Germinal, Floreal, Pradial, Messidor, Termidor e Frutidor. Ufa!...
Cada mês era dividido em três "semanas" de dez dias (que tal, leitores?), que eram denominadas décadas. Tentou-se criar também um sistema de horas com base decimal, mas sem sucesso na prática.

Datas famosas no Calendário Republicano

Um exemplo de data importante que ficou conhecida por sua designação no Calendário Republicano é 9 Termidor do Ano II, que corresponde a 27 de julho de 1794, ou seja, o ponto final ao "Reinado do Terror". Robespierre e outras figuras adoráveis foram aprisionados e executados. Na guilhotina, evidentemente.
Uma outra data acabou por ser ainda mais notável: 18 Brumário, ou 9 de novembro. Nesse dia, em 1799, um golpe de Estado pôs fim ao Diretório, de modo que o governo passou a ser exercido pelo Consulado, tendo à frente o general Napoleão Bonaparte, no cargo de primeiro-cônsul. Era o fim da Revolução Francesa. 
Mais de meio século mais tarde, Luís Napoleão (sobrinho de Napoleão Bonaparte), também através de um golpe, viria a ser imperador da França, com o título de Napoleão III. Esse acontecimento propiciou a Karl Marx a oportunidade de resgatar uma ideia de tremendas implicações históricas, segundo a qual os grandes acontecimentos sucedem duas vezes. Escreveu ele em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte:
"Hegel afirmou em algum lugar que todos os grandes eventos, bem como personagens da História mundial, ocorrem duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira como Tragédia, a segunda como Farsa." (¹)
Neste ponto talvez seja útil lembrar que a ideia da dupla ocorrência de grandes eventos e personagens não foi invenção de Hegel - ela é muitíssimo mais antiga. Mas prossigamos, considerando o elemento original proposto por Marx, ou seja, o par tragédia / farsa.
Os leitores entendem, naturalmente, que Marx estava a referir-se à tragédia e à farsa no sentido que lhes atribui a arte dramática, o que até dispensaria maiores comentários. Não sem sarcasmo, sugeria que a investida política de Luís Napoleão não passava de uma comediazinha burlesca, quando comparada às ações lideradas por seu famoso tio. É óbvio, no entanto, que Marx não estava propondo que todo e qualquer acontecimento, por trivial que fosse, teria, em outra circunstância, uma repetição.

"18 Brumários" fora da França

Resta lembrar que muitos outros "18 Brumários" ainda aconteceram nos novembros que a humanidade tem presenciado. A história da Alemanha registra, curiosamente, uma série de eventos a 9 de novembro, alguns de feliz memória, e outros, lamentáveis: em 1918, foi o fim do Império, seguido da proclamação da República; em 1923, o Putsch de Munique (²); em 1938 a Kristallnacht; em 1989, a queda do muro de Berlin, só para citar alguns.

(1) MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte 2ª ed. Hamburg: Otto Meissner, 1869, p. 1. O trecho citado é tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Tentativa fracassada de golpe por parte de nazistas; também conhecido como Putsch da Cervejaria.


Veja também:

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O que se ensinava aos meninos e às meninas nas escolas do Império do Brasil

A maioria das escolas públicas que havia no Império do Brasil estava limitada a ensinar leitura, escrita e as quatro operações fundamentais da aritmética. Algumas, para dar um verniz de moralidade ao currículo, acrescentavam uma disciplina chamada "doutrina cristã" - católica, entenda-se, em conformidade com a religião oficial estipulada na Constituição de 1824. Não era muita coisa, mas era o que estava disponível para a maioria das crianças. O avanço, em relação ao que se encontrava no século precedente, ficava por conta da existência, em vários lugares, de escolas, ou pelo menos, classes, destinadas às meninas, regidas em geral por uma professora. Coeducação dos sexos? Nem pensar! Era fenômeno cuja aparição ainda provocava algum escândalo e não seria facilmente aceito por famílias conservadoras.
Gente mais endinheirada podia, no entanto, encaminhar os filhos para estudos nos colégios das capitais das províncias ou mesmo no Imperial Colégio de Pedro II, uma aspiração de todo menino que sonhava em progredir até à conclusão de um dos (pouquíssimos) cursos superiores então existentes no País (era por esse motivo que o luxo supremo ainda consistia em ir estudar na Europa). Mas como o Pedro II não tinha vaga para todos os potenciais estudantes, havia na Corte um número considerável de colégios particulares. Quase todos ofereciam regime de internato, para acomodar adolescentes que vinham de longe, já que naqueles tempos a maior parte da população vivia em áreas rurais, onde não havia escolas. Por suposto havia, também, colégios para meninas de famílias abastadas. Além dos costumes severos que vigoravam, uma outra razão para a resistência ao estabelecimento de escolas mistas é que os programas de estudos usuais para meninos e para meninas eram muito diferentes entre si. 
Não existindo um currículo nacional obrigatório (o problema é antigo), o que acontecia, na prática, é que cada colégio acabava por ensinar aquilo que seus proprietários julgavam mais conveniente, levando em conta o interesse do público pagante. Havia quem tratasse logo de ministrar instrução prática em um ofício, ou de treinar para habilidades comerciais, ou ainda, não raro, de capacitar para o exercício de alguma função burocrática subalterna em um órgão público (aqui também é preciso notar que a aspiração é antiga). O currículo do Pedro II servia de modelo para instituições particulares que preparavam futuros acadêmicos, ainda que prevalecesse uma geral anarquia quanto aos programas das séries anuais. Era possível, em muitos colégios, que os alunos escolhessem quais matérias queriam cursar, com a "ajuda" dos palpites paternos, é claro. Como regra, uma formação supostamente humanística estava na moda, exceto para aqueles estudantes destinados às escolas militares.
Para dar uma ideia aos leitores do que é que se ensinava aos meninos e meninas que frequentavam colégios de elite na Corte, selecionei dois anúncios que apareceram no Almanaque Laemmert de 1852. O primeiro deles, de um colégio para meninos, especificava:
"Neste colégio, estabelecido em uma excelente, espaçosíssima e mui bem arejada casa, e em uma das melhores ruas desta Corte, ensinam-se todos os preparatórios para as academias do Império, e bem assim diversas outras línguas, ciências, belas-artes e exercícios." (¹)
Vinha, a seguir, a lista de disciplinas oferecidas: Leitura, Ortografia, Doutrina Cristã, Gramática, Caligrafia, Aritmética, Álgebra, Geometria, Geografia, História Universal, História do Brasil, Cosmografia, Cronologia, Leitura e Explicação da Constituição do Império, Noções de Ideologia, Retórica e Poética, Latim, Francês, Inglês, Alemão, Grego, História da Filosofia, Lógica, Psicologia, Moral, História Sagrada, Leitura do Saltério, Leitura das Odes Sacras do Padre Caldas, Desenho Linear, Desenho Elementar em Paisagens e Contornos, Desenho de Paisagem e de Sombreado, Cópias de Gesso, As Cinco Posições Naturais e Curvadas, Valsa, Solo Inglês, Quadrilhas, Piano, Flauta, Esgrima e Ginástica. 


Esperavam mais alguma coisa, leitores? É fácil notar que o currículo era deficiente quanto ao que nós, hoje, chamaríamos de Ciências da Natureza.
Vejamos, agora, um anúncio de colégio para meninas. Dizia:
"Neste colégio se ensina a ler e escrever gramaticalmente, a contar e a executar todas as qualidades de bordados, branco, matizes, estofo de sombra de ouro, enfim todas as habilidades de agulha." (²)
Acrescentava, ainda, que, mediante pagamento adicional, as alunas podiam ter aulas de desenho, dança, piano e canto. E concluía:
"Os professores são da mais reconhecida habilidade para o bom desempenho da sua arte, e as alunas são tratadas com toda a limpeza e asseio, e com o maior carinho possível." (³)


(1) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, p. 337.
(2) Ibid, p. 342.
(3) Ibid.


Veja também:

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Uma festa para o governador-geral que foi ao Rio de Janeiro

As povoações fundadas no Brasil ao longo do primeiro século de colonização viviam, quase todas, em grande isolamento. As leis do Reino eram obedecidas quando se bem entendia, mesmo que houvesse algum tipo de autoridade nomeada e reconhecida. Como regra, fazia-se justiça com as próprias mãos.
Tanta liberdade tinha lá seus inconvenientes. O isolamento era um mau negócio quando era preciso defender uma localidade contra ataques externos (de piratas e corsários) ou internos (de povos indígenas, que, tendo sofrido injúrias, revidavam).
A lógica inicial da colonização, através de Capitanias Hereditárias, favorecia a descentralização. Esperava-se, é claro, que os donatários oferecessem ajuda uns aos outros sempre que necessário, mas até que um pedido de socorro chegasse aos vizinhos, é bem provável que uma catástrofe já houvesse acontecido. Além disso, o sistema de Capitanias fracassou, em grande parte porque donatários não se interessaram por elas, nem chegando a vir conhecê-las, ou porque não tinham recursos para investir na colonização.
O Governo-Geral, criado em 1548, restringiu a autoridade dos donatários, é verdade, em busca de uma centralização administrativa, mas não foi capaz de dar solução aos problemas gerados pelo isolamento dos núcleos de colonizadores. O que poderia fazer um governo com sede na Cidade da Bahia (Salvador), no caso de um ataque fulminante a uma vila nas Capitanias de Santo Amaro ou São Vicente? O próprio governador-geral evitava longas ausências de sua capital, segundo relatos da época, com receio de que a população aprontasse alguma sedição. É por isso que Frei Vicente do Salvador (¹) relata que, no final do Século XVI, quando o governador-geral Dom Francisco de Sousa foi ao Rio de Janeiro (²), houve por lá grandes festividades: "...se partiu para o Rio de Janeiro, donde foi recebido do capitão-mor, que então era Francisco de Mendonça, e do povo todo com muito aplauso, por ser parte onde nunca vão os governadores-gerais."
As festas, todavia, não foram capazes de camuflar as formidáveis encrencas que campeavam por terras fluminenses, de modo que ao governador coube mandar vir o ouvidor-geral, a fim de pôr fim às desordens. Continua Frei Vicente do Salvador:
"Achou tantos pleitos cíveis e crimes indícios, que para os haver de julgar lhe fora necessário deter-se ali muito tempo, pelo que mandou chamar o ouvidor-geral Gaspar de Figueiredo Homem, que se havia casado em Pernambuco, para o deixar ali."
Entrego aos leitores o imaginar qual seria a situação das pequeninas povoações no interior, se assim andavam as coisas no Rio de Janeiro, que, bem ou mal, ainda recebia alguma atenção dos funcionários coloniais, diante da evidente cobiça que despertava em monarcas europeus que sonhavam em conquistar para si mesmos uma fatia das promissoras terras do Continente Americano.

(1) História do Brasil; o manuscrito data de  c. 1627.
(2) Frei Vicente do Salvador diz que D. Francisco de Sousa saiu da Bahia em outubro de 1598, mas não declara a data de sua chegada ao Rio de Janeiro.


Veja também:

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Em que trabalhavam os presos no Império do Brasil

O Código Criminal do Império do Brasil estipulava duas situações possíveis para os condenados à pena de prisão, desde que fossem de condição livre: a "prisão simples" e a "prisão com trabalhos" (¹). No segundo caso, o Artigo 46 estabelecia:
"A pena de prisão com trabalhos obrigará aos réus a ocuparem-se diariamente no trabalho que lhes for destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das sentenças e dos regulamentos policiais das mesmas prisões." (²)
Era passível de prisão com trabalhos quem, por exemplo, danificasse "monumentos, edifícios, bens públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade, decoração ou recreio público" (Artigo 178), a mãe que matasse "o filho recém-nascido para ocultar a sua desonra" (Artigo 198), ou ainda quem contraísse "matrimônio segunda ou mais vezes, sem se ter dissolvido o primeiro" (Artigo 249), o que se reputava como poligamia (³).
Não se pode saber, com exatidão, em que é que trabalhavam os apenados que havia em todo o País, mas podemos ter uma ideia a partir do que acontecia na Casa de Correção do Rio de Janeiro (⁴). O Almanaque Laemmert de 1852 trazia, relativamente à Casa de Correção da capital do Império: "...tem noventa e tantos sentenciados que trabalham pelos ofícios de carpinteiro, sapateiro, alfaiate, tanoeiro e encadernador, e alguns são ocupados no serviço do estabelecimento e em fazer chapéus de palha grosseiros." (⁵)
É provável que alguns dos leitores estejam quase em estado de choque diante do número irrisório de presos daqueles tempos - como é que as coisas podem ter mudado tanto? 
Recuperem o fôlego, pois, e vejam que os ofícios citados refletem ocupações comuns no Século XIX. Quem já tinha uma dessas profissões tinha de exercê-la, ainda que na cadeia; quem não tinha, por suposto acabaria ocupando o tempo em aprender alguma coisa. A prática, afinal, não era má em si mesma, e até podia ser muito útil para aqueles que, tendo cumprido a pena, saíssem da prisão e fossem procurar emprego. Fica apenas a ressalva de que as prisões existentes no interior do Brasil estavam, em sua maioria, bem longe dessa realidade.

(1) Não é a mesma coisa que condenação à pena de galés - esta era aplicada em crimes considerados muito graves e/ou em caso de reincidência, situação em que os presos eram empregados em trabalhos públicos e estavam sempre acorrentados. 
(2) ____________ Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Quirino e Irmão, 1861, p. 22.
(3) Ibid., respectivamente pp. 128, 147 e 179.
(4) O Rio de Janeiro era a capital do Império do Brasil.
(5) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, p. 105.