domingo, 28 de agosto de 2011

O que se fazia com o bagaço da cana nos engenhos coloniais

Há um certo consenso de que a fase inicial da colonização do Brasil se fez sem muito cuidado quanto à conservação dos recursos naturais. Pero Vaz de Caminha, em seu relatório sobre a nova terra encontrada, escreveu: "As águas são muitas; infinitas", e, "os arvoredos são muitos e grandes, e de infinitas espécies". Toda essa fartura, ainda mais espantosa aos olhos de quem vinha de Portugal, territorialmente tão pequeno, pode ter até parecido inesgotável. Há quem relate que árvores inteiras eram derrubadas apenas para facilitar a colheita de uns poucos frutos.
Essa atitude descuidada, no entanto, não tardaria a evidenciar seus péssimos resultados, de modo que já no século XVII providências foram tomadas no sentido de impedir a construção de engenhos de cana-de-açúcar muito próximos uns dos outros, pois poderia faltar madeira para abastecê-los (¹). E, ao a Coroa portuguesa enviar seus representantes ao Brasil, nas últimas décadas do mesmo século, já se lhes fazia a recomendação de que zelassem pela conservação das matas, pois o pau-brasil, observava-se,  ia desaparecendo de áreas onde fora abundante.
Porém, não deve imaginar o leitor que uma política baseada em "reduzir, reutilizar, reciclar" estivesse a caminho. Longe disso! Exemplificando o quanto a questão ambiental era, sob muitos aspectos, ainda ignorada, basta considerar o que era feito do que sobrava no processo produtivo açucareiro - o bagaço da cana-de-açúcar.
Para compreender o que ocorria, será bom interrogar quem tudo viu por si mesmo, o jesuíta André João Antonil (²). Além de investigar o assunto, registrou todo o procedimento habitual na produção de açúcar em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas. Tal era a precisão do relato que o governo luso, depois de uma breve permissão para que a obra circulasse, mandou apreendê-la e destruí-la, pelo receio de que viesse a facilitar o trabalho de eventuais concorrentes na produção de açúcar, além, é claro, de excitar a cobiça de outras potências. Mas vamos ao que disse Antonil.
Ao tratar do trabalho que se fazia na parte mais perigosa de um engenho, a moenda, Antonil explica que havia pelo menos uma escrava encarregada de remover o bagaço de cana, após a moagem:
"... e outra finalmente para botar fora o bagaço, ou no rio, ou na bagaceira, para se queimar a seu tempo. E se for necessário botá-lo em parte mais distante, não bastará uma só escrava, mas haverá mister outra, que a ajude: porque de outra forma não se daria vazão a tempo, e ficaria embaraçada a moenda." (³)
Fácil de compreender, não é, leitor? Jogava-se, despreocupadamente, todo o bagaço "no rio", ou, "na bagaceira, para se queimar a seu tempo".
Havia, apesar disso, uma terceira opção. Posteriormente, na mesma obra, esse padre, em um curioso jogo de personificação, tem a ideia de demonstrar que a doce cana-de-açúcar, para produzir o que dela se esperava, era brutalmente torturada, ao longo do processo que ia do corte, nos canaviais, ao descarte do bagaço:
"Levam-se assim presas, ou nos carros, ou nos barcos à vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus, que vão algemados para a cadeia, ou para o lugar do suplício; padecendo em si confusão, e dando a muitos terror. Chegadas à moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto têm de substância? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço?" (⁴)
Eis aí como sabemos que além de serem queimados ou lançados nos rios, os "corpos esmagados e despedaçados" podiam, também, acabar indo mar afora, pelas águas dos "mares verdes do Brasil", fosse porque se entendia que o bagaço, seguindo o curso dos rios chegaria, inevitavelmente, ao mar, seja porque, de fato, havia vários engenhos coloniais cuja localização era bem próxima ao Atlântico, até porque, naqueles dias de difícil transporte, era uma grande vantagem para os exportadores de açúcar que suas propriedades não estivessem longe dos portos.

(1) Veja, sobre este assunto, a postagem: O desmatamento provocado pela agricultura no Período Colonial.
(2) Sobre a real identidade de André João Antonil veja a postagem: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Período Colonial.
(3) ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: 1711, p. 55.
(4) Ibid., p. 103.


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