terça-feira, 29 de setembro de 2020

Nos internatos do Século XIX

Colégios em regime de internato já foram numerosos. Entende-se: na maior parte das povoações, havia, quando muito, uma escolinha de primeiras letras. Quem tivesse (ou pudesse ter) pretensões mais amplas de instrução precisava recorrer a colégios existentes nas cidades maiores e, por essa razão, era preciso que muitos alunos residissem na própria instituição de ensino. A proliferação de escolas em toda parte explica, ainda que parcialmente, o declínio no número de internatos disponíveis. Hoje constituem uma opção, não são inevitáveis.
Agora, leitores, convenhamos: não devia ser tarefa das mais fáceis preservar a disciplina no corpo discente de um internato, mesmo reconhecendo que no passado havia meios de coerção que ninguém hoje, em sã consciência, ousaria defender. Se querem um exemplo, considerem o que acontecia no Século XIX no internato do Imperial Colégio de Pedro II, instalado na capital do Império, para ser um modelo às instituições similares que viessem a ser criadas no Brasil. Vocês já vão entender do que estou falando. 
Joaquim Manuel de Macedo, que foi professor de História no Pedro II (¹) e, portanto, sabia do que estava falando, descreveu, em uma de suas obras, Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro, as instalações do internato, mencionando: "Indo da direita para a esquerda, a outra parte da casa que o corredor divide contém uma excelente sala que é a secretaria do internato, e em seguida uma saleta ou largo e curto corredor, onde está o livro do ponto; depois, uma outra saleta que se tornou em dois quartos destinados a servirem de prisão para os alunos que essa pena merecem". (²)
Haveria, por acaso, exagero nas palavras de Macedo? Vejamos, então, pela perspectiva de um aluno, José Vieira Fazenda, que, muito tempo depois de seus dias estudantis, escreveu em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, ao recordar as disputas em que os colegiais se envolveram, em razão de um debate político que, na época, teve certa importância: "[...] As coisas chegariam a mau resultado, se não fora a disciplina rigorosa do Internato e o receio da privação de saída ou de dar com os ossos na solitária, quarto escuro, cheio de ratos, colocado por baixo de uma escada". 
É impossível não questionar a "pedagogia" embutida na existência de um compartimento desses em uma casa de ensino (³). Talvez fosse, porém, um poderoso instrumento de dissuasão para adolescentes turbulentos. Assim como as pessoas, cada época, com seus conceitos de instrução, tem suas virtudes e seus defeitos.

(1) Era médico por formação, mas fez muito sucesso como romancista. Lembram-se de A Moreninha?
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 366.
(3) Seria incorreto supor que todos os internatos do Século XIX rezavam pelo mesmo catecismo. Mas, para quem quiser dar um mergulho no que poderia ser o quotidiano dos estudantes em um desses estabelecimentos, a leitura de O Ateneu, de Raul Pompeia, pode ser instrutiva.


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O Mediterrâneo foi uma via de fusão e irradiação de culturas na Antiguidade

No modo como jovens estudantes são, às vezes, apresentados aos povos da Antiguidade, pode-se ter a impressão de que egípcios, gregos, romanos, fenícios, hebreus, entre outros, viviam, cada um, em isolamento em relação aos demais. Teriam, portanto, cultura própria e exclusiva, quanto à língua, vestuário, escrita, religião, arquitetura, atividades econômicas e quase tudo quanto se possa imaginar. Ora, leitores, acontecia exatamente o contrário.
Embora o grau de intercâmbio entre os diferentes povos tenha variado de uma época para outra, pode-se, em linhas gerais, dizer que o mar Mediterrâneo foi, na Antiguidade, uma poderosa via de comunicação, que resultou em irradiação cultural e em fusão de ideias, a tal ponto que, para quem se dedica ao estudo dos povos estabelecidos ao seu redor, fica às vezes difícil determinar a origem de certos elementos. Querem um exemplo? Vamos ao mais simples. É comum que se diga que nosso alfabeto teve origem entre os fenícios. Será, mesmo? Há quem pense que pode ter começado na confluência de rotas terrestres que ligavam a Mesopotâmia à Palestina e, daí, alcançavam o Egito. Os fenícios, hábeis comerciantes, logo perceberam a vantagem de uma escrita alfabética, muito mais simples e fácil que os hieróglifos egípcios, e, apropriando-se dela, espalharam-na pela bacia do Mediterrâneo, durante suas incansáveis viagens de negócios. Não era preciso pertencer a uma classe sacerdotal ou ter a profissão de escriba para aprender umas poucas letras e fazer uso delas
Especialistas têm-se dedicado à análise do verdadeiro emaranhado de deuses que povos do Mediterrâneo, quase todos politeístas, desenvolveram. É inegável a equivalência entre muitas divindades, ainda que a mais clássica de todas as semelhanças, a dos gregos e romanos, seja alvo de questionamentos. Sabe-se, porém, que, nos primórdios, era generalizada a associação de divindades com forças da natureza, cujo culto, não raro, estava vinculado ao ciclo agrícola anual. Em termos práticos, variava o nome de deuses e deusas, mas os mitos guardavam semelhança e os rituais a eles associados também evidenciavam, ou uma origem comum, ou a inspiração em práticas alheias.
O intercâmbio cultural não foi, contudo, sempre de ordem pacífica. As guerras foram parte desse processo, resultando, eventualmente, em dominação de um povo por outro, mais forte militarmente, mas nem sempre superior quanto aos conhecimentos científicos, à arte ou à tecnologia. Atenas foi vencida por Esparta, a até então obscura Macedônia dominou cidades gregas poderosas e Roma subjugou a Grécia. Mas, como se sabe, a cultura grega exerceu tal encanto sobre os vitoriosos que, em pouco tempo, a elite romana passou a aprender grego e a imitar a arte grega em seus múltiplos aspectos. O maior confronto, no entanto, ao menos em se tratando de consequências, parece ter ocorrido entre Roma e Cartago, esta última, um poderoso império comercial sediado no norte da África. Não havia lugar para dois impérios tão próximos. Roma venceu e eliminou Cartago da concorrência.


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Canoas usadas por meninos indígenas

Brinquedos indígenas: canoas pequeninas (¹)

As canoas dos indígenas do Brasil, feitas de um só tronco, foram célebres. Havendo nas florestas árvores enormes, havia, também, canoas para vinte remadores, e até mais. E, como crianças indígenas aprendiam o modo de vida dos adultos pela imitação daquilo que viam os pais fazendo, preparavam-se canoas pequenas, próprias para que os meninos fossem ganhando prática na arte de remar com grande velocidade. 
Surge, então, a pergunta: como eram feitas essas canoas que os meninos usavam?
Um episódio relatado por Simão de Vasconcelos, envolvendo um jesuíta que viveu no Rio de Janeiro no Século XVII, deixa entrever a resposta. Chamaram o padre João de Almeida para ir ministrar a confissão a um escravo cristão que corria risco de morte. O lugar em que estava, porém, exigia deslocamento por mar. Indo à praia, o padre e seu companheiro não encontraram canoas disponíveis, porque, no dizer de Simão de Vasconcelos, eram "partidos os índios todos, senhores delas, para suas pescas e roças" (²). É nesse ponto que o relato ganha interesse para nós, porque o padre só encontra na praia uma canoa pequena, que é assim descrita: "Chega à praia, vê à borda do mar uma canoazinha de meninos, que os pais lhes fazem para os acostumar ao mar, e são ordinariamente capazes de dois ou três rapazes" (³).
Já têm, portanto, leitores, uma ideia de como eram essas embarcações de brinquedo. Mas, para que não fiquem aflitos quanto ao que pode ter acontecido ao padre que se aventurou a embarcar em tão exígua canoa, indo ele, seu companheiro e um índio que deveria remar, vai aqui o que mais disse Simão de Vasconcelos, também jesuíta, assim como o padre João de Almeida: "Porém eram poucos passos andados, quando logo a pobre canoinha, em pedaço de trave cavada, se encheu d'água, não acostumada a peso tão grande" (⁴). Para não desistir da pequena viagem que necessitava fazer, João de Almeida mandou que o índio saltasse na água e fosse, a nado, conduzindo a canoa, até chegar à aldeia de São Francisco Xavier, distante quatorze léguas do Rio de Janeiro. 
Supondo que as coisas tenham se passado do modo como contou Simão de Vasconcelos, devemos reconhecer que esse índio, que teria conduzido a pequena canoa infantil com os dois padres, era um nadador absurdamente atlético... Ficamos, é claro, com a descrição da canoinha, que nos ajuda a visualizar, ainda que de modo tênue, como viviam os ameríndios, nesses tempos já distantes, em que a colonização, avançando, punha fim a um modo de vida que imperara por muito tempo em terras da América.

(1) Os brinquedos indígenas vistos nesta foto pertencem ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). São, evidentemente, bem menores que a canoa descrita nesta postagem.
(2) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 315.
(3) Ibid.
(4) Ibid., p. 316.


quinta-feira, 17 de setembro de 2020

As primeiras laranjeiras da Nova Espanha

Gabolice ou realidade? Não sabemos ao certo, mas Bernal Díaz del Castillo, aventureiro espanhol que fez parte do bando de Hernán Cortés na chamada "conquista do México", alardeou ter sido o primeiro europeu a plantar sementes de laranja na região. Vamos ao relato feito por ele:
"Também quero dizer como semeei algumas sementes de laranja junto a outras casas de ídolos (¹), e foi desta maneira: como havia muitos mosquitos [...], fui dormir em uma casa alta de ídolos (²), e ali junto àquela casa semeei sete ou oito sementes de laranja que havia trazido de Cuba, e nasceram muito bem, porque parece que os sacerdotes daqueles ídolos cuidaram para que não fossem comidas pelas formigas, e regaram e cuidaram desde que viram que eram plantas diferentes das suas. [...]." (³)
Como podemos ter certeza de que essas foram, de fato, as primeiras laranjeiras que cresceram ali? Resposta: Não podemos ter certeza. Certo é, porém, que, como muitas vezes acontece, Bernal Díaz reivindicou para si a façanha, e a ele cabe a honra do feito. Contudo, não se pode deixar de fazer algumas objeções. Como estaria ele em tão bom relacionamento com os sacerdotes locais, a ponto de cuidarem das laranjeiras bebês?  Como lhe passara pela cabeça trazer desde Cuba as sementes de laranja? Tencionaria ficar em definitivo no lugar? Que prova teria, ao escrever, de que suas pequenas mudas de laranja haviam, afinal, crescido o suficiente para se tornarem laranjeiras produtivas, mesmo que apenas de laranjas azedas?
Cheio de orgulho pelo feito, Bernal Díaz del Castillo concluiu assim o assunto:  "Trouxe isto à memória para que se saiba que estas foram as primeiras laranjeiras plantadas na Nova Espanha [...]" (⁴). Admitindo como verdadeira essa possibilidade, as implicações, leitores, são enormes.

(1) Era assim que ele se referia aos locais de culto dos povos nativos.
(2) Provavelmente uma pirâmide de degraus.
(3) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos dessa obra citados aqui foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Ibid.


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Arariboia

Arariboia (¹) era cacique temiminó. Colonizadores portugueses gostavam muito dele, em razão de ser seu aliado. É fácil notar que os índios que se opunham à colonização eram considerados maus.
À frente dos guerreiros de sua tribo, Arariboia juntou-se às forças do governador-geral Mem de Sá para a guerra de expulsão dos franceses que haviam gostado tanto da baía de Guanabara que não queriam deixá-la em mãos de portugueses. A atuação dos indígenas, de um e de outro lado, foi importante no confronto. Afinal, vitoriosos os portugueses, foram enviadas notícias ao Reino. Em resultado, o jovem rei D. Sebastião mandou presentes ao chefe temiminó que tanto se destacara. "[...] El-rei D. Sebastião louvou o esforço do índio, mandou-lhe peças de estima, e entre elas um hábito de Cristo com tença, e um vestido de seu próprio corpo" (²), escreveu Simão de Vasconcelos, autor seiscentista. Sabe-se também que a Arariboia e sua gente foi concedido um lugar, a título de sesmaria, não muito longe do Rio de Janeiro. Era vantajoso ter um aliado desses por perto, com armas na mão para defesa dos colonizadores, sempre que fosse preciso. Seria impertinência perguntar que sentido faziam esses presentes, para quem fora, até pouco antes, senhor inconteste na terra em que nascera?
O episódio mais famoso associado a Arariboia tem que ver com a chegada do governador Antônio de Salema ao Rio de Janeiro em 1575, para assumir o mando nas "capitanias do sul". Foi recebido tanto por portugueses como por chefes indígenas, entre os quais o já idoso temiminó, a quem se dera o nome de Martim Afonso de Sousa (³) por ocasião do batismo. Conta frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (⁴), que, vindo Arariboia à presença do mandatário recém-chegado, foi-lhe concedida uma cadeira em que se sentasse. Isso era uma grande honra, segundo o costume da época, porque gente comum, se chegava a estar diante do governador, devia permanecer em pé, com o chapéu na mão e falando apenas quando permitido. O temiminó, porém, tinha outras ideias, e parece não ter dado grande importância às cerimônias dos colonizadores:
"[...] como o governador desse cadeira, e ele em se assentando cavalgasse uma perna sobre a outra segundo o seu costume, mandou-lhe dizer o governador pelo intérprete que ali tinha, que não era aquela boa cortesia quando falava com um governador, que representava a pessoa de el-rei.
Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendo-lhe: "Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhes agora este pequeno descanso, mas já que me achas pouco cortesão eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos, e não tornarei mais à tua corte". Porém nunca deixou de se achar com os seus em todas as ocasiões, que o ocupou."
Grande Arariboia! Não podemos ter certeza de que as coisas foram exatamente assim - temos o relato de frei Vicente do Salvador, mas os índios, como se sabe, nada deixaram escrito. É de se lamentar, e muito. Tendo em conta, porém, o quanto os atritos entre nativos e colonizadores eram frequentes, não é absurda a suposição de que, ao menos na essência, esse incidente pode ser autêntico, porque não se esperaria que, décadas mais tarde, alguém se lembrasse dele, não fora pela forte impressão que causara.

(1) Há outras grafias, como Ararigboia, por exemplo.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 73.
(3) O mesmo nome do navegador português que percorrera, com sua expedição, o litoral brasileiro, várias décadas antes. Não confundir com outro indígena catequizado que aderira aos portugueses, o cacique Tibiriçá, que, no batismo, também foi chamado Martim Afonso, e que viveu em São Paulo no Século XVI.
(4) O manuscrito é de c. 1627.


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Quem era a loba que alimentou Rômulo e Remo

Uma das razões, ainda que não a única, que faz com que a fundação de Roma por Rômulo e Remo seja considerada uma lenda, é a afirmação de que os gêmeos, abandonados junto ao Tibre, teriam sido amamentados por uma loba. Quem é que acreditaria numa coisa dessas?
Contudo, leitores, se admitirmos um pequeno ajuste, talvez essa história não seja de todo inverossímil. O melhor é que podemos fazer isso, não por mero exercício de imaginação, mas com base em informações que vêm da Antiguidade. Portanto, vamos ao caso.
Aneu Floro, historiador que viveu nos dias do Império Romano, repetiu sem novidade a fábula de Rômulo e Remo, dizendo que "[...] uma loba, fugindo a seu instinto lupino, ao ouvir o choro dos meninos, amamentou-os, como se fosse mãe deles" (¹). Já Tito Lívio (²), em Ab urbe condita libri, contou que era voz corrente em Roma que "o cesto em que os meninos estavam, por estar baixa a corrente, ficou retido em terra seca, e uma loba, vindo dos montes que há ao redor, ouviu o choro deles" (³). Com ternura, cuidou dos gêmeos, atraindo a atenção de Fáustulo, um pastor que os levou para casa e deles se encarregou até que crescessem.
Para Plutarco (⁴), porém, havia outra interpretação possível, humana e perfeitamente lógica, mas nada zoológica. "Talvez [...] o duplo significado da palavra [loba]", disse ele, "seja a explicação para esta fábula, porque os latinos dizem lobas para os animais, mas chamam também lobas às prostitutas" (⁵). Com o passar do tempo, "loba", como eufemismo, caíra talvez em desuso, e a história de Rômulo e Remo teria ganho contornos de lenda, na suposição de que uma autêntica Canis lupus alimentara os meninos. Ainda que não explique outras incongruências da fábula, a versão sugerida por Plutarco parece interessante.

(1) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) 59 a.C. - 17 d.C.
(3) LÍVIO, Tito. Ab urbe condita libri. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Nascido em Queroneia em c. 45 d.C.
(5) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Escravos eram mãos e pés de seus senhores

Em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, cuja publicação data de 1711, Antonil (¹) tornou célebre a ideia de que os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho" (²). Um pequeno incidente revela, porém, que a expressão não foi cunhada por Antonil e, provavelmente, já corria no vocabulário popular muito antes disso. 
Rio de Janeiro, Século XVII. O padre jesuíta João de Almeida vai visitar uma senhora que está doente. De acordo com o relato do também jesuíta Simão de Vasconcelos, nessa ocasião a irmã da enferma faz ao religioso dois pedidos: "[...] indo o padre João de Almeida à casa de uma pobre viúva, cuja irmã, que estava enferma, ia o padre visitar, e que despedindo-se o dito padre da enferma, lhe pedira a viúva se lembrasse de encomendar a Deus a doente, e juntamente lhe fizesse petição, lhe trouxesse uma negra que andava fugida, que era os pés e mãos daquela casa; cuja falta lhe fazia padecer tantas necessidades, que nem água havia em casa, por não haver quem a fosse buscar. [...]" (³).
É evidente, portanto, que pessoas de condição livre que viviam no Brasil Colonial não tinham o menor constrangimento em assumir que seu modo de vida resultava em dependência dos escravos, não apenas para assegurar o funcionamento de grandes propriedades agrícolas, tais como os engenhos, mas até para as tarefas domésticas de rotina. 
Voltando, porém, ao caso da escrava que havia fugido, vejam, leitores, qual foi a resposta do padre: "[...] Compassivo, o padre João de Almeida do desamparo da pobre viúva, disse: Ela virá, e em vindo, tirem-lhe logo os ferros" (⁴). Escravos capturados usavam, por certo tempo, colares de ferro e outros instrumentos que assinalavam sua condição de "fujões", como então se dizia, diante da sociedade escravocrata. E, se alguém está curioso para saber o desfecho desse caso intrigante, vai aqui a conclusão, conforme narrada por Simão de Vasconcelos: "[...] tornando depois [...] o padre João de Almeida à casa da mesma viúva, se lançou a pobre aos pés do venerável padre, dando-lhe as graças pela satisfação da sua promessa, dizendo que no mesmo dia trouxera um soldado presa a negra, a qual logo lhe tirara os ferros conforme sua paternidade lhe tinha mandado." (⁵)
Deixo de lado a suposta profecia do padre João de Almeida, que disto não nos ocupamos neste blog, para assinalar, apenas, que uma coisa fica clara: se o padre, por um lado, mostrava preocupações humanitárias, ao recomendar que à escrava não se impusessem os abjetos sinais que estavam em uso para fugitivos, por outro não fazia a menor censura à escravidão, como um mal que permeava a sociedade. Sua atitude, pelo contrário, validava, sem questionamentos, a existência de mão de obra cativa.

Neste esboço aquarelado de Thomas Ender, feito no Século XIX, um grupo de escravos
 (à direita) é visto em aglomeração junto a um chafariz. Garantir o abastecimento de água
para as residências era uma tarefa comum atribuída aos cativos. (⁶)

(1) Pseudônimo adotado pelo jesuíta Giovanni Antonio Andreoni.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio) S. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 22.
(3) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 266.
(4) Ibid.
(5) Ibid.
(6) Esboço aquarelado de Thomas Ender (1793 - 1875). O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A revolta de um escravo nomenclator

No exercício do poder, César Augusto enfrentou várias revoltas e tentativas de assassinato. Episódios dessa natureza não eram novidade em Roma. Uma das rebeliões, conforme referiu Suetônio no Livro II de De vita Caesarum, partiu de Télefo, um escravo nomenclator, que, supondo estar predestinado ao poder absoluto, tencionou o assassinato do imperador e a supressão do Senado. 
Mas que coisa, afinal, fazia um nomenclator? O costume de ter alguém que lembrasse ou apontasse o nome de pessoas começou, provavelmente, entre políticos, mas passou, depois, a toda a alta sociedade romana. Nomenclator, portanto, era o escravo que devia lembrar ao respectivo senhor o nome das pessoas que encontrava ou que recebia em casa, para festas e banquetes. Era isso que fazia o nomenclator Télefo, que, de acordo com Suetônio, era escravo de uma mulher. Abomino a escravidão, mas não discuto a utilidade de um nomenclator.
Mais uma pergunta: Como é que um cativo, desempenhando tão esdrúxula função, podia entalar na cabeça que estava predestinado ao poder absoluto? Deixando de lado a possibilidade de que algo não andasse bem com o cérebro desse indivíduo, devo fazer notar a meus leitores que, na mitologia grega, Télefo era um dos descendentes de Hércules. Como ter certeza de que tão ilustre homônimo não inspirasse delírios de grandeza ao escravo?
Há algo mais a considerar. Ao desempenhar suas tarefas diárias, um nomenclator estabelecia contato com personagens das altas rodas sociais e políticas. Indiretamente, acabava tendo certo poder, porque, se devia recordar a seu senhor ou senhora o nome de determinadas figuras, havia, também, muita gente que queria ser lembrada. Permanecendo longo tempo ao lado do proprietário, esse escravo ouvia conversas, percebia as sutilezas das relações sociais e do jogo político. Télefo, o nomenclator que tramou a morte de Augusto, ousou sair das pequenas indiscrições da vida quotidiana para ambicionar o impossível.


terça-feira, 1 de setembro de 2020

Bandeirantes na floresta densa

Floresta amazônica

A bandeira, que contava em léguas o percurso de cada dia, agora avança aos passos, abrindo passagem a golpes de facão, desde que a vastidão do cerrado ficou para trás. Prosseguir pela mata densa, em que o emaranhado de cipós e plantas trepadeiras, tão característico das florestas da América do Sul, dificulta a caminhada, vai esgotando as forças, ao mesmo tempo em que lança um desafio aos brios dos sertanistas. O cansaço é evidente nos olhares angustiados, na pele curtida pelo sol e pelas picadas constantes de mosquitos, na sede e na fome que atormentam. 
Não obstante, ninguém fala em retroceder. Como voltar de mãos vazias? Que estranho é o senso de honra dessa gente!...
Um trovão faz tremer a terra e até as árvores. Uma pausa, outro trovão, e outro. A chuva que começa a cair seria bem-vinda para aliviar o calor, não fora a falta de um lugar para abrigo. Os raios aterrorizam os valentes que, colados ao chão, rezam para que a tempestade não acrescente vítimas à já dizimada bandeira que sofre com as doenças e com a falta de meios adequados para tratar ferimentos de toda ordem. Os homens têm as roupas em trapos, só os calções de couro ainda teimam, mal e mal, em resistir. 
Afinal, a chuvarada cessa, e, antes que anoiteça, os que vão à frente tentam abrir uma clareira onde possam armar as redes e passar a noite. Tudo está encharcado, não há como fazer fogo e preparar alguma comida. Com tão pouco para contentar o estômago, quase todos, em pensamento, recordam que longe, em casa, a essas horas, a panela de sopa, encarapitada no fogão a lenha, avisa, com o aroma, que é tempo de jantar. Com sorte, talvez voltem, algum dia, a estar em família.