terça-feira, 8 de setembro de 2020

Escravos eram mãos e pés de seus senhores

Em Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, cuja publicação data de 1711, Antonil (¹) tornou célebre a ideia de que os escravos eram "as mãos e os pés do senhor de engenho" (²). Um pequeno incidente revela, porém, que a expressão não foi cunhada por Antonil e, provavelmente, já corria no vocabulário popular muito antes disso. 
Rio de Janeiro, Século XVII. O padre jesuíta João de Almeida vai visitar uma senhora que está doente. De acordo com o relato do também jesuíta Simão de Vasconcelos, nessa ocasião a irmã da enferma faz ao religioso dois pedidos: "[...] indo o padre João de Almeida à casa de uma pobre viúva, cuja irmã, que estava enferma, ia o padre visitar, e que despedindo-se o dito padre da enferma, lhe pedira a viúva se lembrasse de encomendar a Deus a doente, e juntamente lhe fizesse petição, lhe trouxesse uma negra que andava fugida, que era os pés e mãos daquela casa; cuja falta lhe fazia padecer tantas necessidades, que nem água havia em casa, por não haver quem a fosse buscar. [...]" (³).
É evidente, portanto, que pessoas de condição livre que viviam no Brasil Colonial não tinham o menor constrangimento em assumir que seu modo de vida resultava em dependência dos escravos, não apenas para assegurar o funcionamento de grandes propriedades agrícolas, tais como os engenhos, mas até para as tarefas domésticas de rotina. 
Voltando, porém, ao caso da escrava que havia fugido, vejam, leitores, qual foi a resposta do padre: "[...] Compassivo, o padre João de Almeida do desamparo da pobre viúva, disse: Ela virá, e em vindo, tirem-lhe logo os ferros" (⁴). Escravos capturados usavam, por certo tempo, colares de ferro e outros instrumentos que assinalavam sua condição de "fujões", como então se dizia, diante da sociedade escravocrata. E, se alguém está curioso para saber o desfecho desse caso intrigante, vai aqui a conclusão, conforme narrada por Simão de Vasconcelos: "[...] tornando depois [...] o padre João de Almeida à casa da mesma viúva, se lançou a pobre aos pés do venerável padre, dando-lhe as graças pela satisfação da sua promessa, dizendo que no mesmo dia trouxera um soldado presa a negra, a qual logo lhe tirara os ferros conforme sua paternidade lhe tinha mandado." (⁵)
Deixo de lado a suposta profecia do padre João de Almeida, que disto não nos ocupamos neste blog, para assinalar, apenas, que uma coisa fica clara: se o padre, por um lado, mostrava preocupações humanitárias, ao recomendar que à escrava não se impusessem os abjetos sinais que estavam em uso para fugitivos, por outro não fazia a menor censura à escravidão, como um mal que permeava a sociedade. Sua atitude, pelo contrário, validava, sem questionamentos, a existência de mão de obra cativa.

Neste esboço aquarelado de Thomas Ender, feito no Século XIX, um grupo de escravos
 (à direita) é visto em aglomeração junto a um chafariz. Garantir o abastecimento de água
para as residências era uma tarefa comum atribuída aos cativos. (⁶)

(1) Pseudônimo adotado pelo jesuíta Giovanni Antonio Andreoni.
(2) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio) S. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 22.
(3) VASCONCELOS, Simão de S. J. Vida do Padre João de Almeida. Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1658, p. 266.
(4) Ibid.
(5) Ibid.
(6) Esboço aquarelado de Thomas Ender (1793 - 1875). O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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