terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Emas e avestruzes

"Pelo tamanho, fazem-se notáveis os agigantados tuiuiús, os arteiros jaburus [...] e as corredoras emas, que são as avestruzes deste Continente."
                                                                               F. A. Varnhagen, História Geral do Brasil (¹)

Avestruz
Há poucos dias postei neste blog um comentário sobre algumas ideias absurdas (a ponto de serem engraçadas), que podem ser encontradas na mais que famosa carta do descobrimento do Brasil escrita por Pero Vaz de Caminha. Ora, meus leitores, ao longo dos séculos outros autores continuaram a cometer equívocos sobre animais e plantas da América do Sul. Um deles relaciona-se às emas que, por sua semelhança com avestruzes, chegaram a ser classificadas como tais. Que se veja, por exemplo, esta deliciosa comparação, tão dentro do espírito de sua época, anotada por Frei Vicente do Salvador no século XVII:
"... e emas tão grandes como as de África, umas brancas e outras malhadas de negro que, sem voarem do chão, com uma asa levantada ao alto, ao modo de vela latina, correm com o vento como caravelas..." (²)
Mais tarde, já no século XIX, a dificuldade em distinguir emas de avestruzes ainda persistia, até mesmo para um naturalista como Saint-Hilaire, de cujo diário de viagem ao Rio Grande do Sul e Uruguai, nos meses que antecederam a independência do Brasil, temos o seguinte trecho:
"Devorado pelas pulgas e mal acomodado, quando me deitava na carroça, preferi dormir sob a minha cama, sentindo-me muito bem com a troca. Região irregular com excelentes pastagens; não há feras, mas uma prodigiosa quantidade de jumentos selvagens, veados e avestruzes. No meio deste deserto constitui divertimento presenciar esses animais correrem nos campos. Os veados andam sempre em bandos. Como jamais são caçados, deixam-se ficar bem perto de nós, e os avestruzes igualmente não se mostram selvagens." (³)
Ema
A dificuldade com essas aves gigantes iria, porém, logo desaparecer. Ainda na década de 20 do século XIX Hércules Florence, desenhista a serviço da Expedição Langsdorff, não hesitou em asseverar que as corredoras que via no interior do Brasil eram emas:
"Uma ema passou por nós seguida de três filhotes com a velocidade quase da flecha." (⁴)
Entretanto, se alguma dúvida fica para algum de meus leitores, eventualmente menos familiarizado com a fauna do Brasil, estão nesta postagem fotografias tanto de uma ema quanto de um/uma avestruz (segundo os dicionários, as duas possibilidades são aceitáveis), tornando viável uma comparação.

(1) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 11.
(2) História do Brasil. c. 1627.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 280.
(4) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 188.


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domingo, 26 de fevereiro de 2012

Os capitães de mato e suas atribuições

João Fogaça, personagem de José de Alencar em As Minas de Prata, era capitão de mato. Valente, habituado à vida mateira nos arredores de Salvador nas primeiras décadas do século XVII, comandava uma tropa constituída por índios que, aliando um alto grau de desenvolvimento dos sentidos a uma severa disciplina, faziam-se temidos, em tempos nos quais a ação do Estado era, muitas vezes, distante ou inexistente. Mas deixemos que o próprio Alencar explique:
Capitão de mato conduzindo um escravo
fugitivo, segundo Rugendas (³)
"Naquela época em que a floresta confrontava com a cidade e quase lhe invadia os quintais, oferecendo ao crime como ao vício couto seguro e asilo contra a vindita da lei, o capitão de mato foi ofício de importância. Era quem melhor policiava o estado, e ia aos desertos sertões trazer o réu à justiça, o escravo ao senhor, e perseguir as hordas selvagens quando infestavam a vizinhança dos povoados." (¹)
Entende-se, portanto, a má fama que os séculos depuseram sobre os capitães de mato, funcionários públicos encarregados do trabalho sujo de capturar escravos e combater índios, coisas hoje condenadas (com muita justiça), mas que eram, na lógica dos colonizadores, perfeitamente razoáveis. É bom lembrar, no entanto, que essas não eram suas únicas atribuições. Que se veja, por exemplo, essa outra referência, desta vez proveniente de Varnhagen, quanto ao estabelecimento de medidas policiais em Pernambuco no ano de 1710:
"O Capitão-General de Pernambuco em 1710 deu aos capitães-mores do seu distrito umas instruções ou regimento em que, além das atribuições respectivas à economia e disciplina dos corpos de ordenanças, prescreveu algumas policiais acerca da prisão dos desertores, malfeitores e vadios, para o que se instituíram depois os capitães de mato." (²) 

(1) ALENCAR, J. de.  As Minas de Prata.
(2) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 847.
(3) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ideias curiosas e absurdas na Carta de Pero Vaz de Caminha

A carta escrita ao rei de Portugal, D. Manuel, por Pero Vaz de Caminha é, ao que se sabe, o mais antigo documento existente com um relato dos primeiros contatos entre navegadores portugueses e indígenas brasileiros. Esse interessantíssimo texto, que nenhum estudante brasileiro deveria deixar de ler na íntegra ao menos uma vez, traz, como é óbvio, o ponto de vista dos recém-chegados europeus, mostrando o misto de medo e curiosidade que esse primeiro encontro provocou de parte a parte.
Hoje, entretanto, quando o lemos, é fácil perceber o quanto Caminha estava equivocado em algumas de suas anotações, o que era fruto não apenas de ideias pré-concebidas como também de conclusões tiradas com pouquíssima informação, que não possibilitavam compreender coisas tais como a verdadeira extensão do território ao qual chegavam e a enorme diversidade cultural dos povos indígenas do Brasil. Os breves excertos seguintes, como veremos, oferecem um ótimo panorama disso.  
1. Caminha supõe que os indígenas não têm casas para morar:
"E isto me faz presumir que não têm casas e nem moradias em que se recolham, e o ar em que se criam os faz tais. Nós, pelo menos, não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas."
Mais tarde, ainda na famosa Carta, Caminha trataria de corrigir essa informação, já que alguns dos portugueses, indo terra adentro, chegaram a uma aldeia, dela descrevendo as habitações existentes.
2. Pensa que os nativos não têm nenhum sistema de crenças (coisa que qualquer escolar sabe não ser de modo algum verdade):
"Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências."
3. Diz que os índios desconhecem tanto a agricultura quanto a domesticação de animais para a criação:
"Eles não lavram nem criam."
Mesmo sendo verdade que muitos grupos indígenas eram predominantemente nômades ou seminômades, havia, como visitantes posteriores constataram, um claro conhecimento do cultivo de vegetais para alimentação, dentre os quais destacava-se a mandioca (¹). Além disso, não era incomum a domesticação de animais como araras e papagaios (²).
4. Os portugueses, ao menos pelo que se depreende da Carta, parecem crer estarem em uma ilha, sobre cujas dimensões Caminha arrisca um palpite:
"Esta terra, senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa." (³)
Muito, muito pouco, senhor Caminha, para quem acabava de chegar ao Brasil!
5. Caminha opina sobre o clima das novas terras:
"Porém a terra, em si, é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Doiro-e-Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá."
Para quem lê esta postagem, já fez uma cara de estranhamento, e deve andar pensando que o homem devia estar com febre, há que se ponderar uma questão importante: pelo início do século XIX (!!!) vários autores asseguravam que, em decorrência da supressão das matas nativas, o clima do Brasil estava passando por significativas mudanças, tornando-se mais quente. E, embora os limites desta postagem não permitam detalhar o assunto, ao menos por hora, há muitos relatos dos primeiros séculos da colonização que parecem secundar as informações relacionadas a um clima menos tépido em terras brasileiras. Portanto, é possível que Caminha não estivesse tão errado assim, sendo, entretanto, necessário ressalvar que, devido à enorme extensão territorial, o Brasil tem, por consequência, uma certa variedade climática.
A favor de Pero Vaz de Caminha há que se dizer, ainda, que tinha a idoneidade de quase sempre ressalvar que essas eram informações segundo parecia naquele momento, embora parte do que há em sua exposição possa hoje entrar no acervo dos grandes absurdos.
Ao datar a Carta, em sua conclusão, anotou:
"Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500." Ou seja, tendo iniciado com um breve relato da travessia do Atlântico, passando pelo  avistamento de terra até o momento em que se retomou o rumo da África, Caminha foi escrevendo, escrevendo... e deixando, para o futuro, um primeiro retrato da "Ilha de Vera Cruz", ainda muito parcial e impreciso, mas de uma enorme valor como documento histórico. Nosso missivista um tanto tagarela não tornaria a ver o Brasil, nem mesmo retornaria a Portugal - é contado entre os que morreram durante a expedição comandada por Cabral que, depois das terras na América, seguiu para as "Índias", como se dizia na época.
(3) Nas antigas unidades portuguesas de medida a légua variava entre cerca de 5,6 km e pouco mais de 6,1 km.


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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Como se fazia sorvete quando não havia rede elétrica

Se há uma especialidade culinária que, pelas regras atuais, demanda uso constante de energia elétrica para refrigeração, essa é, sem dúvida, o sorvete. No entanto, sob diversas formas e receitas, sorvetes já eram feitos muito tempo antes que houvesse rede elétrica em qualquer lugar do planeta. Quer ver?
O famoso chef do século XVIII, Lucas Rigaud, na sua não menos famosa obra Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha (¹), escreveu:
"Torta de Creme Gelado com Pistachas, ou Qualquer Fruta:
Tomem meia libra (²) de pistachas, escaldem-se, tirem-se-lhes a pele, e pisem-se em um gral de pedra molhando-as de quando em quando com uma gota de leite; estando bem pisadas, desfaçam-se em três quartilhos de leite já fervido, meio arrátel de açúcar, um bocado de canela em pau, e casca de limão; e estando algum tanto quente, passe-se tudo por um peneiro com dez, ou doze gemas de ovos, e torne-se a pôr no lume mexendo-se sempre com uma colher; estando ligado, e antes que ferva, deixe-se esfriar; meta-se depois em uma sorveteira com neve de redor, e mexa-se, estando gelado, como é costume, sirva-se sobre fundos de massa de amêndoas, massa de crocante, ou massa de açúcar, farinha e ovos.
Para Tortas de Fruta Gelada:
Estando o leite temperado de sal, açúcar, canela e casca de limão, e gemas de ovos batidas, ligue-se no lume, e depois de ligado, passe-se pelo peneiro com qualquer fruta cozida, primeiro em açúcar, gele-se como a de cima, e sirva-se da mesma forma." (³)
O mesmo autor dá também detalhes de como era a "sorveteira" que se usava  e que, ainda que remotamente, lembra um pouco as modernas sorveteiras domésticas, no princípio que permite seu funcionamento:
"Águas de Verão, e para Sorvetes:
Em cada três quartilhos de água deitem um arrátel de fruta, que seja bem madura, como são ginjas, morangos, amoras, groselhas, ou outra qualquer; amasse-se com uma colher, e desfaça-se muito bem na água; coe-se depois por um guardanapo, e tempere-se de açúcar; coe-se outra vez por uma manga, ponha-se ao fresco, e sirvam-se dessa água quando for ocasião.
Se for para sorvetes, deite-se-lhe mais açúcar, meta-se em sorveteiras de folhas de Flandres, rodeie-se de neve e sal, em principiando a gelar-se, despeguem o que estiver pegando de roda com uma colher, cubra-se a sorveteira com a sua tampa, e mexendo-se sempre com ela, até estar igualmente gelada, encham copos com ela no momento em que se quiser beber, e sirvam-se sem detença." (⁴)
E no Brasil? Bem, a neve ocorre sempre em pequena quantidade, e em poucos lugares. Entretanto, temos uma curiosa observação de Saint-Hilaire, feita ao tempo de suas andanças pelo Rio Grande do Sul, em ocasião na qual acompanhava o representante português que, na época, governava a região, o Conde de Figueira:
"Porto Alegre, 4 de julho - Durante vários dias o tempo se manteve muito frio; hoje está sombrio, como na França, antes de nevar, tendo chovido uma boa parte do dia. Cai geada quase todas as noites, e o conde tem podido recolher bastante gelo para fazer sorvetes." (⁵)
Muito interessante, não? Nota-se, portanto, que sorvete era sobremesa antes de inverno que de verão, pelas condições em que se podia produzir, ao contrário do que ocorre hoje. Afinal, dependia-se de neve ou gelo, proporcionados pela natureza apenas nos meses frios, embora haja relatos de que, na Antiguidade, a nobreza romana era capaz de ordenar a seus escravos que corressem às altas montanhas para, de lá, trazerem o gelo que queriam para seus sorvetes...

(1) A primeira edição data de 1780.
(2) Para medidas antigas de uso culinário, veja a postagem:
(3) RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha  5ª Ed. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1826, pp. 196 e 197.
(4) Ibid., pp. 427 e 428.
(5) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 58.


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domingo, 19 de fevereiro de 2012

Como se passava roupa quando não havia rede elétrica

"Eu não digo que vocês não se mereçam; não a conheço. Mas, Ricardo, você não pode tomar estado. Ela é filha de doutor, não há de querer lavar nem engomar."
                                                                                    Machado de Assis, Vênus! Divina Vênus!

Passar roupa, antes dos ferros elétricos, era trabalho muito cansativo e, pelos atuais padrões de ergonomia, uma verdadeira tragédia. O ferro, de formato que lembra um pouco os atuais, era oco, de modo que, dentro dele, eram colocadas brasas, que o mantinham aquecido para que as roupas adquirissem, depois de lavadas, um aspecto satisfatório. As brasas eram, em geral, provenientes de um fogão a lenha - em outros tempos, quase toda cozinha tinha um.

Antigo ferro para passar roupa, que devia ser aquecido com brasas (¹)

Anúncio de aluguel de escrava, no qual se diz que
ela é capaz de "engomar e lavar
com perfeição" (²)
Todo o processo ficava mais difícil, é bom lembrar, porque antigamente os tecidos, sendo feitos de fibras naturais (de origem animal, como a lã, ou vegetal, como o algodão e o linho), não eram propícios a uma tarefa rápida, havendo muitas vezes a necessidade de que fossem engomados. Acrescente-se a isso que, sendo o ferro aquecido por brasas, não havia quase possibilidade de controlar sua temperatura, o que contribuía para tornar ainda mais penoso o seu uso. A pessoa que usava o ferro ("de brasa" ou "a brasas", conforme o lugar) devia necessariamente trabalhar em pé por um longo período, coisa que certamente não contribuía para promover a saúde. Finalmente, note-se que, para realizar tal trabalho, até fins do século XIX quase todo mundo se servia de uma escrava, de modo que só os mais pobres não se proviam de uma para trabalhos domésticos.
Os ferros aquecidos por brasas continuaram em uso por muito tempo, até que as redes elétricas, atingindo a maior parte das localidades, possibilitaram o emprego de ferros mais modernos e eficientes, que começaram a ser popularizados no Brasil nas primeiras décadas do século XX.

Anúncio de venda de ferros elétricos (³)

(1) Pertence à decoração do excelente hotel Porto di Mare, em Ubatuba - SP, a cuja direção agradeço a permissão para esta foto.
(2) AURORA PAULISTANA, 11 de dezembro de 1852.
(3) A CIGARRA, 31 de março de 1916.


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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Como se fazia pão quando não havia rede elétrica

"Estácio aceitou sem dificuldade o convite; sentou-se defronte do homem, ao pé da mesa, e assistiu ao almoço, que não podia ser mais escasso: um pão, duas hóstias de queijo duro e uma chávena de café."
                                                                                                                       Machado de Assis, Helena

Talvez o mais universal dos alimentos, o pão pode ser feito por uma grande variedade de procedimentos, com os mais diversos ingredientes, refletindo o desenvolvimento técnico, a produção agrícola e os costumes, por tradição passados de uma geração a outra, de uma dada localidade. Assim, meus leitores estão convidados a fazer pão pelas regras vigentes em boa parte do Brasil até tempos relativamente recentes. Apenas por uma questão de escolha, seguiremos os hábitos da segunda metade do século XIX.
Nada de máquinas que fazem quase tudo sozinhas! Nem mesmo comprar tudo pronto em uma panificadora ou confeitaria, já que essas só existiam nas localidades maiores e, como o Brasil do século XIX era predominantemente rural e não urbano, não podemos servir-nos delas.

Cilindro manual para sovar massa de pão, fins do Século XIX (*)
Escolhida a receita (que sempre se sabia de memória, passada de uma geração a outra), os ingredientes deviam ser misturados, lembrando que a técnica, com alto grau de certeza, envolvia fermentação natural, muito lenta, ainda que de resultado bastante saboroso. Deixada a descansar, a massa, depois de completamente levedada, devia ser sovada. Aí é que entrava em cena um cilindro manual, que facilitava um pouco todo o processo, mas devia ser movido "no braço". Cabe também observar que, nesses tempos, a quantidade de massa devia ser grande, já que as famílias eram muito mais numerosas do que atualmente, e o pão precisava ser suficiente para alimentar a todos, durando por dois ou três dias.
Então, leitores, já estão cansados só de pensar? Continuemos.
Sovada a massa, devia ser posta a descansar e, quando se julgava suficiente, era sovada mais uma vez no cilindro manual; dividida em pedaços, era modelada no formato tradicional de pães e/ou colocada em formas, crescendo mais um pouco, até estar em condições de ir ao forno - forno de barro, forno a lenha.
Assados, os pães eram retirados do forno e, maravilha das maravilhas, podiam ser cortados, ainda quentinhos, recebendo frequentemente cada fatia uma generosa quantidade de manteiga da fazenda, para consumo com café, chá, leite, o que se quisesse. Era muito trabalho, sim, mas deste modo é que foram alimentadas incontáveis gerações antes de nós.

(*) Pertence ao acervo do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira, SP.


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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A iluminação pública e residencial quando não havia rede elétrica

"O largo apresentava novo aspecto; as tochas acessas em volta e as luminárias suspensas nas janelas das casas, derramavam sobre as alcatifas cobertas de lantejoulas a claridade das luzes, menos brilhante que a do sol, porém mais suave e fascinante."
                                                                                                   José de Alencar, As Minas de Prata

Candeia usada no Século XIX (³)
Se fôssemos capazes de voltar no tempo, talvez uns duzentos anos, veríamos logo ao anoitecer que tudo ficava realmente escuro. Excetuando-se as pequenas lanternas de mão costumeiramente carregadas quando, corajosamente, alguém andava pelas ruas à noite, poder-se-iam ver poucas luzes, bruxuleando através de frestas de janelas ou gelosias - eram velas em castiçais, pequenas candeias sobre os móveis das casas ou presas às paredes, quem sabe alguma lamparina. Defronte às residências, apenas tochas, colocadas quase sempre somente em dias festivos. O combustível para isso era, naturalmente, economizado, fosse o precioso azeite, quase nunca usado no Brasil (era caro, vinha do Reino), ou o mais comum, óleo de baleia (sim, senhores leitores, era muito usado, e não só no Brasil, o que fez da pesca de baleias, durante muito tempo, um negócio importante no litoral brasileiro, a ponto de ser alvo de monopólio e, segundo Varnhagen, de quase se extinguirem dessas paragens os pobres cetáceos).

Anúncio de lamparina a querosene, publicado em 1905 (⁴)

Anúncio datado de 1915, no qual são oferecidos
vários produtos e instalação
de luz elétrica (⁵)
No Brasil do século XIX algumas cidades receberam a dádiva de uma iluminação pública a gás (¹), que, nas primeiras décadas do século XX, seria gradual e generalizadamente substituída, como todo mundo sabe, por redes elétricas. Fato menos conhecido, no entanto, é o de que as companhias de iluminação a gás forneciam, além da iluminação de rua, também iluminação residencial que, como se pode facilmente imaginar, não era coisa para todos. Dados referentes a 1887 dão conta de que havia, naquele ano, mais de 1300 combustores a gás instalados na cidade de São Paulo para iluminação pública, sendo 1430 as residências servidas por iluminação também a gás. (²)
A introdução das redes de energia elétrica, feita paulatinamente, significou, durante certo tempo, uma convivência entre o gás e a eletricidade como modelos de iluminação, tanto pública quanto residencial, até que um viesse a destronar completamente o outro.

Anúncio de bondes elétricos sem trilhos (⁶)

(1) São Paulo, por exemplo, teve a iluminação pública a gás inaugurada em 1872.
(2) Veja, sobre isso: TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 345.
(3) Pertence ao acervo do Museu da Energia de Itu, SP.
(4) ECHO PHONOGRAPHICO, nº 35, janeiro de 1905.
(5) A CIGARRA, 30 de dezembro de 1915.
(6) A CIGARRA, 6 de março de 1914.


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domingo, 12 de fevereiro de 2012

Por que os povos da Antiguidade faziam tantas guerras

Uma vez alguém me perguntou por que os povos antigos viviam brigando uns com os outros. Ora, não eram apenas os antigos que faziam isso... Mas é verdade que, se hoje as guerras são geralmente vistas como um grande mal, devendo, tanto quanto possível, ser evitadas, já houve épocas em que eram encaradas como uma coisa rotineira, sendo pouco provável que alguém passasse pela vida sem estar, voluntariamente ou não, envolvido em várias delas. Aliás, era enorme a probabilidade de se morrer em combate ou por razões colaterais às guerras. Por que, afinal?
A lista de razões poderia ser bem grande, mas vão aqui algumas delas, mais com o propósito de induzir meus pensantes leitores a algumas reflexões que propriamente com a ideia dar uma palavra final ao assunto. Mas vejamos:
a) As guerras dos antigos tinham, muitas vezes, o objetivo de tomar a outros povos territórios que eram considerados mais favoráveis à agricultura, com melhores recursos hídricos ou que sabidamente contivessem riquezas minerais que pudessem ser exploradas;
b) Também se guerreava para, vencendo o inimigo, obrigá-lo ao pagamento de pesados tributos;
c) Por vezes, precisando de mão de obra extra, a guerra era feita com o intuito de escravizar os derrotados;
d) Quando se sabia que um monarca havia entesourado grandes riquezas, podia-se fazer guerra para saquear suas propriedades;
e) Motivos religiosos eram frequentemente invocados para justificar a guerra, na tentativa de mostrar que a(s) divindade(s) de determinado povo era(m) mais poderosa(s) que a(s) de outro;
f) Os líderes, muitas vezes cultuados como divindades, viam-se na obrigação de mostrar, pelas vitórias alcançadas em combate, que eram seres verdadeiramente superiores (é claro que o tiro podia sair pela culatra, ainda que tiros, na antiguidade, tivessem um significado muito diferente do atual);
f) Além disso, ia-se à guerra por razões estratégicas, julgando-se que tomar a iniciativa no combate era, pelo menos em termos de moral, uma vantagem militar.
Como veem meus leitores, nada muito diferente, no fim das contas, das razões que levam os civilizados povos de hoje a se engalfinharem, na suposição de que alguma vantagem será obtida, comprometendo gerações de jovens, infraestrutura, suprimentos e os muitas vezes escassos orçamentos de que dispõem os Estados. Que coisa inteligente!


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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

É mau escravo? Será mandado para venda no Rio Grande!

O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que andou por terras brasileiras por volta da época da independência, revela-nos um fato curioso em relação a um costume que havia, segundo ele, de que se mandassem para o Rio Grande do Sul os escravos que, no Rio de Janeiro, eram considerados, por qualquer razão, inadequados para o trabalho. Quer dizer, se algum escravo, pelos critérios do respectivo senhor, "não andava na linha", era por ele aterrorizado com a ameaça de ser vendido para o Rio Grande! Eis o que, a respeito, escreveu Saint-Hilaire:
"Segundo o depoimento de um dos membros da junta, os crimes são muito frequentes nesta capitania, principalmente entre os negros, o que não é de se admirar, devido ao costume, no Rio de Janeiro, de mandar vender aqui todos os escravos de que se querem livrar." (¹) Como se vê, havia até mesmo a tentativa de justificar a criminalidade com base nessa prática de transferir para o Sul os escravos indesejáveis.
Entretanto... Entretanto, na mesma obra, Saint-Hilaire volta a discutir a questão, mostrando que, a seu ver, era grande vantagem para um escravo do Rio de Janeiro ser mandado para o Rio Grande do Sul. Explica ele:
"Como já disse, os habitantes do Rio de Janeiro, desgostosos de seus escravos, vendem-nos para esta capitania e, quando querem intimidar um negro, ameaçam-no de enviá-lo para o Rio Grande. Entretanto não há, talvez, no Brasil, lugar algum onde os escravos sejam mais felizes do que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos; conservam-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come carne à vontade; não veste mal; não anda a pé; sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, o que constitui exercício mais saudável do que fatigante; enfim, ele faz sentir aos animais que o cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos próprios olhos." (²)
Ainda que não deixe de ser espantosa a ideia de que, no fim das contas, era bom para o escravo sentir-se superior aos animais (!!!), há algum sentido nas observações do naturalista quanto à melhor condição de vida para os cativos que trabalhavam na pecuária, mesmo porque, segundo o próprio Saint-Hilaire já havia notado, os escravos eram, nas regiões meridionais do Brasil, muito menos numerosos que em outras áreas, nas quais as atividades econômicas, tais como agricultura canavieira e mineração, exigiam um volume muito maior de mão de obra. Ocorre, porém, que escravidão era sempre escravidão, e o escravo, ainda que vivendo um pouco melhor, era sempre escravo, sempre mercadoria e mão de obra compulsória, da qual o senhor podia dispor virtualmente como bem entendesse, mesmo quando se tinha a boa sorte de ter um senhor mais "humano". O fato de serem muito populares as muitas versões da lenda do "Negrinho do Pastoreio" não deixa dúvidas a respeito, já que, para ter alguma credibilidade, qualquer lenda precisa de uma ancoragem plausível em aspectos bem reais - neste caso, o escravo que, trabalhando com o gado, é brutalmente espancado por seu senhor.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 56.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"Vende-se uma escrava..."

Colocar anúncio em jornal foi, no passado, e ainda é, em muitas situações, um modo conveniente de informar, a eventuais interessados, que se pretende vender alguma coisa. Usa-se, então, especificar as características (quase sempre ressaltando as virtudes) daquilo de que se quer dispor, informando-se também um endereço para contato. No século XIX, quando os jornais começaram a se tornar numerosos no Brasil, a situação não era muito diferente quando alguém desejava vender um escravo (embora, obviamente, o endereço para contato incluísse apenas cidade, rua e número, jamais telefone ou e-mail!).
Em quatro anúncios aqui selecionados, meus leitores poderão ter uma ideia de como se tornava pública a venda de cativos. Vejamos os dois primeiros, mandados publicar pelo Juízo de Órfãos, que era, na época, a instância responsável por administrar o espólio dos que faleciam deixando herdeiros ainda menores de idade:
Um diz:
"Pelo Juízo de Órfãos e cartório do escrivão Castro se faz público que achando-se em praça duas escravas de nomes Francisca e Catarina, pertencentes à herança do finado José Justiniano Vieira Falcão, hão de as mesmas se arrematarem na casa da polícia, no dia 10 do corrente, às 10 horas da manhã, cujas avaliações acham-se no cartório do dito escrivão, e as escravas em poder de Luís Álvares, testamenteiro do dito finado." (¹)
Já o outro informa:
"Por ordem do Ilustríssimo Sr. Dr. José Antônio Vaz de Carvalhais, juiz de órfãos desta cidade e seu termo, se faz público que no dia vinte e oito do corrente, nas casas de audiências deste Juízo, ao meio dia, se arrematarão os escravos Generosa e seu filho, pertencentes à herança da finada Esméria Maria, da freguesia da Penha, e a escrava Felicidade, de 16 anos de idade, pertencente a dois herdeiros do finado Joaquim Nunes Ribeiro, da freguesia de Itapecerica. São Paulo, 12 de agosto de 1852. O Escrivão, Manoel José Simões Guimarães." (²)
Os dois últimos anúncios escolhidos foram mandados publicar por particulares que desejavam vender escravos de sua propriedade. Em comum, tinham o fato de que os cativos eram ainda jovens, ressaltando-se sempre suas qualidades. Entende-se: ninguém que queira vender alguma coisa, obtendo, por suposto, o melhor preço, irá fazer circular dela uma descrição negativa.
Primeiro, informa-se a venda de uma escrava:
"Vende-se uma escrava que terá 25 anos de idade, sem moléstias nem vícios conhecidos, não tem má figura, o motivo da venda não desagradará ao comprador; para ver e tratar na rua do Comércio, nº 8." (³)
Agora, uma proposta de venda de um escravo que tinha a profissão de alfaiate, o que elevava bastante seu preço, embora os possíveis compradores certamente se perguntassem pela verdadeira razão que levaria a proprietária a dispor de um cativo tão valioso:
"D. Maria José de Alencastro Cezar, moradora na rua da Casa Santa, nº 3, tem para vender um rapaz de nome Miguel, de 22 a 23 anos, bom alfaiate, sem vícios e de muita habilidade. Quem o pretender dirija-se à mesma senhora, ou à rua de S. Bento, ao Ilustríssimo Sr. Benedito Antônio da Luz, para tratar." (⁴)
Saltam aos olhos de quem lê esses anúncios pelo menos dois fatos em relação à lógica do sistema escravista, neste caso em sua versão brasileira: um escravo não tinha, via de regra, qualquer poder de decisão quanto aos rumos de sua vida, o que significa que era obrigado a trabalhar para aquele que, no momento, fosse seu proprietário, de acordo com as condições que esse senhor lhe impunha, o que podia mudar radicalmente tanto para melhor como pior se, por qualquer razão, fosse vendido; finalmente, nota-se (não sem horror) que não havia muita diferença prática entre os anúncios de venda de animais de carga (cavalos, por exemplo) e os de escravos. Ou seja, era inerente à condição de escravo o ser considerado mercadoria, que se podia, portanto, comprar e vender, sem que se lhe permitisse expressar qualquer opinião a respeito.
Essa "lógica" social era brutalmente opressiva, mas não restrita, leitor, apenas aos escravos - que se veja, por exemplo, o modo pelo qual muitos senhores negociavam o casamento de suas filhas e será impossível evitar a constatação de que muito da estrutura social era incompatível com padrões que hoje consideramos indispensáveis à dignidade humana. Ora, se estas coisas coisas provocam, com justiça, um sentimento de indignação, por que é então que ainda se lhes toleram os resquícios que vemos por aí?

(1) AURORA PAULISTANA, 3 de julho de 1852.
(2) AURORA PAULISTANA, 21 de agosto de 1852.
(3) AURORA PAULISTANA, 25 de outubro de 1852.
(4) AURORA PAULISTANA, 29 de agosto de 1852. 
Os textos dos anúncios foram transcritos, segundo padrão neste blog, em ortografia  atual.


domingo, 5 de fevereiro de 2012

O comércio de escravos no Brasil

Nesta postagem, leitor, o assunto será o comércio de escravos africanos ou descendentes de africanos no Brasil - do tráfico de indígenas escravizados trataremos em outra ocasião.
Quanto ao comércio de escravos, há que se distinguir duas situações: a primeira é a dos que eram trazidos da África e vendidos, legalmente ou não, nos portos do Brasil - esse comércio cessou oficialmente em 1850; já a segunda situação é relativa ao comércio interno de escravos, ou seja, dentro do próprio país.
Mercado de escravos, de acordo com Rugendas (⁵)
Ao chegar ao Brasil, um navio negreiro (ou tumbeiro, apelido sinistramente apropriado) descarregava os escravizados que eram vendidos geralmente em um mercado, dos quais o do Valongo, na Corte do Rio de Janeiro, talvez fosse o mais famoso. Isso não quer dizer que os escravos aí comercializados eram, necessariamente, ocupados em trabalhar na mesma localidade. Os registros da navegação costeira que se fazia no Brasil do século XIX mostram que muitas vezes eram agentes de fazendeiros que efetuavam a compra e, posteriormente embarcavam a "mercadoria" para outras regiões. O curioso é que, devido à relativa precariedade das condições da navegação costeira, sucedia por vezes que um grupo de escravos viajasse em meio à gente livre, fato que despertava não pouco constrangimento entre estrangeiros que, percorrendo o Brasil da época, deixaram relatos interessantes (¹).
Coisa diferente era o comércio interno de escravos. Desconsiderando por hora, como já disse, o tráfico de indígenas escravizados (apenas para simplificar o estudo do assunto), é preciso diferenciar a venda isolada de um cativo (fosse porque o antigo senhor não precisava mais dele, ou porque fosse considerado "fujão", ou ainda por ser parte do espólio de um senhor falecido ou outra razão qualquer), das vendas em massa ocorridas em alguns momentos específicos da História do Brasil.
Um primeiro exemplo de vendas em larga escala no mercado interno é o da fase de explosão da atividade mineradora nas primeiras décadas do século XVIII, quando muitos senhores de engenho julgaram, diante da falta de gêneros alimentícios nas minas que, por isso mesmo, lá alcançavam preços quase inacreditáveis, ser conveniente descuidar da cultura canavieira para plantar artigos de subsistência que pudessem fazer, com bom lucro,  alcançar  os conglomerados urbanos mineradores, chegando a vender parte de seus escravos também para as minas, onde seu preço era também exorbitante. (²) Observe-se ainda que os preços aberrantes praticados nas minas (³) acabaram, por assim dizer, "contaminando" quase toda a colônia, de modo que chegou a haver, desde fins do século XVII, grande insatisfação popular com a alta geral de preços, fato que contribuía para tornar ainda pior a vida quotidiana, já difícil por si mesma, em virtude da precariedade das povoações coloniais.
Mais tarde, quando da expansão cafeeira no século XIX e, em parte em decorrência do fim do tráfico de africanos (a partir de 1850), houve alguma tendência à venda de escravos provenientes das minas já exauridas para áreas do eldorado da Coffea arabica. O crescimento das áreas cultivadas demandava um maior número de trabalhadores e, nesse quadro, pagar caro por escravos vindos de outras regiões do Brasil foi visto como um paliativo à escassez de mão de obra.
O declínio do mercado interno de seres humanos aconteceu, inevitavelmente, com a gradual desagregação da ordem escravista, fosse porque a chegada de trabalhadores livres imigrantes diminuía a vantagem do comércio de cativos, fosse porque ficava claro que era mau negócio investir em um sistema que estava fadado a desaparecer (ainda que tardiamente) ou, porque os próprios escravos, face à brutalidade da condição a que estavam submetidos, recorriam às fugas, mais e mais frequentes, conforme se observa nos anúncios oferecendo recompensas por sua captura que eram publicados na imprensa da época (⁴). A "mercadoria" perdia, com isso, valor de mercado e a ruína da ordem escravocrata era inevitável, já podia ser observada quer nas fazendas, quer nas cidades, mesmo antes da Lei Áurea. Com ou sem a Lei, era só uma questão de (muito pouco) tempo.

(1) Veja sobre isso a postagem "Os 'navios negreiros", embarcações que transportavam africanos escravizados".
(2) É o que diz Antonil em Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Veja-se, na edição original de 1711, as páginas 95 e 180.
(3) Veja sobre isso a postagem "Os preços dos alimentos nas minas de ouro do Brasil Colonial no início do Século XVIII".
(4) A postagem "Quem se importa com animais e escravos que fugiram?" trata da questão dos anúncios em jornais, nos quais se ofereciam recompensas pela captura de escravos fugitivos.
(5) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



Veja também:

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Gênios anônimos do passado

Por mais que muita gente já tenha contestado esse hábito, parece que a espécie humana gosta de exaltar heróis individuais, aqueles que realizaram façanhas brilhantes, supostamente sem a ajuda de ninguém. Talvez isso aconteça porque, ao admirarmos a força, coragem, valentia, inteligência ou astúcia do herói, algo nos diga: "Se ele/ela conseguiu, você também pode!" Já houve até quem conjecturasse que nossa admiração pelos chamados "grandes homens" é resultado de uma percepção interior de que, exaltando seus feitos, tornamo-nos, sabe-se lá como, participantes de sua grandeza. Ironicamente, porém, alguns dos feitos mais notáveis da humanidade parecem pertencer a autores anônimos. Mais ainda, na incerteza de quem foi responsável por determinadas realizações, a gente do passado chegava a atribuí-las aos deuses.
Simplesmente para exemplificar, vão aqui algumas perguntas para as quais não há nenhuma resposta conclusiva (e talvez nunca venha a haver), que ilustram muito bem este assunto:

1. Quem teria sido o primeiro sujeito que, olhando o céu à noite e vendo que as estrelas pareciam formar agrupamentos, teve a ideia de dar nomes e a esses conjuntos estelares?

2. Quem terá sido a primeira pessoa a tentar "capturar os sons", criando algum sistema de notação musical? Não me refiro, por certo, apenas aos sistemas hoje conhecidos, mas a todos, absolutamente todos os que existiram, em todos os tempos.

3. Onde, quando e por quem terá sido feito o primeiro recipiente de cerâmica? É óbvio que o aperfeiçoamento da técnica foi trabalho de muitos povos, ao longo de um tempo enorme, mas quem terá tido a primeira ideia nesse sentido?

4. Quem terá garatujado pela primeira vez alguma coisa que poderíamos considerar um número? Com que propósito fez isso? Terá compartilhado esse rabisco com mais alguém ou guardou a novidade só para si? Vale a mesma questão para as diferentes formas de escrita.

Poderíamos seguir levantando muitas outras perguntas. Certo é que, se por um lado as pesquisas têm nos conduzido a muitas informações novas sobre os primórdios da humanidade, por outro estamos muito longe de ter resposta para todas essas questões, de modo que alguns dos maiores gênios que já viveram nesse planeta talvez venham a permanecer, para bem ou para mal, sempre desconhecidos.