O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que andou por terras brasileiras por volta da época da independência, revela-nos um fato curioso em relação a um costume que havia, segundo ele, de que se mandassem para o Rio Grande do Sul os escravos que, no Rio de Janeiro, eram considerados, por qualquer razão, inadequados para o trabalho. Quer dizer, se algum escravo, pelos critérios do respectivo senhor, "não andava na linha", era por ele aterrorizado com a ameaça de ser vendido para o Rio Grande! Eis o que, a respeito, escreveu Saint-Hilaire:
"Segundo o depoimento de um dos membros da junta, os crimes são muito frequentes nesta capitania, principalmente entre os negros, o que não é de se admirar, devido ao costume, no Rio de Janeiro, de mandar vender aqui todos os escravos de que se querem livrar." (¹) Como se vê, havia até mesmo a tentativa de justificar a criminalidade com base nessa prática de transferir para o Sul os escravos indesejáveis.
Entretanto... Entretanto, na mesma obra, Saint-Hilaire volta a discutir a questão, mostrando que, a seu ver, era grande vantagem para um escravo do Rio de Janeiro ser mandado para o Rio Grande do Sul. Explica ele:
"Como já disse, os habitantes do Rio de Janeiro, desgostosos de seus escravos, vendem-nos para esta capitania e, quando querem intimidar um negro, ameaçam-no de enviá-lo para o Rio Grande. Entretanto não há, talvez, no Brasil, lugar algum onde os escravos sejam mais felizes do que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos; conservam-se próximos deles e tratam-nos com menos desprezo. O escravo come carne à vontade; não veste mal; não anda a pé; sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, o que constitui exercício mais saudável do que fatigante; enfim, ele faz sentir aos animais que o cercam uma superioridade consoladora de sua condição baixa, elevando-se aos próprios olhos." (²)
Ainda que não deixe de ser espantosa a ideia de que, no fim das contas, era bom para o escravo sentir-se superior aos animais (!!!), há algum sentido nas observações do naturalista quanto à melhor condição de vida para os cativos que trabalhavam na pecuária, mesmo porque, segundo o próprio Saint-Hilaire já havia notado, os escravos eram, nas regiões meridionais do Brasil, muito menos numerosos que em outras áreas, nas quais as atividades econômicas, tais como agricultura canavieira e mineração, exigiam um volume muito maior de mão de obra. Ocorre, porém, que escravidão era sempre escravidão, e o escravo, ainda que vivendo um pouco melhor, era sempre escravo, sempre mercadoria e mão de obra compulsória, da qual o senhor podia dispor virtualmente como bem entendesse, mesmo quando se tinha a boa sorte de ter um senhor mais "humano". O fato de serem muito populares as muitas versões da lenda do "Negrinho do Pastoreio" não deixa dúvidas a respeito, já que, para ter alguma credibilidade, qualquer lenda precisa de uma ancoragem plausível em aspectos bem reais - neste caso, o escravo que, trabalhando com o gado, é brutalmente espancado por seu senhor.
(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 56.
(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 56.
(2) Ibid., p. 79.
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