Se há uma especialidade culinária que, pelas regras atuais, demanda uso constante de energia elétrica para refrigeração, essa é, sem dúvida, o sorvete. No entanto, sob diversas formas e receitas, sorvetes já eram feitos muito tempo antes que houvesse rede elétrica em qualquer lugar do planeta. Quer ver?
O famoso chef do século XVIII, Lucas Rigaud, na sua não menos famosa obra Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha (¹), escreveu:
"Torta de Creme Gelado com Pistachas, ou Qualquer Fruta:
Tomem meia libra (²) de pistachas, escaldem-se, tirem-se-lhes a pele, e pisem-se em um gral de pedra molhando-as de quando em quando com uma gota de leite; estando bem pisadas, desfaçam-se em três quartilhos de leite já fervido, meio arrátel de açúcar, um bocado de canela em pau, e casca de limão; e estando algum tanto quente, passe-se tudo por um peneiro com dez, ou doze gemas de ovos, e torne-se a pôr no lume mexendo-se sempre com uma colher; estando ligado, e antes que ferva, deixe-se esfriar; meta-se depois em uma sorveteira com neve de redor, e mexa-se, estando gelado, como é costume, sirva-se sobre fundos de massa de amêndoas, massa de crocante, ou massa de açúcar, farinha e ovos.
Para Tortas de Fruta Gelada:
Estando o leite temperado de sal, açúcar, canela e casca de limão, e gemas de ovos batidas, ligue-se no lume, e depois de ligado, passe-se pelo peneiro com qualquer fruta cozida, primeiro em açúcar, gele-se como a de cima, e sirva-se da mesma forma." (³)
O mesmo autor dá também detalhes de como era a "sorveteira" que se usava e que, ainda que remotamente, lembra um pouco as modernas sorveteiras domésticas, no princípio que permite seu funcionamento:
"Águas de Verão, e para Sorvetes:
Em cada três quartilhos de água deitem um arrátel de fruta, que seja bem madura, como são ginjas, morangos, amoras, groselhas, ou outra qualquer; amasse-se com uma colher, e desfaça-se muito bem na água; coe-se depois por um guardanapo, e tempere-se de açúcar; coe-se outra vez por uma manga, ponha-se ao fresco, e sirvam-se dessa água quando for ocasião.
Se for para sorvetes, deite-se-lhe mais açúcar, meta-se em sorveteiras de folhas de Flandres, rodeie-se de neve e sal, em principiando a gelar-se, despeguem o que estiver pegando de roda com uma colher, cubra-se a sorveteira com a sua tampa, e mexendo-se sempre com ela, até estar igualmente gelada, encham copos com ela no momento em que se quiser beber, e sirvam-se sem detença." (⁴)
E no Brasil? Bem, a neve ocorre sempre em pequena quantidade, e em poucos lugares. Entretanto, temos uma curiosa observação de Saint-Hilaire, feita ao tempo de suas andanças pelo Rio Grande do Sul, em ocasião na qual acompanhava o representante português que, na época, governava a região, o Conde de Figueira:
"Porto Alegre, 4 de julho - Durante vários dias o tempo se manteve muito frio; hoje está sombrio, como na França, antes de nevar, tendo chovido uma boa parte do dia. Cai geada quase todas as noites, e o conde tem podido recolher bastante gelo para fazer sorvetes." (⁵)
Muito interessante, não? Nota-se, portanto, que sorvete era sobremesa antes de inverno que de verão, pelas condições em que se podia produzir, ao contrário do que ocorre hoje. Afinal, dependia-se de neve ou gelo, proporcionados pela natureza apenas nos meses frios, embora haja relatos de que, na Antiguidade, a nobreza romana era capaz de ordenar a seus escravos que corressem às altas montanhas para, de lá, trazerem o gelo que queriam para seus sorvetes...
(1) A primeira edição data de 1780.
(2) Para medidas antigas de uso culinário, veja a postagem:
(3) RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha 5ª Ed. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1826, pp. 196 e 197.
(4) Ibid., pp. 427 e 428.
(5) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 58.
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