quinta-feira, 31 de março de 2022

Como os meninos eram educados em Esparta

Ao contrário de outras cidades gregas, Esparta nunca se destacou por grandes obras arquitetônicas, nem por belas esculturas e tampouco teve, entre seus cidadãos, um grande número de notáveis na literatura. Com a economia fundamentada na agricultura por meio do trabalho compulsório, aos homens livres era atribuída a administração da cidade-Estado e, mais que isso, o preparo contínuo para a guerra. A educação dos meninos espartanos era, portanto, centralizada na formação de guerreiros fortes e disciplinados, que valorizavam as tradições ancestrais a ponto de não questioná-las. Supunham que somente com a perpetuação dos velhos costumes seria possível assegurar a grandeza da cidade.
Uma vez que as crianças nascidas em Esparta eram consideradas pertencentes ao Estado mais que a seus pais, era às autoridades locais, os anciãos, que competia, em última instância, a decisão sobre a educação dos meninos. De acordo com Plutarco (¹), essa prática começou com Licurgo, o legislador semilendário de Esparta, em cuja biografia escreveu: "Educar os meninos era [para Licurgo] a mais importante ocupação [...]" (²).
O procedimento adotado era deixar que, até os sete anos, ficassem os meninos com os pais e, depois disso, passassem a viver em comunidade, para que recebessem uma educação militar: "Até que completassem sete anos os meninos permaneciam com seus pais, para aprender coisas necessárias aos que nasciam livres, assim como os fundamentos de escrita e leitura. Logo que chegavam aos sete anos eram levados diante de Licurgo, que os encaminhava no aprendizado daquilo que parecia mais apropriado às suas tendências naturais. Licurgo os observava individualmente, para que aprendessem aquilo em que mais poderiam se destacar" (³).
Uma leitura desavisada das palavras de Plutarco pode dar a ideia de que a intenção era encaminhar cada menino para uma profissão diferente, de acordo com suas aptidões. Não, não era bem isso. Faziam exercícios físicos extenuantes, desenvolviam o gosto pelas lutas, eram ensinados a suportar castigos sem choro ou lamentações, aprendiam a tolerar o frio e o calor excessivos, a fome e o cansaço, para que na guerra nada lhes parecesse demasiadamente penoso. Procurava-se descobrir quais dentre os futuros cidadãos tinham virtudes de liderança, e quais os que seriam melhores simplesmente obedecendo. Era dada a eles a oportunidade de administrar a justiça no grupo de sua idade, assim como de tomar decisões semelhantes às que deveriam fazer em relação à cidade quando adultos. Era, pois, uma educação vocacional, mas não no sentido que costumamos aplicar ao termo na atualidade. 
Talvez sejamos tentados a julgar essa educação tão severa e precoce. Seria correto impor tal coisa às crianças? Ou consistiria em gravíssimo erro? Plutarco, o biógrafo de Licurgo, parece tê-la aprovado: "Para Esparta havia muito proveito nesses exercícios, porque aos meninos eram vedados os jogos e brincadeiras da infância que de nada valem e até podem ser prejudiciais, em uma idade em que se é capaz de aprender o que quer que seja, conservando esse conhecimento para a vida toda" (⁴). Não se iludam, leitores: a invenção dos jardins da infância, com todas as suas implicações pedagógicas, era coisa que deveria esperar ainda muitos séculos para acontecer.

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae.
(3) Ibid.
(4) Ibid. Todos os trechos de Vitae parallalae aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 24 de março de 2022

A Conjuração Baiana

A Inconfidência Mineira foi sufocada mesmo antes de começar. Ninguém pode dizer o que teria acontecido se os conspiradores das Minas Gerais houvessem saído das palavras para o terreno da ação, como também se desconhece até que ponto estavam dispostos a ir tão longe. Afinal, sentimentos de raiva diante do que se julgava exploração por parte da Metrópole não eram novidade, mas dessa vez vinham azeitados pelo triunfo das colônias inglesas que, na América do Norte, haviam vencido a luta pela independência. A repressão aos inconfidentes foi brutal, mas não deve ser vista com surpresa: qualquer monarquia europeia teria agido de modo semelhante. Era o procedimento usual na época, não uma exclusividade lusitana.
Mas veio 1798, e outra conjuração ou inconfidência, desta vez na Bahia, levantou a ideia de independência. É, no entanto, muito menos conhecida que a de Minas Gerais, cujos integrantes, majoritariamente, pertenciam à elite colonial. Na Bahia, exceto pela figura de Cipriano Barata, as lideranças vieram de camadas sociais menos privilegiadas. Contavam-se, por exemplo, entre seus adeptos, soldados rasos, artesãos urbanos e até escravos. 
Francamente influenciados pelo ideário da Revolução Francesa, os "conjurados" da Bahia eram, como é óbvio, partidários da independência do Brasil, que deveria ser seguida pela implantação de um regime republicano, no qual seria abolida a escravidão, bem como as restrições monopolistas ao comércio, que tanto incomodavam alguns setores da população colonial. Admitindo que a influência da religião poderia ser prejudicial ao movimento de independência, falava-se em medidas severas contra os clérigos que se opusessem aos interesses populares. Esse conjunto de propostas foi dado a público em panfletos manuscritos, distribuídos nas igrejas e em outros pontos da cidade de Salvador em 12 de agosto de 1798. Não se poderia esperar outra coisa: uma investigação quanto à autoria desses corajosos, mas imprudentes papéis, levou a muitas prisões e a sentenças diversas, incluindo degredo, prisão e chibatadas
Não foi só. Em 8 de novembro de 1799, quatro integrantes da Conjuração Baiana, Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens, soldados, e Manuel Faustino e João de Deus Nascimento, alfaiates, foram executados por enforcamento e, como era prática naquele tempo, esquartejados. Já se vê, portanto, a razão para alguns se referirem à Conjuração Baiana como "Conjuração dos Alfaiates". Houve uma quinta sentença de morte, destinada a Luís Pires, que, contudo, jamais foi aplicada, porque o sentenciado conseguiu fugir e nunca foi encontrado. Para casos assim é que a legislação da época cominava a execução em efígie.
É possível uma comparação entre a Inconfidência Mineira e a Conjuração (também chamada Inconfidência) Baiana? Vejamos:
  • Ambos os movimentos tiveram pouco ou nada de prático, contudo as palavras, ditas ou escritas, eram levadas a sério pelas autoridades coloniais, que não hesitavam em aplicar medidas repressivas severas, ao melhor estilo da época;
  • Por tradição, se diz que o movimento de Minas foi predominantemente de elite, enquanto o da Bahia teve raízes populares, coisa que, em linhas gerais, é verdade, admitindo-se, porém, exceções, em ambos os casos;
  • Tanto em relação à Inconfidência Mineira quanto à Conjuração Baiana havia, subjacente à ideia de independência, um descontentamento gerado pelo declínio econômico de áreas que já haviam sido importantes, o Nordeste açucareiro e as regiões auríferas de Minas Gerais;
  • Ao que parece, a abolição do trabalho escravo nunca foi uma prioridade nos debates entre os inconfidentes de Minas, mas teve lugar central nas ideias dos conjurados da Bahia.
Em conclusão, note-se que, após a concretização da Independência, a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, executado em 1792 pela participação na Inconfidência Mineira, foi, aos poucos, ganhando um destaque que talvez não tivesse no Século XVIII. Exaltado como mártir da emancipação política do Brasil, tornou-se uma espécie de herói cada vez mais importante, à medida que, no correr dos anos, o movimento republicano ganhou força. Não deixa de ser curioso que republicanismo e abolicionismo, que em muitas circunstâncias caminharam juntos no Brasil, tenham, de algum modo, quase esquecido os que morreram na Bahia por promoverem a divulgação de ideias não apenas de independência, como também de extinção do trabalho escravo, quase cem anos antes que a Lei Áurea fosse assinada.


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quinta-feira, 17 de março de 2022

O dia em que uma mulher falou no senado romano

Mulher romana desconhecida (¹)
Uma dama romana foi acusada de um pequeno delito. Devia, portanto, comparecer diante do senado para dar explicações - não em pessoa, mas por meio de um advogado, necessariamente do sexo masculino, conforme mandava a tradição reinante. 
A dita senhora, porém, foi peremptória na recusa em constituir representante. Foi ao senado - espanto geral - para se defender, e o fez muito bem, em um arrazoado irrefutável. Os sisudos patres familias assistiam de olhos arregalados e boca aberta. O que seria aquilo?
Os romanos supunham que, em público, as mulheres deveriam sempre permanecer em silêncio, em tudo obedientes, jamais fazendo sombra ao marido, pai ou outro homem que, legalmente, estivesse em posição de autoridade. Portanto, no dizer de Plutarco (²), o espanto foi tão grande, que se decidiu, imediatamente, fazer uma consulta aos oráculos que falavam pelos deuses (³): "[...] O senado mandou consultar os oráculos quanto ao significado daquele prodígio, por uma mulher ter ousado falar por si mesma, estando convencidos [os senadores] de que esse fato inédito e inimaginável era prenúncio de algum evento que, em pouco tempo, afetaria Roma" (⁴). Entenda-se que prodígio, no conceito romano, era qualquer fenômeno espantoso e considerado de caráter preditivo quanto a acontecimentos importantes. Eram prodígios, por exemplo, o aparecimento de algum cometa ou o nascimento de um animal com duas cabeças. Mulheres falantes no senado, portanto, entravam na mesma categoria.

(1) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 206.
(2) c. 45 - 125 d.C.
(3) Plutarco referiu esse incidente ao traçar a biografia de Numa Pompílio.
(4) PLUTARCO. Vitae paralellae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 10 de março de 2022

Reduções indígenas cujo arruamento não seguia a organização jesuítica costumeira

Missões jesuíticas de catequese de indígenas na América do Sul, também chamadas reduções, eram povoações organizadas com extremo cuidado. O arruamento era retilíneo, havia em destaque uma igreja ou capela, além de oficinas, um edifício simples para hospital, uma escola, residência para os padres e, por suposto, casas para as famílias indígenas a quem os religiosos se esforçavam por ensinar um novo estilo de vida, muito diferente daquele a que os nativos estavam habituados em suas aldeias, anteriormente à colonização. 
Portanto, quem visse uma redução jesuítica já saberia, com alguma certeza, como eram todas as outras. Ou quase todas. Viajando pelo território das Missões na América do Sul no Século XVIII, após a expulsão dos jesuítas, Félix de Azara, estudioso da natureza e dos costumes locais, descobriu que havia pelo menos duas povoações - antigas reduções - chamadas San Joaquín e San Estanislao, nas quais o arruamento das moradias indígenas estava longe, muito longe, mostrar obediência às antigas práticas jesuíticas. Intrigado, tratou de descobrir o motivo, e escreveu: "[...] Toda esta povoação, como a precedente (¹) está coberta de palha e os ranchos e choças estão como semeados, sem formar quadras nem ruas, cuja disposição, ainda que pareça bárbara, é necessária, porque a experiência tem demonstrado que quando os indígenas desertam ou vão juntar-se aos bárbaros do bosque (²), ateiam fogo à respectiva choça, e se estivesse próxima das outras, todas se queimariam." (³)
É preciso fazer algumas considerações sobre esse fato para lá de curioso. Primeiro, não era incomum a fuga ou tentativa de fuga de catecúmenos que, saudosos de seu modo de vida anterior, tentavam escapulir ao controle dos padres. Além disso, as duas reduções em questão são de estabelecimento tardio, em meados do Século XVIII, no apagar das luzes da catequese jesuítica colonial, e é possível que os missionários não tivessem tempo suficiente para estabelecer os parâmetros habituais. Finalmente, a desorganização instaurada a partir da expulsão dos jesuítas explica, ao menos parcialmente, que muitos indígenas já catequizados fugissem das reduções, até para escapar à exploração dos colonizadores que, sem o freio representado pela presença dos padres, não tinham escrúpulos em obter trabalho e recursos à força da população ameríndia. Queimar a cabana, na hora da fuga, serviria, em termos práticos, para desviar a atenção dos administradores locais que, ansiosos por apagar o fogo, somente mais tarde notariam que alguns haviam "desaparecido". Talvez funcionasse, também, como uma afirmação explícita de retorno à vida livre, deixando para trás as restrições impostas pela catequese e pela colonização.

(1) Respectivamente San Joaquín e San Estanislao.
(2) Azara fazia referência aos indígenas não catequizados.
(3) AZARA, Félix de. Viajes Inéditos de D. Félix de Azara. Buenos Aires: Imprenta y Librería de Mayo, 1873, p. 220. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 3 de março de 2022

Venda de filhos como escravos em Roma

A escravidão, em si, já é coisa horrível. Mas vender um filho como escravo? O que dizer disso?
Não, meus leitores, não foi no Brasil, embora casos esporádicos de venda de um filho como escravo possam ter acontecido por aqui - lembram-se de Luís Gama? De acordo com Plutarco (¹), era comum em Roma, nos primeiros tempos da cidade, que um pai que eventualmente se encontrasse em dificuldades econômicas vendesse um ou mais filhos para trabalho escravo: "Era costume romano que, em caso de necessidade, os pais pudessem vender os filhos como escravos, com exceção dos que já eram casados, e desde que o casamento houvesse acontecido com conhecimento e consentimento dos pais [...]. Por esse motivo havia em Roma, entre os escravos, gente que nascera livre e que, sem culpa alguma, fora reduzida à escravidão, por decisão paterna." (²)
Foi ao falar de Numa Pompílio, que os romanos diziam ter sido o segundo rei de Roma, que Plutarco referiu essa sórdida prática, que, é preciso dizer, não foi propriamente incomum na Antiguidade, entre diversos povos. Não era crueldade exclusivamente romana, portanto (³). Numa, descrito por Plutarco como homem de grande virtude, decidiu interferir no assunto e pôs fim à escravização de filhos por vontade dos pais. 
A escravidão, como sistema de trabalho, não foi muito expressiva nos primeiros séculos de Roma, mas ganhou força e se impôs a partir das grandes conquistas militares. Inimigos derrotados em combate foram escravizados e se tornaram a principal força de trabalho durante a República e o Império. 

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) É sabido que a venda de filhos como escravos (ao menos temporariamente) acontecia entre outros povos, e não é improvável que, de fato, ocorresse em Roma, mesmo havendo alguma incerteza quanto aos eventos relativos ao período da realeza.


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