quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Quantos funcionários um trem precisava ter no Século XIX

Estação ferroviária, Barra do Piraí - RJ, 1881 (¹)

Ferrovias foram implantadas no Brasil a partir da segunda metade do Século XIX, mas faltava a elas uniformidade nas regras de funcionamento e nos padrões de construção. Um exemplo que comprova esse fato é a diferença nas bitolas (²), que chegavam a variar mesmo dentro de uma única companhia ferroviária, impedindo que os trens de uma empresa circulassem pelos trilhos de outra. Esse procedimento podia até parecer interessante para as companhias, mas era muito incômodo para quem  utilizava os serviços por elas oferecidos, quer no transporte de passageiros, quer no de carga.
Algumas leis foram estabelecidas para assegurar um mínimo de uniformidade, mas, também nesse aspecto, a sobreposição de decretos gerou certa confusão. No entanto, de acordo com a História da Viação Pública de São Paulo (³), publicada em 1903, uma obra fundamental para o entendimento do que ocorreu quanto à implantação de ferrovias, o decreto nº 1930 de 26 de abril de 1857 foi, na época, o de maior aplicação, e estipulava, entre outras regras: "Nos comboios haverá um chefe a quem obedecerão todos os outros empregados. Haverá também pelo menos um maquinista e um foguista para cada máquina." (⁴).
A presença de um maquinista, profissional responsável pela condução da locomotiva, é tão óbvia que dispensa explicações. Quanto ao foguista, era o encarregado de alimentar com carvão e, no caso do Brasil, também com lenha, o maquinário a vapor que movia a locomotiva. Estes três funcionários - chefe do trem, maquinista e foguista -, eram o mínimo exigido. Cada empresa, conforme o número de carros ou vagões de suas composições, podia, evidentemente, ter um número maior, para que os serviços fossem prestados de modo satisfatório.

(1) A imagem aqui reproduzida, a partir de original pertencente à BNDigital, foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) De 0,6 m a 1,6 m.
(3) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903.
(4) Ibid., p. 135.


terça-feira, 24 de setembro de 2019

Quem era Hera

"Que é a atribuição de vícios aos deuses, que não um modo de incentivar sua prática e dar a eles uma desculpa aceitável?"
Sêneca, De brevitate vitae

Não se irritem com o título, leitores: tenho o direito de bulir com as palavras. Na mitologia grega, Hera era casada com Zeus (¹). Esse casal olímpico estava, porém, muito longe de ser um exemplo de felicidade conjugal: Zeus era descrito na mitologia como um incansável adúltero, e Hera (talvez por consequência), como uma ciumenta incorrigível. Que poderia resultar disso? Para os antigos gregos, cada vez que uma grande calamidade natural acontecia - um terremoto, por exemplo - era porque, lá no Olimpo, Zeus e Hera estavam discutindo...
Uma dentre muitas lendas associadas a esse casal briguento fazia menção à ilha de Lemnos, que se acreditava ser o local dos fornos que Hefestos (²) usava para trabalhos em metalurgia, arte em que era perito. Acontece que Hefestos, vendo Hera, sua mãe, ser maltratada por Zeus, que a havia pendurado no céu com uma corrente de ouro, resolveu agir, libertando-a. Em consequência, recebeu um horrendo pontapé de Zeus, suficiente para que fosse arremessado em Lemnos. Ao cair, teve uma perna fraturada e, por isso, mancava continuamente. Outras versões, igualmente antigas, tinham explicações diferentes para o problema de Hefestos.
Vejam, leitores: não é improcedente a ideia de que, na Antiguidade, havia aqueles que colocavam suas próprias características nos deuses que cultuavam. Em alguns episódios da mitologia, divindades olímpicas não eram exemplos do que havia de mais virtuoso entre os homens. De qualquer modo, Hera também foi reverenciada pelos gregos como a deusa da fidelidade conjugal. Seu templo mais célebre era o de Argos, no Peloponeso.

(1) Em Roma, Juno e Júpiter, respectivamente, ainda que a correspondência entre divindades gregas e romanas seja algo discutível. 
(2) Vulcano, para os romanos.


quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Em camisa e ceroulas

O vestuário doméstico usado por quem vivia no interior do Brasil na primeira metade do Século XIX


Quem andasse pelo interior do Brasil por volta da primeira metade do Século XIX esperando encontrar compostura, ainda que não formalidade, na recepção de visitas, provavelmente ficaria desapontado. É que o distanciamento dos centros urbanos, o pouco ou nenhum convívio social, faziam com que até mesmo os mais abastados não tivessem escrúpulos em aparecer diante das visitas em trajes sumários. Enviado à Província de Goiás pouco depois da Independência para organizar as forças militares da região, Raimundo José da Cunha Matos observou, quanto à gente que o hospedava ao longo do caminho (que, aliás, era longo mesmo, ainda mais naqueles tempos em que o meio terrestre de transporte mais rápido eram os cavalos): "A falta de educação urbana da gente do sertão induz a apresentarem-se os homens muitas vezes em presença de pessoas de respeito em trajes do interior das casas, em camisa e ceroulas; mas as mulheres pela  maior parte aparecem vestidas com decência, posto que estejam quase sempre sem meias, e com tamancos nos pés." (¹)
Mais tarde, já na Cidade de Goiás, capital da Província, Cunha Matos observou que as mulheres viviam quase reclusas, a não ser pelas idas à missa, e isso com um traje que, se não era a mantilha dos tempos coloniais, não deixava, para efeitos práticos, de ter a mesma finalidade: "As senhoras não saem fora de casa durante o dia senão em raríssimas ocasiões, mas nos dias santos e domingos vão à missa de madrugada, e então cobrem a cabeça com um lenço que forma uma espécie de elmo com babeira mas sem viseira, e por este modo só se lhes podem ver os olhos [...]." (²)
Uma viagem de inspeção de tropas deu ao mesmo autor a oportunidade de constatar que os hábitos quanto ao vestuário que havia presenciado não estavam restritos a uma pequena área, tampouco eram praticados somente por camadas mais baixas da população. Cunha Matos, que, ao lado de suas atribuições militares, aproveitava a ocasião para ir escrevendo as observações que hoje nos divertem, deixou-nos este registro em que, a despeito do transparente mau humor, descreve com precisão quase fotográfica o trajar diário de um indivíduo que, tendo-o hospedado, estava longe de pertencer à fração empobrecida da Província: "[...] O proprietário do engenho hospedou-me com a melhor vontade, e com tanta sem-cerimônia que sempre esteve em camisa e ceroulas, tamancos, e sem meias nas pernas. Tal é o estado de civilização destes sertões, ou a grosseria de alguns homens, ainda mesmo proprietários abastados." (³)

(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 96.
(2) Ibid., pp. 138 e 139.
(3) Ibid. p. 188.


terça-feira, 17 de setembro de 2019

O culto ao Sol na Antiguidade


Se há um elemento recorrente nas crenças religiosas de muitos povos da Antiguidade, esse é, sem dúvida, a existência de alguma espécie de culto ao Sol. É certo, porém, que cada povo atribuía a seu deus-sol as características que mais valorizava. Exemplificando: em uma inscrição assíria encontrada em um templo em Nimrud, a divindade é descrita como "o deus-sol, devastador e desolador". Para quem conhece a fama dos assírios, não é preciso dar explicações.
Na teocracia egípcia, faraós apreciavam ser descritos como filhos de Ra, ainda que, eventualmente, a megalomania levasse os governantes a se declararem a própria encarnação da divindade... Além disso, recebiam culto como se, de fato, fossem deuses. Entre os povos da Mesopotâmia, Shamash, invocado também sob outras designações, foi reconhecido como deus-sol desde tempos remotos, algo próximo de 4000 a.C. Já veem os leitores que, se quisermos fazer uma lista de deuses identificados com o Sol, não faltará assunto, ainda que acabe a paciência para tantos nomes.
Plínio, o Velho (¹), o notável enciclopedista romano, tentou explicar assim a divinização do Sol: 
"Considerando tudo o que ele afeta, devemos crer que o Sol é a própria alma, ou, com mais exatidão, a mente do universo, a máxima divindade que governa a natureza. Ele provê o universo com luz e desfaz as trevas, ele escurece e ilumina as estrelas em seu repouso, ele comanda a marcha das estações segundo o costume da natureza e seu contínuo renascer a cada ano (²), ele desfaz a tristeza e tranquiliza as nuvens de tempestade que se formam na mente humana, sua luz alcança as demais estrelas [...]." (³)
É fato que no Século I os deuses já não desfrutavam do prestígio que tinham nos centênios precedentes, sendo possível, contudo, que Plínio quisesse contemporizar (⁴), não dando margem a alguma acusação de desrespeito para com a religião do Estado. Pelo que se infere de seus escritos, Plínio via a natureza como a grande e única divindade. Chama a atenção, porém, que ele assinalasse, corretamente, o efeito da luz solar sobre o humor dos seres vivos. Por conveniência ou desconhecimento, razão e superstição foram forçadas ao convívio. Não parece, sob esse aspecto, que a humanidade tenha mudado tanto nos dois últimos milênios.

(1) 23 d.C. - 79 d.C.
(2) Com a chegada da primavera.
(3) PLÍNIO, O VELHO. Naturalis historia Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Fazendo, ao que parece, uma alusão ao Sol Invictus, divindade cultuada pelos soldados romanos.


quinta-feira, 12 de setembro de 2019

As ruas desalinhadas de cidades coloniais

Muitas cidades nascidas nos tempos coloniais tinham ruas em completo desalinho. Isso se explica porque o povoamento aconteceu ao sabor da necessidade, sem que alguém tivesse a ideia de fazer um planejamento. Mesmo que tal coisa existisse, seria pouco provável que fosse seguida, se levarmos em conta que muitos colonizadores estavam desesperados por fazer dinheiro tão rápido quanto possível, para voltar ao Reino em uma posição econômica superior à que tinham na ocasião da saída (¹). 
Em certos casos, cidades assim estabelecidas passaram, séculos mais tarde, por algum tipo de reforma, envolvendo a demolição de prédios antigos e a criação de um novo arruamento, para oferecer ao lugar um aspecto de modernidade, banindo da cena os improvisos coloniais. Em outros casos, ficou existindo um "centro velho" ou "centro histórico", mais ou menos preservado, enquanto a urbanização condizente com os novos tempos fez brotar novas áreas de ocupação humana nos arredores. 
Parece, no entanto, que, em relação aos núcleos urbanos nascidos com a mineração, pode haver, além da falta de planejamento e da influência do relevo, mais uma explicação para as ruas tortuosas, segundo o que disse Joaquim Ferreira Moutinho, um português que residiu por dezoito anos em Cuiabá, isso no Século XIX, quando a fúria mineradora já havia acabado há muito tempo. As ruas que compunham o centro da cidade, eram, em suas palavras, "todas elas cortadas por becos na maior parte tortuosos, como os de todas as cidades antigas que devem sua origem a mineiros, que as construíam de modo que seus habitantes estivessem sempre juntos, e pudessem assim acudir ao primeiro grito de socorro para se defenderem das muitas hordas de índios [sic] que povoavam os sertões, e lhes ameaçavam a todo o instante as habitações [...]." (²)
O ouro era a principal preocupação dos mineradores; quase tudo o mais ficava para depois. Há que se notar, no entanto, que, apesar do desalinho das ruas, em algumas cidades coloniais que prosperaram por causa das descobertas auríferas, logo foram edificados templos magníficos (³), que até hoje impressionam pela riqueza neles investida. A religiosidade imperante nessa época de curiosas distorções (em mais de um sentido), pode muito bem explicar tal fenômeno.

(1) Para muitos, não passou de expectativa frustrada.
(2) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia Sobre a Província de Mato Grosso. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 38.
(3) Para exemplo, não será preciso mais que uma caminhada de quinze minutos por Ouro Preto - MG.


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terça-feira, 10 de setembro de 2019

Desfiles triunfais não foram exclusividade dos romanos

É certo que em Roma os triunfos, festejos comemorativos das grandes conquistas militares, atingiram o máximo nível de organização na Antiguidade, regidos por leis que determinavam quando um general vitorioso e suas tropas podiam ser homenageados com esse tipo de desfile; mas a prática de voltar da guerra carregando o espólio ou parte dele, em procissão da qual participavam o rei, os comandantes militares, sacerdotes e soldados foi usual entre muitos outros povos. 
Uma vez que se compreenda que, na mentalidade antiga, as guerras, travadas aparentemente entre os homens, eram interpretadas como um combate entre deuses, não será difícil deduzir o significado dos desfiles nos quais as estátuas de divindades derrotadas eram parte essencial. Inimigos capturados vivos eram também componentes rotineiros dessas procissões, ao final das quais eram, às vezes, executados. Consta que Otávio teria ficado grandemente decepcionado com o suicídio de Cleópatra, porque queria tê-la como um troféu especial para exibir em seu triunfo.
As duas imagens seguintes retratam relevos assírios, mostrando um monarca aclamado em triunfo após uma grande vitória. Para os assírios, a guerra era uma atividade econômica essencial: a pilhagem da riqueza dos povos conquistados significava prosperidade para os vitoriosos.

Rei assírio ao voltar de uma batalha (1)

Relevo assírio (2) retratando uma procissão triunfal de Senaquerib (3)

(1) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) LAYARD, Austen Henry. A Second Series of the Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editda para facilitar a visualização neste blog.
(3) Reinou na Assíria entre 705 a.C.  e c. 680 a.C.


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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Senhora de engenho

Engenhos coloniais eram comandados por homens, seus proprietários, conhecidos como senhores de engenho. Os Séculos XVI e XVII, com predominância deste último, foram tempo em que tais personagens mandavam e desmandavam, retendo, em suas mãos, o poder decisório que jorrava da força econômica. É inegável que, neste cenário, as mulheres tinham pouca oportunidade para protagonismo: viviam, como regra, trancafiadas em casa, saíam às ruas cobertas por mantilha e apenas para poucas atividades (como ir às igrejas, por exemplo), isso quando não eram mandadas pelos pais para algum convento ou retiro (¹). Distinções sociais também significavam distinções no modo de vida das mulheres, embora nunca significassem ampla liberdade e igualdade de direitos em relação aos homens.
Mas havia exceções. Uma delas, apenas para citar um exemplo, foi Leonor Soares, senhora de engenho na Bahia, de quem Gabriel Soares de Sousa escreveu: "À mão direita deste engenho de Sua Majestade está outro de dona Leonor Soares, mulher que foi de Simão da Gama de Andrade, o qual mói com uma ribeira de água (²) com grande aferida [...]." (³) 
Notem, leitores, que desse documento se infere que Leonor Soares somente se tornara senhora de engenho em razão do falecimento do marido. O fato de que agora fosse a proprietária talvez indique que não tinha filhos do sexo masculino em idade suficiente para o comando dos negócios da família. É pouco provável, porém, que no dia a dia, a vida dessa senhora fosse muito diferente da que tinham as mulheres de sua idade e condição social.

(1) Chegou a haver uma lei que proibia o envio de moças brasileiras para conventos em Portugal, porque se entendia que a terra tinha poucos colonizadores e era preciso que as jovens se casassem e tivessem filhos no Brasil, para aumentar a população. 
(2) Gabriel Soares foi senhor de engenho na Bahia por dezessete anos. Portanto, sabia reconhecer um bom engenho, como parece ser o caso desse, um engenho real, já que moía com a força da água.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 132.


terça-feira, 3 de setembro de 2019

A prática da agricultura e as embarcações usadas na Babilônia

As áreas agricultáveis nos arredores da Babilônia eram repletas de canais de irrigação. Assim é que a água do Eufrates chegava aos campos, permitindo colheitas de cereais, principalmente trigo e cevada, "de duzentos por um, chegando mesmo a trezentos, em safras excepcionalmente boas", segundo afirmou Heródoto no Livro I de suas HistóriasDescontando algum exagero de nosso informante, a irrigação favorecia uma produção elevada, capaz de sustentar a população de toda a área. Dos campos vinham também frutas, com destaque para a produção de tâmaras.
Pode-se imaginar a intensa atividade aí existente. Contudo, os agricultores, parando às vezes suas tarefas para descansar por um instante, podiam ver, a alguma distância, barcos que desciam o rio, rumo à linda Babilônia. Notem, leitores, não eram barcos comuns os que observavam, e sim embarcações redondas, feitas de couro, com armação de salgueiro. É ainda Heródoto quem diz: "Os barcos são controlados por dois remos usados por homens em pé [...], havendo barcos muito grandes e outros menores [...]." (¹)
Esses barcos somente serviam para descer o rio; comerciantes, quando chegavam à Babilônia, entregavam suas mercadorias, desfaziam-se da armação das embarcações e, carregando os couros em jumentos (²), faziam por terra a viagem de volta. 

(1) HERÓDOTO. Histórias, Livro I. Os trechos citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) De acordo com Heródoto, cada barco conduzia ao menos um jumento, a fim de ter quem carregasse o couro no retorno. Se o barco fosse grande, deveria ter número compatível de animais de carga.


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