quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Mantilha, vestimenta feminina no Período Colonial, embora houvesse exceções

"Ambrosina, vestida de negro e embiocada em mantilha, entrou na estalagem pelo braço do poeta."
                                                                                                Aluísio Azevedo, A Condessa Vesper

No Brasil colonial, a população de origem europeia era usualmente muito conservadora em questões de vestuário, em particular quanto ao que era tido como apropriado para homens e mulheres. Apesar disso, situações extremas podiam ensejar exceções às rígidas normas sociais vigentes, como veremos ter ocorrido em dois curiosos episódios do século XVI.

Episódio 1, ocorrido no Rio de Janeiro, ano de 1582:

"Daí a poucos dias chegaram três naus francesas ao Rio de Janeiro, e surgiram junto ao baluarte que está no porto da cidade, dizendo que iam com uma carta de Dom Antônio para o Capitão Salvador Corrêa de Sá, o qual nesta ocasião era ido ao sertão fazer guerra ao gentio; mas o administrador Bartolomeu Simões Pereira, que havia ficado governando em seu lugar, e estava informado da verdade pela carta do Governador Geral, lhes respondeu que fossem embora, porque já sabia quem era seu rei; e porque a cidade estava sem gente, e não havia mais nela que os moços estudantes e alguns velhos, que não puderam ir à guerra do sertão, destes fez uma companhia, e Dona Inês de Sousa, mulher de Salvador Corrêa de Sá, fez outra de mulheres com seus chapéus nas cabeças, arcos e flechas nas mãos, com o que, e com o mandarem tocar muitas caixas, e fazer muitos fogos de noite pela praia, fizeram imaginar aos franceses que era gente para defender a cidade, e assim ao cabo de dez ou doze dias levantaram as âncoras e se foram." (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil)
Uma mulher usando mantilha, segundo
Joaquim Lopes de Barros (*)
Em breve narração somos informados quanto a algumas coisas importantes: a população masculina de algumas regiões coloniais vivia a correr mato com a intenção de apresar índios para a escravidão, sendo a guerra "justa" frequentemente apenas um pretexto; as cidades litorâneas eram precariamente defendidas contra eventuais tentativas de invasão; as comunicações eram igualmente precárias, fato evidenciado pela questão de quem seria o rei de Portugal naquele momento, lembrando que o contexto aqui é o do início da chamada "União Ibérica", que durou de 1580 a 1640. Mas o que realmente nos interessa é que, diante da ameaça de ocupação francesa do Rio de Janeiro, as mulheres que habitavam a cidade e que viviam, por assim dizer, semirreclusas e, conforme os severos costumes da época, apenas apareciam em público usando mantilhas que cobriam os cabelos, parte do rosto, ombros, etc., etc., etc., não tiveram dúvidas em disfarçar-se de modo a parecerem homens que defendiam a cidade (e homens indígenas, já que portavam arcos e flechas) e, ao que parece, o estratagema deu bons resultados.

Episódio 2, c. 1587, cidade do Salvador, Bahia:

"Pouco tempo depois de começarem a governar o Bispo e Cristóvão de Barros, entraram subitamente nesta Bahia duas naus e uma zavra de ingleses com um patacho tomado, que havia dela saído para o Rio da Prata, em que ia um mercador espanhol chamado Lopo Vaz; tanto que chegaram, tomaram também os navios que estavam no porto, entre os quais estava uma urca de Duarte Osquer, mercador flamengo que aqui residia, com marinheiros flamengos, que voluntariamente lha entregaram e se passaram aos ingleses, e logo todos começaram as bombardadas à cidade tão fortemente que, desanimados e cheios de medo, os moradores fugiram dela para os matos, e posto que o bispo pôs guardas e capitães nas saídas, que eram muitas, porque não estava murada, para que detivessem os homens e deixassem sair as mulheres, muitos saíram entre elas de noite, e algum com manto mulheril, e esses poucos que ficaram pediram ao bispo que fizesse o mesmo, ao que acudiu um venerável e rico cidadão chamado Francisco de Araújo, requerendo-lhe da parte de Deus e de el-Rei não deixasse a terra, pois não só era bispo mas governador dela, e que se a gente era fugida, ele com a sua se atrevia a defendê-la." (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil)
Este segundo caso é, em essência, semelhante ao primeiro, já que, mais ou menos contemporâneo, tem como pano de fundo outra tentativa de ocupação, desta vez por ingleses, novamente ficando clara a precariedade das possibilidades defensivas das povoações litorâneas. Ocorre, porém, que, ao contrário do que ocorreu em 1582 no Rio de Janeiro, aqui a população também se utilizou de indumentária do sexo oposto - entrando em cena as famosas mantilhas - não para a defesa da cidade, mas para fugir, um expediente que viria a ter muito uso no futuro, quando recrutamentos forçados se instituíssem, como ocorreu, por exemplo, no século XIX, ao tempo da Guerra do Paraguai.

(*) Costumes do Brasil - o original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.

4 comentários:

  1. Minha trisavó alagoana usava uma roupa que cobria todo o corpo, acho que é por conta desta tradição. Obrigado pela publicação, super interessante. Tenho uma foto dela em que dá para ver bem o pano sobre os ombros e a cabeça.

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    1. Boa noite, Thiago Luis, também em São Paulo havia, até o começo do Século XX, senhoras que usavam um longo xale, cobrindo a cabeça e parte do corpo, ao menos quando iam à missa - como no caso interessantíssimo relatado por você, era tradição, que, como se sabe, acabou sendo abandonada. Há quem afirme que, no Brasil, esse costume teria origem na influência mourisca sobre a Península Ibérica. Pode ser, mas acho que podemos "cavar" muito mais longe nessa questão. Falarei um pouco disso quando, em um post futuro, tratar do comportamento das mulheres espartanas. Obrigada pela visita ao blog e pelo excelente comentário. Apareça sempre!

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    2. Nesse caso que citei, a Maria vivia o tempo todo coberta, usou esse tipo de vestimenta até falecer em 1977, nasceu por volta de 1900. Perguntei para uma prima de terceiro grau da minha avó e a mulher do irmão do pai da nora de Maria também vivia toda coberta, eram naturais de Junqueiro, surgiu a curiosidade de buscar conhecer esta tradição pois estou montando minha árvore genealógica. Continue com as postagens, são maravilhosas, novamente obrigado.

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    3. Chega a ser surpreendente, mas tenho razões para crer que, em alguns lugares, não fosse de todo incomum. O que chama a atenção é a data, tão recente, ao menos em termos de história.

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