domingo, 23 de outubro de 2011

Sepultamentos indígenas - Parte 1

Os primeiros contatos entre portugueses e indígenas envolveram altas doses de medo e curiosidade de ambas as partes - medo por causa do desconhecido, curiosidade pela mesma razão. O passar do tempo mudou a percepção desse relacionamento, mas pode-se dizer que, inicialmente, os europeus que escreveram sobre a população nativa da América tinham uma visão bastante limitada e por isso mesmo, distorcida, dos povos indígenas, cuja diversidade era dificilmente captada. Assim, é comum que nos escritos do século XVI haja generalizações absurdas, embora, gradualmente, possamos ir encontrando melhores informações, devidas, em grande parte, às observações de missionários, gente que tinha coragem suficiente para ousar a ultrapassagem de barreiras culturais, indo viver com índios, aprendendo deles os costumes e a língua, enquanto eram feitos esforços para atraí-los à sua fé, o que podia significar, finalmente, a supressão de muito dos antigos costumes nativos, à medida que as populações eram organizadas em "missões" ou "reduções", sob normas estritas de conduta, segundo valores europeus, quanto à organização da família, trabalho e rotina diária.
Sepultamento indígena, segundo Rugendas (*)
Essas considerações são válidas sob os mais diversos aspectos da cultura dos povos indígenas, inclusive no que tange às práticas de sepultamento.
A despeito disso, há uma referência muito interessante a um cemitério indígena no Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, escrito entre 1530 e 1532. Entretanto, com quase toda certeza, os indígenas em questão eram habitantes do território do atual Uruguai, e não do Brasil. Conforme veremos, porém, na próxima postagem, havia muito em comum nas práticas adotadas pelas diversas "tribos", ainda que um bom número de particularidades também. Mas vamos ao relato de Pero Lopes:
"E andando pela terra em busca de lenha para nos aquentarmos fomos dar num campo com muitos paus tanchados e redes, que fazia um cerco, que me pareceu à primeira que era armadilha para caçar veados; e depois vi muitas covas fuscas, que estavam dentro do dito cerco de redes; então vi que eram sepulturas dos que morriam, e tudo quanto tinham lhe punham sobre a cova, porque as peles, com que andavam cobertos, tinham ali sobre a cova, e outras maças de pau, e azagaias de pau tostado, e as redes de pescar e as de caçar veados; todos estavam em contorno da sepultura, e quisera mandar abrir as covas; depois houve medo que acudisse gente da terra, que o houvesse por mal. Aqui juntas estariam trinta covas. Por não podermos achar outra lenha mandei tirar todos os paus das sepulturas, mandei-os trazer para fazermos fogo, para se fazer de comer com dois veados, que matamos, de que a gente tomou muita consolação."
Expliquemos: Pero Lopes e outros marinheiros haviam sido enviados por Martim Afonso de Sousa (irmão de Pero Lopes e líder da Expedição) a explorar a região do estuário do Rio da Prata. Acontece que, sendo época extremamente desfavorável em termos de clima, sofreram grandes tempestades, quase morreram todos afogados, alguns morreram de fato por doenças e todos passaram muita fome. É este o contexto em que o navegador, ainda que temendo a justa vingança dos nativos, mandou remover a madeira existente no cemitério para preparar alimento aos esfomeados exploradores.
Talvez algum leitor fique chocado ante a ideia de que, não fossem as circunstâncias, Pero Lopes teria ordenado a violação das sepulturas, provavelmente por curiosidade, para ver o que havia dentro. Não é isso, todavia, o que se faz a cada novo túmulo de faraó descoberto no Egito ou em qualquer outro sítio arqueológico mundo afora?
O que deve ser notado, aqui, é o costume de sepultar o morto com seus pertences, o que era, diga-se de passagem, um hábito quase planetário, do qual os túmulos dos faraós egípcios são, talvez, o exemplo mais destacado. Esse costume ainda sobrevive em diversas culturas.

(*) RUGENDAS, Moritz Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence ao acervo da Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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