quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Telhas para cobrir as casas da vila de São Paulo no Século XVI

As primeiras casas construídas por colonizadores no Brasil eram cobertas com folhas de palmeira e outros materiais semelhantes. Apesar da facilidade e rapidez na construção, a cobertura desse tipo apresentava desvantagens: durava pouco, não era muito resistente às intempéries, era residência favorita de várias espécies de insetos e, em extremo importante, era facilmente consumida em caso de incêndio.
Cobrir casas com telhas exigia, contudo, que houvesse na localidade um oleiro experiente, e, como se sabe, artesãos escasseavam nas povoações coloniais durante o Século XVI. Foi somente em 1575 que a Vila de São Paulo, fundada em 1554, principiou a ter casas cobertas com telhas, conforme se vê em uma ata da respectiva Câmara, que diz:
"Aos seis dias do mês de março de mil e quinhentos e setenta e cinco anos, nesta Vila de São Paulo do Campo, apareceu Cristóvão Glz [?] ora morador nesta vila à presença de todos [e] disse que ele se queria vir a morar nesta vila e se queria obrigar a fazer telha para se cobrirem as moradas desta vila, por ser coisa para enobrecimento dela e ser muito necessário, contanto que se obrigassem a lhe tomar toda a [telha] que ele fizer [...], a dita telha era necessária por razão desta vila estar coberta de palha e correr risco por razão do fogo [...]." (*)
A coisa, era, de fato, indispensável, razão pela qual o oleiro e os "homens bons" da povoação entraram em acordo para que fosse cedido um terreno onde estabelecer o forno necessário à queima das telhas. Segue a ata:
"[...] se concertaram com o dito Cristóvão Glz da maneira seguinte: que ele fará toda a telha que for necessária para a vila se cobrir e dará aos moradores ao preço de quatro cruzados o milheiro, pagos no dinheiro da terra, que serão mantimentos e carnes e [cera] e couros e gado, bois e vacas e porcos, porquanto nesta vila não há outra fazenda e cada um dará aquilo que concertar ao tempo que lhe vender a dita telha, e ele a fará de bom tamanho e boa forma, que fique de dois palmos e meio depois de cozida, e de como assim se obrigou a tomar as ditas pagas nas coisas sobreditas e dar a dita telha aos moradores, a cada um por aquilo que tiver, quer bois, quer vacas, quer porcos, quer cera, quer couros, quer o que cada um tiver de seu [...]."
Já referi neste blog a escassez de meio circulante no Brasil Colonial. A ata que analisamos é prova inequívoca de que a pequena São Paulo do Século XVI não sofria pela falta de víveres, mas penava com a quase inexistência de dinheiro amoedado. Diante disso, se o oleiro Cristóvão queria ali trabalhar, seria sob a condição de receber pagamento em espécie, a que o documento se refere como o "dinheiro da terra". A rusticidade da vida colonial se entrevê sem rebuços nessa expressão.

(*) O texto da ata citada foi transcrito na ortografia atual e a pontuação foi adicionada; do contrário, a leitura seria extremamente difícil.


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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Que fazer em um dia chuvoso

Dia chuvoso na Serra da Mantiqueira
Enviei uma mensagem a várias pessoas, pedindo que mandassem sugestões quanto ao que se pode fazer em um dia de chuva, desses tão rabugentos que inviabilizam uma escapada ao ar livre. É claro que estou falando de um dia em final de semana, não em dias de trabalho, porque nesses a coisa já está definida, gostemos ou não...
Compartilho com vocês, leitores, algumas respostas que recebi. Lá vão elas:

  • Olhar a chuva cair;
  • Tomar banho de chuva;
  • Fazer bolinhos de chuva (¹);
  • Jogar bola na chuva (que coragem!);
  • Ficar em casa bordando;
  • Fazer pesquisas na Internet;
  • Ouvir música;
  • Ler um bom livro, tomando um chocolate quente (várias menções);
  • Assistir a um filme (também várias menções);
  • Aproveitar o tempo para organizar armários;
  • Convidar amigos para jogos de tabuleiro;
  • Fazer trabalhos manuais com as crianças;
  • Experimentar uma nova receita culinária.

Entendam bem: essas são sugestões das pessoas a quem consultei; não seriam, necessariamente, as minhas. Curioso é que não houve ninguém que falasse em dormir, mas eu sei que muita gente faz isso.
Suponho que Catão, o Censor, aquele exemplo acabado de austeridade romana pré-Império (²), não acharia graça nenhuma na maioria das ideias de meus amigos. Ao escrever De agri cultura, com instruções para futuros proprietários de terras, lembrou que o objetivo máximo de um fazendeiro devia ser o lucro e, por isso, era preciso aproveitar bem os dias chuvosos. Assim, nada de dar folga aos escravos: "Encontre alguma coisa para ser feita em lugar coberto em dias de chuva. Pode-se fazer limpeza, em lugar de haver ociosidade. Lembre-se de que enquanto o trabalho cessa, as despesas continuam." (³)

(1) A sugestão não veio acompanhada da receita, mas é facílimo encontrá-la na Internet.
(2) 234 - 149 a. C.
(3) CATÃO, Marco Pórcio. De agri cultura. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.



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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Muladeiros

Mula com sela, esboço feito por Thomas Ender (¹)

Toda atividade econômica tem, em paralelo, um conjunto de outras que lhe dão suporte e/ou que dela dependem. Não foi diferente com o transporte de cargas por tropas de muares, que predominou no Brasil até bem adiantado o Século XIX. Para dizer a verdade, em algumas regiões foi importante mesmo no Século XX.
Mulas (sobre)carregadas eram conduzidas por tropeiros; mas de onde vinham as mulas? Meus leitores, quero apresentar a vocês o muladeiro, que era, nem mais e nem menos, que o comerciante de mulas. Depois de adquirir animais em feiras, viajava longas distâncias, levando-os até seus potenciais compradores. Em Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais (²), Bernardo Guimarães assim descreve Eduardo, uma de suas personagens: "Era muladeiro; ia todos os anos à feira de Sorocaba ou Curitiba, a comprar bestas, que vendia pelas províncias de S. Paulo, Minas e Goiás."
Muladeiros exerciam uma atividade lucrativa (ao menos nos tempos áureos do tropeirismo), mas que tinha suas inconveniências. Fala ainda Bernardo Guimarães, na obra já citada: 
"A vida do muladeiro [...] é rude e trabalhosa; exige uma contínua vigilância, uma atividade incessante. O muladeiro quase não larga os arrieiros (³) senão para deitar-se e repousar algumas horas. Tanger manadas [sic] de milhares de mulas bravias através de imensos e inóspitos sertões por matas, cerradões e campinas abertas, rodeá-las, repontá-las e contá-las todos os dias de manhã e de tarde, além de outras muitas fadigas e cuidados inerentes a esse gênero de vida, é tarefa para acabrunhar as mais ativas e robustas organizações, e pouco ou nenhum tempo pode deixar para pensar em amores."
A implantação de ferrovias conduziu à gradual extinção do transporte mediante tropas de muares. Em resultado, não foram poucas as profissões que desapareceram, e, dentre elas, a de tropeiro e a de muladeiro. Toda mudança, por positiva que seja, traz consequências, nem sempre previsíveis e de fácil manejo.

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Publicado em 1872.
(3) Trabalhadores que cuidavam de muares.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Era perigoso trabalhar para um monarca absoluto na Antiguidade

Monarcas absolutos da Antiguidade, tratados como deuses ou representantes dos deuses, tinham à disposição numerosos servidores (¹), aos quais poderíamos, para usar a linguagem de nosso tempo, chamar de funcionários públicos. Entre essas figuras havia gente das mais diversas ocupações, incluindo cozinheiros e provadores de alimentos e bebidas, camareiros, médicos, adivinhos, integrantes da escolta e muitos outros. Em algumas culturas era usual que muitos desses funcionários fossem eunucos, e, como regra geral, a quantidade de servidores de um monarca era tanto maior quanto mais rico e poderoso fosse o território que ele controlava.

Neste relevo assírio o rei é retratado em companhia de um servidor que segura
uma espécie de sombrinha, destinada a proteger o monarca
dos raios escaldantes do sol (²)

Aparentemente, não era mau negócio trabalhar na corte de um rei. Muitos funcionários eram mimados e acumulavam privilégios, alguns chegavam a ser amigos pessoais do monarca reinante. Compreende-se, porém, que em tal ambiente houvesse um dilúvio de intrigas palacianas (literalmente!). Contudo, o favoritismo podia acabar em um instante, se o servidor cometesse algum deslize, por mínimo que fosse, ainda que se tratasse de falha não intencional. Falando mais estritamente, às vezes nem era preciso cometer um erro para cair em desgraça: bastava uma mudança de humor do mandatário. Reizinhos metidos a deuses não pestanejavam em ordenar a imediata execução de um ex-favorito, que tinha sorte se o monarca, zelando pela fama de magnânimo, se abstivesse de impor torturas que tornassem a morte lenta e absurdamente dolorosa. 
Talvez, a esta altura, alguns de meus leitores imaginem que estou exagerando. Vou dar um exemplo esclarecedor, para o qual chamo à ação Heródoto, o grego do Século V a.C., com suas Histórias, em que se conta sobre uma ocasião em que Dario, rei da Pérsia, ao descer do cavalo, torceu o tornozelo, a ponto de não poder andar. Que fazer? Segundo Heródoto, o rei "chamou de imediato os médicos que o serviam, vindos do Egito sob a consideração de que eram os melhores do mundo" (³). Todavia, o tratamento por eles aplicado em nada melhorou a situação do rei, que, sob fortes dores, sequer era capaz de dormir. Foi aí que, incidentalmente, entrou em cena um médico grego, Democedes de Crotona, que conseguiu devolver a saúde ao monarca, sendo, por isso, devidamente recompensado. Quanto aos médicos egípcios, só escaparam da morte por intervenção do colega grego: Dario havia decidido que seriam empalados.

(1) Afinal, eram deuses ou quase deuses, não é mesmo?
(2) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) HERÓDOTO. Histórias. 
O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Os indígenas do Brasil e o hábito dos banhos frequentes

Crianças indígenas não faziam birra na hora do banho. Habituadas, desde muito pequenas, ao prazer do mergulho na água de um rio, dispensavam qualquer ordem peremptória do pai ou da mãe para que se banhassem. Explicou o jesuíta Fernão Cardim, que percorreu parte considerável do Brasil na penúltima década do Século XVI:
"[Os indígenas], andando caminho, suados, se botam aos rios, os homens, mulheres e meninos, em se levantando se vão lavar e nadar aos rios, por mais frio que faça; as mulheres nadam e remam como homens, e quando parem algumas se vão lavar aos rios." (¹)
Outro que notou o gosto ameríndio pelos banhos foi Yves d'Évreux, capuchinho francês que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614. É dele este relato:
"Têm [os índios] muito cuidado na limpeza de seus corpos: lavam-se muitas vezes, e não se passa um só dia, em que não deitem muita água sobre si, em que se não esfreguem com as mãos por todos os lados para tirar o pó e outras imundícies." (²)
Por que os banhos frequentes dos indígenas surpreendiam colonizadores? Seria, talvez, porque, vindo de climas frios, não tinham o mesmo costume? Franceses que tentaram estabelecer uma colônia no Rio de Janeiro insistiram com as índias, inutilmente, para que usassem roupas. É que o vestir-se e despir-se, levando em conta os trajes europeus que lhes queriam impor, tomava tempo demais e era um desagradável empecilho à espontaneidade dos banhos. Jean de Léry, que viveu na França Antártica e, mais tarde, escreveu um livro (³), referiu que, para refrescar-se, ele e outros franceses que estavam no Brasil em 1557 haviam tomado banho no dia de Natal. A ideia era explicar a seus compatriotas que, no Hemisfério Sul, as estações eram inversas às do Hemisfério Norte. Portanto, em lugar de neve, havia o mais esplêndido sol em dezembro. Com o passar do tempo, europeus que vieram viver no Brasil e seus descendentes foram tomando gosto pelo que era, a princípio, um costume indígena, de modo que os banhos frequentes se tornaram um hábito também para a maioria dos brasileiros.

(1) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 41 e 42.
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, p. 96.
(3) Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil


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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Para que os romanos usavam marfim

Elefantes adultos têm presas muito desenvolvidas. Infelizmente para eles, essa característica tem resultado em perseguição e extermínio. Mesmo havendo muita pressão para que o emprego do marfim, independentemente da finalidade, seja banido por completo, o tráfico ilícito persiste e o cenário internacional favorece a suposição de que será difícil erradicá-lo.
Elefantes foram muito admirados na Antiguidade. Os romanos, por exemplo, que desde a guerra contra Pirro haviam aprendido a temer esses animais, chegaram também a usá-los em combate e, não satisfeitos, passaram a incluí-los nos espetáculos realizados para entretenimento de multidões de desocupados (¹). Todavia, há registro de que em 114 a.C. o Senado tentou impedir que animais africanos fossem trazidos à Itália, sob o temor de que escapassem e saíssem do controle, criando problemas de segurança para a população - na Antiguidade, essa era uma preocupação legítima. Um tribuno da plebe, porém, logo entrou em ação para que os espetáculos de crueldade, nos quais elefantes eram protagonistas e vítimas, não fossem prejudicados. Esse incidente foi assim descrito por Plínio (²), no Livro VIII de Naturalis historia: "Um senatus consultum vetou a entrada de feras africanas na Itália, porém Cneu Aufídio, sendo tribuno da plebe, obteve em assembleia popular que essa decisão fosse revogada, permitindo-se a importação para espetáculos circenses." (³)
Contudo, havia algo mais, quanto aos elefantes, que despertava grande interesse em Roma: era o marfim proveniente das presas. Foi também Plínio quem disse: "Presas de elefantes são vendidas a preço elevado, fornecendo um belíssimo material para imagens de deuses." (⁴)

Nesta gravura do Século XVI (⁵),  vê-se a tentativa de representar um elefante - que tal, leitores?

(1) Apenas uma dentre as muitas consequências da escravização em massa de inimigos derrotados em combate.
(2) 23 d.C. - 79 d.C.
(3) PLÍNIO. Naturalis historia, Livro VIII.
(4) Ibid. Os trechos de Naturalis historia citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Por que o padre Vieira não consentia que indígenas carregassem missionários em redes

Redes, se é que assim se pode dizer, eram um meio de transporte muito comum no Brasil Colonial: dois indivíduos fortes carregavam um terceiro que ia deitado ou sentado na rede, sendo esta apoiada nos ombros dos carregadores mediante uma longa vara, à qual eram presas as extremidades da rede. Já tratei deste assunto aqui no blog.
Figuras de destaque na administração colonial raramente punham os pés no chão. Dispunham de pessoas - escravos, quase sempre - que se encarregavam de sair carregando as ilustres personalidades para onde desejassem ir. Por sua vez, qualquer indivíduo que tivesse dois ou mais escravos fazia questão de ser carregado. Era indício de respeitabilidade e posição social. As cadeirinhas de arruar somente mais tarde chegaram ao Brasil. 
Sendo tão generalizado o costume, não surpreende que até religiosos se deixassem carregar em redes. Na Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica, escrita pelo padre Fernão Cardim (¹), somos informados de que Cristóvão de Gouvêa, visitador jesuíta que percorreu colégios e missões no Brasil entre 1583 e 1590, deixou-se carregar em rede por indígenas, provavelmente entendendo que, quando ameríndios faziam isto, demonstravam respeito e consideração:
"Quis o padre [Cristóvão de Gouvêa] ver as aldeias dos índios brevemente para ter alguma notícia delas: partimos para a aldeia do Espírito Santo, sete léguas da Bahia, com alguns trinta índios, que com seus arcos e flechas vieram para acompanhar o padre, e revezados de dois em dois o levaram numa rede, os mais companheiros íamos a cavalo [...]." (²)
Nem todos os religiosos tinham a mesma atitude. A crermos no que escreveu o padre Simão de Vasconcelos em Vida do Venerável Padre José de Anchieta, o missionário canarino (³), tão afeito às viagens com vistas à catequese, nunca aceitava ser conduzido em rede:
"Jamais nestas tão frequentes missões andou a cavalo, nem ainda em rede, costume do Brasil, sempre a pé, com seu bordão na mão, e, posto que começava os caminhos calçado, em passando lugares públicos de gente, se descalçava logo, e ia a pé descalço." (⁴)
Indígenas é que andavam descalços - teria Anchieta decidido viver como eles, para mais facilmente catequizá-los? Ou teria compreendido que, para viver no Brasil, era preciso adotar o estilo de vida dos "brasis" (⁵)? Talvez quisesse economizar os sapatos, tão dispendiosos nos primeiros tempos da colonização? É provável que tudo isso tivesse lá sua parte no costume de Anchieta.
Já no Século XVII, outro missionário jesuíta iria ainda mais longe ao lidar com o tal costume vigente entre colonizadores que se faziam transportar em redes. Falo do padre Antônio Vieira, que, além de notável pregador, foi um missionário dedicado e, nesse ofício, proibiu a todos os subordinados que aceitassem ser carregados pelos índios, a não ser no caso de que algum religioso estivesse muito doente. A exceção é facilmente explicável, uma vez que naquele tempo não havia ambulâncias, nem terrestres e muito menos aéreas. De acordo com o também jesuíta José de Moraes, em História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará (⁶), "estas missões [no Maranhão] pela maior parte as faziam os padres a pé, e com inexplicável trabalho, e posto que os índios, para os aliviarem do caminho, lhes ofereciam com as redes os ombros, como é costume naquelas terras, nunca quiseram aceitar a comodidade das jornadas à custa do suor dos índios [...]; porque era máxima do padre Vieira que o pastor é o que havia de carregar aos ombros as ovelhas, e não estas ao pastor, por cuja razão ordenou, e o mesmo praticava sempre consigo, que nenhum usasse de rede pelos caminhos, salvo se a necessidade ou enfermidade o pedisse". (⁷)
Entre a população em geral, o costume de se fazer carregar em uma rede desapareceu aos poucos, len-ta-men-te. Não obstante, no Século XIX ainda era possível encontrar redes para alugar no Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil. 

Homem de condição livre sendo transportado em rede por dois escravos,
de acordo com Debret (⁸)

(1) Fernão Cardim foi testemunha ocular dos acontecimentos que descreveu, por ter acompanhado o padre visitador em suas andanças pelo Brasil.
(2) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 13 e 14.
(3) Nascido nas Canárias em 1534, Anchieta veio ao Brasil em 1553, onde permaneceu até sua morte em 1597.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 183.
(5) Autores dos tempos coloniais referiam-se aos indígenas como "brasis".
(6) A primeira edição foi publicada em 1759, mesmo ano em que o autor foi deportado para o Reino, no contexto das restrições e posterior extinção da Companhia de Jesus. É fácil, portanto, compreender o tom de defesa das missões jesuíticas que perpassa toda a obra.
(7) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 393.
(8) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Como eram os arcos usados por meninos guaranis

A educação ministrada às crianças indígenas era essencialmente prática, conforme observaram aqueles que tiveram oportunidade de conviver com ameríndios nos primeiros tempos da colonização. Assim, desde cedo os pequenos eram estimulados a adquirir os saberes que garantiam a subsistência de sua comunidade e, nesse cenário, a imitação do que faziam homens e mulheres adultos era importante. Visto que a divisão sexual do trabalho era a regra, às meninas ensinava-se o preparo de alimentos, confecção de redes, cestaria, arte cerâmica e, se o grupo desenvolvia alguma atividade agrícola, deviam aprender também o cultivo de vegetais, já que eram geralmente as mulheres que faziam a maior parte desse trabalho. Aos meninos, por sua vez, estimulavam-se as virtudes guerreiras, incluindo a fabricação de armas e canoas, essenciais, essas últimas, para um deslocamento veloz em caso de guerra. Portanto, todo menino indígena deveria, tão logo tivesse idade para isso, aprender a empunhar um arco com destreza.
Entre os guaranis do Paraguai (que Félix de Azara pôde observar quando exercia o cargo de comandante da Comissão de Limites Espanhola entre 1789 e 1801), meninos que não tinham idade suficiente para a aprendizagem do uso de flechas exercitavam-se com um arco pequeno, dotado de uma rede, tendo bolas de argila endurecidas como projéteis, e isso para lástima entre os pássaros, conforme se lê em Viajes por la América del Sur:
"Os meninos, que se divertem com a caça de pássaros e pequenos animais, empregam outra espécie de arco (¹), mais fraco, de madeira mais flexível e elástica, mais fino e com cerca de três pés de comprimento. Eles ajustam as cordas, que se mantêm separadas paralelamente a menos de uma polegada de distância por meio de pequenas forquilhas de pau, através das quais passam as cordas. Pela metade de ditas cordas formam uma rede com fios, que serve para que se coloquem bolas de argila cozidas no fogo, do tamanho de uma noz, que fazem para essa finalidade." (²)
Não se pode negar o quanto o procedimento era engenhoso. Sigamos com a descrição de Azara, agora explicando como eram usadas as bolas de argila:
"Eles levam consigo uma bolsa cheia de ditas bolas; quando querem atirar, tomam quatro ou cinco com a mão esquerda, tendo o arco na mão direita, põem as bolas, umas depois das outras, na rede, e, em seguida, arqueando quanto podem, disparam juntos todas as bolas contra os pássaros que voam à distância de quarenta passos, e matam muitos (³), mas não fazem uso deste arco para atirar flechas nem para combater, ainda que uma de ditas bolas possa quebrar uma perna a 30 passos. [...]" (⁴)
Sem nenhuma cerimônia, Azara ainda ousou acrescentar esta observação horripilante: "Se os meninos da Europa aprendessem este exercício, não haveria tantos pardais." (⁵)

(1) Azara compara o arco usado pelos meninos àquele empregado por adultos.
(2) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 195.
Os trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Quem esperaria outra coisa?
(4) AZARA, Félix de. Op. cit. pp. 195 e 196.
(5) Ibid., p. 196.


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