Mostrando postagens com marcador Poder absoluto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Poder absoluto. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Era perigoso trabalhar para um monarca absoluto na Antiguidade

Monarcas absolutos da Antiguidade, tratados como deuses ou representantes dos deuses, tinham à disposição numerosos servidores (¹), aos quais poderíamos, para usar a linguagem de nosso tempo, chamar de funcionários públicos. Entre essas figuras havia gente das mais diversas ocupações, incluindo cozinheiros e provadores de alimentos e bebidas, camareiros, médicos, adivinhos, integrantes da escolta e muitos outros. Em algumas culturas era usual que muitos desses funcionários fossem eunucos, e, como regra geral, a quantidade de servidores de um monarca era tanto maior quanto mais rico e poderoso fosse o território que ele controlava.

Neste relevo assírio o rei é retratado em companhia de um servidor que segura
uma espécie de sombrinha, destinada a proteger o monarca
dos raios escaldantes do sol (²)

Aparentemente, não era mau negócio trabalhar na corte de um rei. Muitos funcionários eram mimados e acumulavam privilégios, alguns chegavam a ser amigos pessoais do monarca reinante. Compreende-se, porém, que em tal ambiente houvesse um dilúvio de intrigas palacianas (literalmente!). Contudo, o favoritismo podia acabar em um instante, se o servidor cometesse algum deslize, por mínimo que fosse, ainda que se tratasse de falha não intencional. Falando mais estritamente, às vezes nem era preciso cometer um erro para cair em desgraça: bastava uma mudança de humor do mandatário. Reizinhos metidos a deuses não pestanejavam em ordenar a imediata execução de um ex-favorito, que tinha sorte se o monarca, zelando pela fama de magnânimo, se abstivesse de impor torturas que tornassem a morte lenta e absurdamente dolorosa. 
Talvez, a esta altura, alguns de meus leitores imaginem que estou exagerando. Vou dar um exemplo esclarecedor, para o qual chamo à ação Heródoto, o grego do Século V a.C., com suas Histórias, em que se conta sobre uma ocasião em que Dario, rei da Pérsia, ao descer do cavalo, torceu o tornozelo, a ponto de não poder andar. Que fazer? Segundo Heródoto, o rei "chamou de imediato os médicos que o serviam, vindos do Egito sob a consideração de que eram os melhores do mundo" (³). Todavia, o tratamento por eles aplicado em nada melhorou a situação do rei, que, sob fortes dores, sequer era capaz de dormir. Foi aí que, incidentalmente, entrou em cena um médico grego, Democedes de Crotona, que conseguiu devolver a saúde ao monarca, sendo, por isso, devidamente recompensado. Quanto aos médicos egípcios, só escaparam da morte por intervenção do colega grego: Dario havia decidido que seriam empalados.

(1) Afinal, eram deuses ou quase deuses, não é mesmo?
(2) LAYARD, Austen Henry. The Monuments of Nineveh. London: John Murray, 1853. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) HERÓDOTO. Histórias. 
O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cambises - O que acontece quando um governante imagina que seu poder é ilimitado

Ciro, rei dos persas, é famoso por ter liderado a conquista da riquíssima Babilônia em 539 a.C., mas é também conhecido por ter adotado uma política mais suave, em relação aos povos dominados, do que a praticada habitualmente em seus dias. O sucessor de Ciro foi seu filho Cambises, e, se devemos dar crédito ao que disse Heródoto, não poderíamos, em relação a ele, usar o dito de que "tal pai, tal filho".
Na corte persa o cargo de copeiro era de alta responsabilidade - afinal, era esse funcionário que devia provar a bebida servida ao rei, assegurando, portanto, que não estava envenenada. Pois bem, segundo Heródoto, Cambises estava em um dia qualquer a conversar com seu copeiro, a quem, supostamente, muito estimava, quando teve a ideia de lhe perguntar qual era, no seu entender, a opinião que dele tinha o povo persa. Muito honestamente, o copeiro respondeu que o rei era bastante estimado pelo povo, a não ser por um pequeno detalhe, o de ser muito afeiçoado às bebidas alcoólicas.
Imaginem, leitores, qual foi a reação de Cambises. Agradeceu a observação e tratou de ser mais comedido? Nem pensem em tal coisa. Enfurecido com a resposta de seu oficial, resolveu provar que não estava de modo algum alcoolizado, fazendo uma demonstração convincente da mais perfeita sobriedade. Pegou seu arco e avisou que, se cravasse uma flecha no coração do jovem filho do copeiro que não estava longe dali, ficaria claro que a fama que dele circulava entre o povo persa era um equívoco. Se, no entanto, falhasse, seria a prova do acerto de seus críticos.
Não houve quem ousasse detê-lo. O rapaz, atingido, caiu ali mesmo. Para que ficasse fora de dúvida a precisão do tiro, Cambises ordenou que se abrisse o peito do cadáver, a fim de mostrar que a seta atravessara o coração, tudo isso diante do estarrecido pai-copeiro. Tamanho desatino (ainda de acordo com Heródoto) foi acompanhado de uma gargalhada e da observação de que, afinal, os persas jamais deveriam ter seu rei na conta de um bêbado. 
É óbvio, leitores, que não podemos ter certeza absoluta de que as coisas aconteceram assim mesmo, embora vários autores da Antiguidade refiram o episódio com pequenas variações. É possível, no entanto, que tenham se inspirado em Heródoto. Sabemos, porém, que atos de crueldade extrema não eram raros em monarcas da Antiguidade - não eram eles considerados deuses ou seus representantes? Não podiam, por consequência, fazer o que bem entendessem? 
Por outro lado, jamais deveríamos supor que atos de brutalidade por parte de detentores do poder eram fenômenos restritos à Antiguidade. Excessos estarão sempre à mão, onde quer que haja governantes reconhecidos como vitalícios (ou que assim se imaginam), munidos de poderes quase ilimitados, contando com o apoio de uma horda de bajuladores, cuja moralidade demasiado elástica é sempre pautada pela conveniência. 
Era assim no passado. Quem ousaria dizer que, nesse sentido, os tempos mudaram?


Veja também:

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Poder absoluto, crueldade sem limite

Muitos monarcas da Antiguidade governavam com autoridade ilimitada, mesmo quando havia algum tipo de conselho de anciãos ou senado que podia ser ouvido. Isso acontecia por várias razões, dentre as quais:

  • a) A maioria das monarquias estava associada às crenças religiosas do respectivo povo, de modo que o rei era visto como um representante dos deuses, às vezes como o mais importante dos sacerdotes, ou, eventualmente, como uma autêntica divindade em figura humana;
  • b) Politicamente, os reis podiam ser representantes de um determinado grupo da sociedade, que lhe garantia apoio e sustentava as decisões em troca de vantagens econômicas significativas (como ocorria, por exemplo, em relação à camada sacerdotal no Egito Antigo);
  • c) O exército de um determinado povo era, frequentemente, um sustentáculo importante para os monarcas, mantendo, pela força, a autoridade do governante, embora, em alguns casos, pudesse significar também a ruína de um rei ou imperador desagradável aos homens de armas (aconteceu uma porção de vezes no Império Romano);
  • d) Apesar de absolutos, os monarcas também se mantinham no poder quando adotavam medidas favoráveis aos interesses de uma parte considerável da população, e não apenas de uma determinada camada da sociedade - poucos iriam gastar o cérebro em questionar a falta de participação política se, economicamente, as coisas andassem muito bem.

Acontece que, não raro, os monarcas-quase-deuses eram (ou, se não eram, vinham a ser, com o passar do tempo), pessoas muito cruéis, até como resultado do poder ilimitado de que dispunham. Veremos apenas um exemplo, bastante útil para elucidar esse ponto. Veremos? Leitores, só prossigam se tiverem estômago. Mas, já que chegaram até aqui, é melhor seguir em frente.
Dario I, rei dos persas, estava, segundo conta Heródoto, ultimando os preparativos para uma guerra, quando foi procurado por um amigo, cujos três filhos estavam no exército. Pedia ao rei que ao menos um dos rapazes fosse dispensado, para que ele não ficasse sozinho em casa, ou para que não acontecesse, na eventualidade de que os três viessem a morrer em combate, ficasse ele sem sucessor. Dario, com mostras de compreensão, disse ao pai aflito que isso não seria problema, já que daria ordens imediatamente para que nenhum dos rapazes fosse à guerra. Aliviado, o amigo aparentava satisfação, quando veio a perceber que o rei cumpriu mesmo a promessa: os três jovens foram degolados, e, por consequência, nenhum deles teve de ir ao campo de batalha. 
Não podemos ter certeza de que as coisas de fato aconteceram assim, mas não há dúvida de que a naturalidade com que historiadores e/ou cronistas da Antiguidade relatavam cada ação cruel atesta que, afinal, decisões brutais por parte de monarcas eram coisa mais ou menos corriqueira, embora houvesse gente de "segundo escalão" que, para provar que também tinha poder, perpetrava, quando podia, grandes maldades. Sêneca, o filósofo e professor de Nero (que discípulo, não?), contava de um procônsul que, parecendo ter grande ideia de si mesmo, dizia que, em um só dia, teria feito executar nada menos que trezentas pessoas. 
O que acontecia quando um rei era modelo acabado de perversidade? O povo suspirava pelo dia de sua morte, intrigas palacianas às vezes redundavam em assassinato (perpetrado até por membros da própria família real) e, menos comum, o monstrinho em forma humana acabava deposto, aprisionado e/ou executado. Tudo isso apenas para ser, talvez, substituído por alguém ainda pior. É só lembrar de algumas sucessões na Roma Antiga.
O problema, já se vê, era a concentração de autoridade decisória nas mãos de uma só pessoa. Para sorte da maioria, um rei podia ser justo, generoso, preocupado com o bem-estar dos súditos, magnânimo na guerra e na paz. No pior dos cenários, podia ser um crápula ensandecido. Os leitores que conhecem um pouco de História não terão qualquer dificuldade em determinar de que lado pendia balança. O mundo teria que esperar até o Século XVIII para ver, nas ideias de Montesquieu, a estrutura formal de pensamento segundo a qual uma divisão de poderes era imprescindível para limitar a autoridade de quem exerce o mando e (se possível) evitar desmandos.


Veja também: