quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Poder absoluto, crueldade sem limite

Muitos monarcas da Antiguidade governavam com autoridade ilimitada, mesmo quando havia algum tipo de conselho de anciãos ou senado que podia ser ouvido. Isso acontecia por várias razões, dentre as quais:

  • a) A maioria das monarquias estava associada às crenças religiosas do respectivo povo, de modo que o rei era visto como um representante dos deuses, às vezes como o mais importante dos sacerdotes, ou, eventualmente, como uma autêntica divindade em figura humana;
  • b) Politicamente, os reis podiam ser representantes de um determinado grupo da sociedade, que lhe garantia apoio e sustentava as decisões em troca de vantagens econômicas significativas (como ocorria, por exemplo, em relação à camada sacerdotal no Egito Antigo);
  • c) O exército de um determinado povo era, frequentemente, um sustentáculo importante para os monarcas, mantendo, pela força, a autoridade do governante, embora, em alguns casos, pudesse significar também a ruína de um rei ou imperador desagradável aos homens de armas (aconteceu uma porção de vezes no Império Romano);
  • d) Apesar de absolutos, os monarcas também se mantinham no poder quando adotavam medidas favoráveis aos interesses de uma parte considerável da população, e não apenas de uma determinada camada da sociedade - poucos iriam gastar o cérebro em questionar a falta de participação política se, economicamente, as coisas andassem muito bem.

Acontece que, não raro, os monarcas-quase-deuses eram (ou, se não eram, vinham a ser, com o passar do tempo), pessoas muito cruéis, até como resultado do poder ilimitado de que dispunham. Veremos apenas um exemplo, bastante útil para elucidar esse ponto. Veremos? Leitores, só prossigam se tiverem estômago. Mas, já que chegaram até aqui, é melhor seguir em frente.
Dario I, rei dos persas, estava, segundo conta Heródoto, ultimando os preparativos para uma guerra, quando foi procurado por um amigo, cujos três filhos estavam no exército. Pedia ao rei que ao menos um dos rapazes fosse dispensado, para que ele não ficasse sozinho em casa, ou para que não acontecesse, na eventualidade de que os três viessem a morrer em combate, ficasse ele sem sucessor. Dario, com mostras de compreensão, disse ao pai aflito que isso não seria problema, já que daria ordens imediatamente para que nenhum dos rapazes fosse à guerra. Aliviado, o amigo aparentava satisfação, quando veio a perceber que o rei cumpriu mesmo a promessa: os três jovens foram degolados, e, por consequência, nenhum deles teve de ir ao campo de batalha. 
Não podemos ter certeza de que as coisas de fato aconteceram assim, mas não há dúvida de que a naturalidade com que historiadores e/ou cronistas da Antiguidade relatavam cada ação cruel atesta que, afinal, decisões brutais por parte de monarcas eram coisa mais ou menos corriqueira, embora houvesse gente de "segundo escalão" que, para provar que também tinha poder, perpetrava, quando podia, grandes maldades. Sêneca, o filósofo e professor de Nero (que discípulo, não?), contava de um procônsul que, parecendo ter grande ideia de si mesmo, dizia que, em um só dia, teria feito executar nada menos que trezentas pessoas. 
O que acontecia quando um rei era modelo acabado de perversidade? O povo suspirava pelo dia de sua morte, intrigas palacianas às vezes redundavam em assassinato (perpetrado até por membros da própria família real) e, menos comum, o monstrinho em forma humana acabava deposto, aprisionado e/ou executado. Tudo isso apenas para ser, talvez, substituído por alguém ainda pior. É só lembrar de algumas sucessões na Roma Antiga.
O problema, já se vê, era a concentração de autoridade decisória nas mãos de uma só pessoa. Para sorte da maioria, um rei podia ser justo, generoso, preocupado com o bem-estar dos súditos, magnânimo na guerra e na paz. No pior dos cenários, podia ser um crápula ensandecido. Os leitores que conhecem um pouco de História não terão qualquer dificuldade em determinar de que lado pendia balança. O mundo teria que esperar até o Século XVIII para ver, nas ideias de Montesquieu, a estrutura formal de pensamento segundo a qual uma divisão de poderes era imprescindível para limitar a autoridade de quem exerce o mando e (se possível) evitar desmandos.


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