sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O triunfo romano, desfile dos generais vencedores e seus exércitos

Na Roma Antiga o triunfo era a máxima homenagem concedida a um general vitorioso e suas tropas, que desfilavam com todos os objetos valiosos capturados ao inimigo derrotado. Não raro prisioneiros de guerra eram também arrastados diante dos vencedores, com a intenção de mostrar a força dos conquistadores, prevenindo rebeliões entre os povos dominados.
Tito Lívio (¹) assim descreveu o triunfo celebrado em honra de Lúcio Quíncio Cincinato, no ano 457 a.C.: "Os capitães do inimigo derrotado eram arrastados diante de sua carruagem; precediam-no as insígnias militares, vindo depois todo o exército carregando o botim de guerra." (²)
Representação de um triunfo romano (⁵)
Sem poupar palavras, o mesmo Tito Lívio narrou também a grandiosidade do triunfo celebrado em honra do cônsul Lúcio Emílio Paulo (³), que derrotou a Macedônia em 168 a.C., cujo rei era, então Perseu. O triunfo durou três dias, e foi assim descrito:
"Foi aquele triunfo, fosse pela grandeza do monarca vencido, pela beleza das estátuas ou pela quantidade de dinheiro conquistado, maior que nenhum outro, ultrapassando em magnificência todos os triunfos anteriormente realizados. No primeiro dia foram trazidas as estátuas conquistadas, carregadas em duzentas e cinquenta carruagens. O dia seguinte foi gasto em apresentar carruagens carregadas do que havia de mais belo e deslumbrante entre as armas macedônicas [...]. Em seguida, três mil homens transportavam setecentos e cinquenta vasos, repletos de prata amoedada [...]. Finalmente, no terceiro dia, o cortejo foi aberto pelos trombeteiros, seguidos por cento e vinte bois com chifres dourados e enfeitados com guirlandas. Vinha então o carro de Perseu, com suas armas e sua coroa, tendo atrás a multidão de prisioneiros, e em seguida os filhos do rei, acompanhados de seus professores. Depois dos filhos, vinha o próprio Perseu e sua mulher, atordoados por tanta desventura. Vinham depois quatrocentas coroas de ouro, mandadas como presente a Lúcio Emílio Paulo por quase todas as cidades da Grécia e da Ásia, como cumprimentos pela vitória. Por último, com grande majestade, tanto por seu aspecto digno como por ser idoso, vinha o próprio cônsul Lúcio Emílio sobre um carro triunfal. Seguiam-no homens ilustres, a cavalaria e as coortes pedestres, em sua respectiva ordem."(⁴)
Face a um revés em combate, a maioria dos inimigos de Roma recorria o suicídio, que na época era considerado uma saída honrosa. Se capturados vivos, os principais chefes políticos e militares vencidos eram, depois de devidamente acorrentados, submetidos à terrível humilhação de serem arrastados no cortejo do triunfo. Aliás, isso era apenas parte do processo de tortura, já que, ao cabo do trajeto, não era nada incomum que os inimigos fossem alvo das formas mais cruéis de execução. 
É desnecessário dizer que, como espetáculo público, os triunfos eram apreciadíssimos em Roma. Além disso, é possível afirmar que, sob o aspecto político, tinham um propósito duplamente terapêutico:
a) Internamente, levantavam o ânimo da população e funcionavam como instrumento para assegurar o apoio dos governados, tanto entre as camadas populares como entre o patriciado;
b) No plano externo, ajudavam a impor o medo entre os povos vizinhos, fossem eles aliados de Roma ou derrotados propensos a um levante.

(1) 59 a.C. - 17 d.C..
(2) Ab urbe condita libri. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Por haver derrotado a Macedônia, o cônsul Lúcio Emílio Paulo recebeu o apelido de "Macedônico".
(4) Pensem os leitores em que é que acabou o poderoso império do qual Filipe e seu filho Alexandre, o Grande, haviam sido expoentes.
(5) ROSSI, Filippo de. Ritratto di Roma Antica. Roma: Francesco Moneta, 1645, p. 192. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A criminalidade nas regiões auríferas do Brasil Colonial

As regiões mineradoras do Século XVIII atraíam multidões de aventureiros, vindos tanto do próprio Brasil como do Reino. Proibia-se a vinda de pessoas de outras nacionalidades, mas, como se sabe, ninguém iria ter o trabalho de proibir aquilo que jamais acontecia. Fato é que as povoações que surgiam de um dia para outro, sempre que se descobria ouro em um dado lugar, acabavam tendo uma população bastante heterogênea, com um único propósito em comum: enriquecer o mais rápido possível, e a qualquer preço. No mais, as divergências eram grandes, e os casos de crimes brutais estavam longe de escassear. As autoridades residiam a grande distância, e, quando finalmente compareciam, nem sempre tinham meios para impor "a lei e a ordem", isso sem falar que funcionários coloniais, como regra geral, quando mandados às minas, acabavam, de um ou de outro modo, indo procurar seus próprios meios (lícitos ou ilícitos) de acumular riqueza.
O que está dito valia para as minas, onde quer que elas estivessem. As Gerais são mais famosas e não há dúvida de que a Inconfidência de 1889 contribuiu para isso, ao menos no imaginário popular. Há muito mais escrito sobre elas do que sobre outras regiões. Assim, para demonstrar que desordens e arruaças não eram monopólio apenas das Gerais, veremos o que escreveu o militar português Luís d'Alincourt (¹) a respeito das minas de Goiás, ao relatar algumas peripécias de que tivera conhecimento::
"Uma mulher, ou para dizer melhor um monstro, teve ânimo de sufocar e sepultar nas suas lavras de Ouro Fino as duas filhas só por ser muito gabada a sua formosura; e esta mesma fúria matou o filhinho de uma sua escrava e o apresentou assado ao marido, por julgar que era dele; o descobridor do Pilar teve a ousadia de perturbar a ordem em uma procissão pública, disputando com o juiz ordinário a precedência do lugar, e fez o insulto de tirar-lhe a cabeleira e dar-lhe com ela no rosto, do que se seguiu ficarem as santas imagens abandonadas, e uma desordem formal entre os partidos dos dois, dando-se muitas cutiladas e havendo algumas mortes! O descobridor de São Félix morreu com as armas na mão fazendo resistência vigorosa à Justiça; o padre José Caetano Lobo Pereira, morador junto a Meia-Ponte, tinha a insolência de fazer despejar da sua vizinhança, por uma carta, as pessoas que lhe parecia, intimando-lhes pena de morte, e o mais é que era obedecido sem réplica; o padre Antônio de Oliveira Gago era um frenético assassino, e assim muitos outros. Eis aqui em grande parte a qualidade dos homens que fundaram os primeiros estabelecimentos naquela Província!" (²)
Verdade é que d'Alincourt escreveu quando tudo já era passado há bastante tempo, e é difícil estipular um limite entre os fatos autênticos e as fantasias populares; é porém improvável que ele houvesse simplesmente inventado essas coisas para entreter os leitores. Em suas andanças pelo interior do Brasil, deve ter ouvido da boca do povo estas e muitas outras histórias semelhantes, talvez pintadas com as cores do exagero, mas servindo muito bem, no fim das contas, para ilustrar qual era o clima que reinava entre os que faziam da busca desesperada pelo ouro a razão de ser da existência.

(1) Luís d'Alincourt veio ao Brasil em 1809, no rastro dos que acompanharam D. João e a família real em seu estabelecimento no Rio de Janeiro.
(2) ALINCOURT, Luís d'. Memória Sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Brasília: Ed. Senado Federal, 2006, p. 79.


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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A ordem era plantar mandioca

A mandioca, de acordo com a Cosmographie Universelle
de Thevet (¹)
A mandioca era fundamental na alimentação dos indígenas do Brasil. Os colonizadores portugueses logo aprenderam seu uso, bem como o elaborado processo que permitia a fabricação da farinha, da qual havia dois tipos, segundo explicação que, no Século XVI, escreveu Pero de Magalhães Gândavo em seu Tratado da Terra do Brasil:
"Há todavia farinha de duas maneiras: uma se chama de guerra, e outra fresca, a de guerra é muito seca, fazem-na desta maneira para durar muito e não se danar; a fresca é mais branda e tem mais substância; finalmente que não é tão áspera como a outra, mas não dura mais que dois, três dias; como passa daqui logo se dana." (²)
Sobre a farinha dita "de guerra", frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (³), observou:
"É chamada farinha de guerra, porque os índios a levam quando vão à guerra longe de suas casas, e os marinheiros fazem dela sua matalotagem daqui para o Reino."
No entanto, como cultura de subsistência que era, a mandioca estava longe de ser uma prioridade entre os agricultores dos tempos coloniais. Mais interessante (e lucrativo) era plantar cana, destinada à fabricação de açúcar. Por isso, não chega a ser surpreendente que, às vezes, acontecesse faltar comida na Bahia. Para sanar esse problema tão sério, em 10 de novembro de 1690 o almotacel-mor, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, fez passar bando pelo qual ficavam os moradores de Salvador (então "Cidade da Bahia"), até a uma distância de dez léguas, obrigados a plantar, cada um, quinhentas covas de mandioca. Desobedientes seriam multados em cem mil réis. 
Ainda assim, não foram poucos os autores que, posteriormente, continuaram a falar da falta de farinha de mandioca decorrente da absoluta prioridade outorgada ao cultivo de cana-de-açúcar.
Os muito ricos, quando torciam o nariz para alimentos elaborados com mandioca, tinham a alternativa dos artigos que vinham de Portugal e que, por isso mesmo, eram caríssimos. Na Informação da Província do Brasil Para Nosso Padre (⁴), datada de 1585 e atribuída a José de Anchieta, lê-se que "alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal [...], e de Portugal também lhes vem vinho, azeite, vinagre, azeitonas, queijo, conserva e outras coisas de comer" (⁵). Isso, no entanto, já sabem os leitores, não era para qualquer um, de modo que a maior parte dos colonizadores tinha que sobreviver com os produtos da terra, coisa que devia ser a mais óbvia e natural deste mundo, se levarmos em conta as excelentes condições de cultivo e a extensão territorial dos domínios lusitanos na América.

(1) THEVET, André. Cosmographie Universelle vol. 2. Paris: Guillaume Chaudiere, 1575. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 59.
(3) O manuscrito é de c. 1627.
(4) O padre-geral dos jesuítas em 1585 era o italiano Claudio Acquaviva.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 428.


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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Trezentas bestas muares puxavam os ônibus na capital do Império

Ônibus, no Século XIX - todo mundo sabe - rodavam apenas com tração animal. Veículos automotores ainda estavam no futuro. De acordo com o Almanaque Laemmert de 1852, a Companhia dos Ônibus que atuava na área de transporte público coletivo no Rio de Janeiro começou a operar em 1º de julho de 1838. No Império do Brasil, era ainda o Período Regencial, uma época de muita agitação política. A mesma edição do Almanaque trazia outras informações sobre a Companhia dos Ônibus:
"Fabrica todo o seu trem em oficinas próprias montadas dentro do estabelecimento.
Emprega nas linhas atuais 10 carros de diversas lotações, e tem em reserva outros tantos.
Tem cerca de 300 bestas muares para o serviço." (*)
Esses ônibus circularam por algum tempo na capital do Império, mas gradualmente foram saindo de cena. Machado de Assis, escrevendo na edição comemorativa dos dezoito anos da Gazeta de Notícias (6 de agosto de 1893), observou que, pela época em que se havia começado a publicação do jornal, havia ainda diligências e ônibus puxados por muares percorrendo as ruas do Rio:
"Tínhamos diligências e ônibus; mas eram poucos, com poucos lugares, creio que oito ou dez, e poucas viagens. Um dos lugares era eliminado para o público. Ia nele o recebedor, homem encarregado de receber o preço das passagens e abrir a portinhola para dar entrada ou saída aos passageiros. Um cordel, vindo pelo tejadilho, punha em comunicação o cocheiro e o recebedor; este puxava, aquele parava ou andava."
É também dos escritos de Machado que podemos inferir alguma coisa a respeito da condição social dos condutores de ônibus. No conto "A Segunda Vida", encontramos este trechinho:
"A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer?"
Mas é na boca de uma de suas principais personagens, o Bentinho de Dom Casmurro, que melhor percebemos que era bem longe do topo da sociedade que podiam ser localizados os trabalhadores encarregados de dirigir os muares que faziam andar os ônibus:
"[...] Mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim."
Até cocheiro de ônibus!... Por certo não ocorria ao rapazinho uma profissão menos interessante. 
A introdução dos bondes acabou por suprimir o uso dos ônibus com tração animal. Machado escreveria na edição de 11 de outubro de 1896 da Gazeta de Notícias"Ônibus e diligências foram aposentados nas cocheiras e vendidos para o fogo."

(*) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, p. 291.


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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Tempestade em Piratininga

Para os jesuítas que iniciaram a catequese no Brasil em meados do Século XVI quase tudo o que encontravam era novidade, desde o modo de vida da população indígena que pretendiam doutrinar às características naturais da América do Sul, com suas matas de árvores gigantescas cobrindo serras que pareciam intransponíveis. Sabemos, por exemplo, que as tempestades, no mar ou em terra, deixavam os missionários apavorados. 
Um relato de maio de 1560, incluído em uma carta escrita por José de Anchieta ao padre-geral (¹) dos jesuítas, conta de uma tormenta que abalou Piratininga, ou seja, São Paulo, causando estragos notáveis:
"Não há muitos dias, estando nós em Piratininga, começou, depois do pôr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se o céu, a amiudarem-se os relâmpagos e trovões, levantando-se então vento sul a envolver pouco a pouco a terra, até que [...] caiu com tanta violência que parecia ameaçar-nos o Senhor com a destruição: abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas; a árvores de colossal altura arrancou pelas raízes, partiu pelo meio outras menores, despedaçou outras, de tal maneira que ficaram obstruídas as estradas, e nenhuma passagem havia pelos bosques; era para admirar quantos estragos de árvores e casas produziu no espaço de meia hora (pois não durou mais do que isso), e, na verdade, se o Senhor não tivesse abreviado aquele tempo, nada poderia resistir a tamanha violência e tudo cairia por terra." (²)
Ora, temos aqui um Anchieta verdadeiramente loquaz na descrição da tempestade, tão diferente do escritor comedido que usava ser, até por escassez de papel... É que a tormenta deve ter causado nele uma terrível impressão. Talvez hoje alguém dissesse que correspondeu à chegada de uma frente fria, mas, independente da causa, será útil recordar que, na pequenina São Paulo daqueles dias, as construções ocupadas pelos jesuítas e outros colonizadores eram deveras precárias, daí porque o estrago deve ter resultado ainda maior. Outro ponto a observar é que, como religioso, Anchieta, ao que parece, fez em sua carta uma discreta referência a uma passagem do Evangelho Segundo S. Mateus, relacionada ao que se costuma chamar de "fim do mundo": "et nisi breviati fuissent dies illis non fieret salva omnis caro sed propter electos breviabuntur dies illi..." (³) A chuva e a ventania devem ter sido brutais!...
Todavia, o mais interessante do registro de Anchieta, como ele próprio reconheceu, ainda estava à frente:
"O que, porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admiração, é que os índios, que nessa ocasião se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), não se aterraram com tanta confusão de coisas, nem deixaram de dançar e beber, como se tudo estivesse em completa tranquilidade." (⁴)
Podemos supor que os indígenas, plenamente habituados às súbitas mudanças de humor das condições climáticas, julgaram melhor continuar a festança, até porque de nada valeria a muita preocupação. Nem todo o terror que viessem a expressar seria de alguma utilidade para amainar a fúria das intempéries.

(1) Na ocasião, o padre Diego Laynez.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, pp. 104 e 105.
(3) Mt 24, 22: "Se aqueles dias não fossem abreviados, ninguém se salvaria, mas foram abreviados por causa dos eleitos."
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J.  Op. cit., p. 105.


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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como eram examinados os escravos vendidos no mercado do Valongo

Em uma imagem de M. Rugendas, o desembarque de escravos no porto do Rio de Janeiro (¹)

Um dos aspectos mais grotescos da escravidão estava relacionado ao modo como eram tratados os escravizados, que, trazidos da África, chegavam ao Brasil e eram logo apresentados aos potenciais compradores. Infelizmente, para muitos brasileiros acostumados ao espetáculo diário da escravidão, a existência de um lugar em que seres humanos eram comprados e vendidos parecia uma coisa absolutamente normal, daí ser muito útil verificar o que é que pensava um estrangeiro ao observar o mercado de escravos do Valongo (²).
Temos um depoimento interessante, registrado por C. Schlichthorst, militar alemão contratado, pouco depois da Independência, como oficial para o 2º Batalhão de Granadeiros. Esse homem permaneceu pouco tempo no Brasil, mas foi o suficiente para que, pelo menos em assuntos relacionados à escravidão, tivesse uma visão bastante abrangente quanto ao que ocorria na capital do Império. Como poderia ser diferente, se os cativos estavam por toda parte, se ninguém parecia constrangido em ostentar o título de "senhor de escravos", se, afinal, os grandes do Império eram considerados tanto mais poderosos quanto maior o número de escravizados que tinham à disposição?
Mas vamos ao que Schlichthorst escreveu sobre o desembarque de africanos:
"Ao chegar ao porto, dá-se a cada escravo do sexo masculino ou feminino, um pano azul e um barrete vermelho, pois viajaram em trajes do Paraíso. Com essas tangas e barretes, veem-se longas filas de negros levados como rebanhos de ovelhas para os armazéns dos traficantes, onde as transações continuamente se realizam, feitas com a mesma cautela com que na Alemanha se compra um cavalo." (³)
Nesses armazéns cada escravo era examinado, ou pelos futuros senhores, ou por seus representantes comerciais encarregados de negócios na Corte:
"Verificam-se, para começar, mãos e pés. Mandam-se fazer vários movimentos, para ver que não têm defeitos. Examinam-se os dentes e o tórax. Afinal, levam-no repentinamente do escuro para a claridade, a fim de provar a sua vista. Não será preciso dizer que esse exame não é feito com muita delicadeza nas escravas. [...]." (⁴)
Imagino que os leitores estejam entre constrangidos e horrorizados. Schlichthorst ainda acrescentou:
"Numa palavra, este comércio de carne humana equivale ao comércio europeu de cavalos." (⁵)
C. Schlichthorst deixou, porém, de fazer uma observação que seria de todo pertinente: se é fato que o tráfico de africanos só existia porque havia gente interessada em comprar escravizados, é igualmente verdade que, desde os primórdios da colonização, o maldito comércio de seres humanos era feito por europeus, e de diversas nacionalidades. Não era coisa que envolvesse apenas os habitantes das jovens colônias do continente americano. Era, por assim dizer, um drama quase mundial.

(1) O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) No Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 137.
(4) Ibid.
(5) Ibid., p. 138.


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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Combate singular

Uma batalha, na Antiguidade, podia resultar em horrorosa carnificina. Políbio de Megalópolis, descrevendo a luta entre cartagineses e romanos em Zama (¹), observou que "o campo entre os exércitos ficou coberto de sangue, mortos e feridos, trazendo a Cipião (²) um grande problema, uma vez que os cadáveres, os feridos que se revolviam no próprio sangue e a confusão de armamentos dispersos tornavam a passagem quase intransponível às tropas que, em formação, aguardavam sua vez de entrar em combate." (³)
Muito bem, leitores, recuperem o fôlego, e vamos adiante. Às vezes acontecia que, em lugar de dois exércitos se enfrentarem com muitas perdas, cada um elegia seu campeão e estes dois heróis lutavam até que um vencesse, sendo o resultado válido (esperava-se) como se toda a tropa entrasse em ação. A essa luta entre dois soldados que representavam seus respectivos exércitos dá-se o nome de combate singular.
Além da possibilidade de evitar uma matança generalizada, havia outras razões que podiam levar à opção pelo combate singular. Na Antiguidade era comum que os exércitos inimigos acampassem um à vista do outro, mantendo, porém,  uma certa distância, e assim permanecessem durante algum tempo, aguardando a hora oportuna para o ataque. Todavia, uma longa espera, podia ser de todo inconveniente, pois:
  • Era, quase sempre, enervante para os soldados;
  • Aumentava a demanda por suprimentos (alimentos e água, principalmente), para os homens e para os animais;
  • Ampliava a possibilidade de que, durante a espera, sucedesse algum imprevisto, talvez uma doença entre os soldados ou uma súbita mudança nas condições climáticas, como uma chuva forte ou uma nevasca, acarretando uma alteração completa no cenário da guerra;
  • Dava tempo ao inimigo para solicitar e receber reforços.
Tudo isso, em conjunto, podia incitar à ideia de um combate singular, quando o enfrentamento tradicional não parecia muito sábio. Acrescentemos, ainda, um certo gosto por feitos heroicos - chamem de provocação, se quiserem - e teremos a explicação para que dois valentões se engalfinhassem à vista da soldadesca que, neste caso, devia ter uma atuação parecida à das modernas hordas de torcedores nos estádios de futebol.
Vejamos agora um exemplo bastante esclarecedor. Foi no ano 394 da fundação de Roma, ou 359 a.C., quando romanos e gauleses se enfrentavam. Um gaulês muito alto e forte apareceu e, nas palavras de Tito Lívio (⁴), propôs:
"Que venha o homem mais forte que há em Roma para que lute comigo, e aquele de nós que vencer, seja a sua gente a melhor na guerra."
Se o desafio parecer razoável, será útil recordar que os gauleses tinham por costume zombar dos romanos, a quem consideravam baixinhos (⁵). O que ocorreu em seguida foi assim descrito por Tito Lívio:
"Houve um longo silêncio entre a juventude romana, envergonhada de fugir ao combate, e, ao mesmo tempo, com receio da exposição a tamanho perigo." (⁶)
Afinal, Tito Mânlio, depois conhecido como Torquato, compareceu diante de seu comandante e, obtida a permissão, aceitou o desafio do fortão gaulês. Tomaram-se disposições para que a luta ocorresse com toda a lisura, o que incluía, por suposto, a escolha de um lugar que não favorecesse a nenhum dos dois. A um sinal, o combate começou e, se devemos crer no que disse Tito Lívio, não durou muito, já que o jovem Tito Mânlio, depois de dois golpes certeiros, jogou o gaulês ao chão - morto.
Nessas circunstâncias, o resultado do combate singular podia simplesmente ser acatado conforme o acordo, mas não era incomum que o exército ao qual pertencia o vencedor, tomado de brio, atacasse os oponentes na intenção de pô-los em fuga. No caso específico de que tratamos, a informação de Tito Lívio (⁷) é de que foram os gauleses que deram no pé: "Os gauleses, na noite seguinte, estando com muito medo, abandonaram os acampamentos e se foram." 
Pensem, leitores, como seria interessante se os gauleses tivessem registrado, também, a sua versão dos fatos, de modo que fosse possível confrontar os pontos de vista! 

(1) Em 202 a.C.; último combate da Segunda Guerra Púnica.
(2) Comandante romano.
(3) Políbio de Megalóplis, História.
(4) Ab urbe condita libri.
(5) Pelo menos foi isso que afirmou, em tempos posteriores, ninguém menos que Júlio César (em De Bello Gallico), que, ressalte-se, de tanto lutar contra eles, conhecia os gauleses muito bem.
(6) Ab urbe condita libri.
(7) Os trechos de Políbio (História) e de de Tito Lívio (Ab urbe condita libri) citados nesta postagem são tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A colheita do café

A transição do trabalho escravo para o emprego de mão de obra livre não foi acompanhada por grandes inovações técnicas


A colheita do café, que era o principal produto brasileiro de exportação na segunda metade do Século XIX, constituía-se em processo muito simples: os pequenos frutos maduros eram recolhidos manualmente. Elizabeth Cary Agassiz assim descreveu o que pôde observar quando esteve no Brasil em 1865: 
"Era a época da colheita e o espetáculo que tínhamos diante dos olhos era verdadeiramente pitoresco. Os pretos (¹), homens e mulheres, estavam espalhados pela plantação, trazendo às costas, amarrados às suas roupas, uma espécie de cesto feito de caniços ou de bambus. Dentro dele é que amontoam os grãos de café, uns vermelhos e brilhantes como cerejas frescas, outros já escuros e meio ressequidos, e, de quando em vez, alguns ainda verdes, não de todo maduros, mas não devendo tardar a amadurecer sobre o solo abrasado do terreiro. Pretinhos pequenos, sentados na terra ao pé dos arbustos, ajuntam as cerejas [sic] caídas, cantando um estribilho monótono que tem sua harmonia e seu encanto; um deles faz o canto e os outros o acompanham." (²)
A gradual introdução de mão de obra livre na lavoura cafeeira não veio acompanhada de nenhuma mudança significativa imediata nas técnicas de cultivo e colheita do café, observação que, aliás, pode ser estendida a algumas décadas do Século XX. Lembro-me de haver conversado há alguns anos com idosos que, quando meninos, acompanhavam seus pais, colonos europeus, no trabalho de colher o café, e todos eles foram enfáticos em afirmar que recolhiam os frutinhos que caíam ao chão, exatamente como Elizabeth Cary Agassiz declarou ter observado que crianças escravas faziam. 
A fotografia abaixo, de uma publicação datada de 1889 (³), mostra trabalhadores livres de origem europeia colhendo café em uma fazenda, na então Província de São Paulo. Os leitores, com uma simples observação, irão constatar por si mesmos a rusticidade do processo.

Colheita do café por colonos europeus (³)

(1)  Elizabeth Cary Agassiz usava os termos "escravos" e "pretos" como sinônimos; isso soa absurdo atualmente, mas era muito comum entre autores do Século XIX.
(2) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. 
Brasília: Senado Federal, 2000, p. 131.
(3) ______________ Album de Vues du Brésil. Paris: A. Lahure, 1889. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Fila no confessionário

A seguinte anedota apareceu no nº 1, volume 5, da Bibliotheca Familiar e Recreativa, publicada em Lisboa no ano de 1836:
"Um certo cura disse um domingo aos seus fregueses: 
- Irmãos, daqui em diante, para evitar confusões, eu confessarei pela ordem seguinte: segunda-feira, os mentirosos; terça, os avarentos; quarta, os maldizentes; quinta, os ladrões; sexta, os libertinos; sábado, as mulheres de vida escandalosa.
Será talvez escusado acrescentar que o cura nunca mais teve o trabalho de confessar pessoa alguma, que é o que ele queria." (¹)
Ora, meus leitores, se o padre Belchior de Pontes, jesuíta que viveu no Brasil do Século XVII e começo do XVIII, tivesse, em seu tempo, conhecimento desse expediente, talvez até lhe fosse muito útil. Querem saber por quê?
O também jesuíta Manoel da Fonseca, que ainda no Século XVIII publicou uma biografia do padre Pontes, escreveu:
"E se alguma vez, ouvindo confissões na nossa igreja [...], via contenderem entre si, como costumam as mulheres [sic], para terem a fortuna de serem as primeiras que chegassem a confessar-se, procurava sossegá-las, prometendo que a todas havia de ouvir, e para que a brevidade do tempo não fizesse menos verdadeira a promessa, e nos deixasse este grande exemplo de sua obediência, acrescentava, que se não obstasse a obediência, deixaria de ir ao refeitório para ter mais tempo de ouvi-las." (²)
Não venha algum leitor perguntar por que é que as tais senhoras tinham tamanha obsessão por ir ao confessionário. Nenhuma delas sobreviveu até hoje para dar explicações. Ninguém pergunte, tampouco, como tinha o padre tanta paciência. Supondo, porém, verídico o relato, não se pode negar que o padre Belchior de Pontes cuidava de seus deveres com muita seriedade.

(1) _________ Bibliotheca Familiar e Recreativa nº 1, vol. 5. Lisboa: Imprensa Nevesiana, 1836, p. 228.
(2) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 48. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.


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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Condições para o sucesso de um minerador no Brasil Colonial

Quantos escravos um minerador precisava ter


Quase tudo o que se fazia no Brasil Colonial pressupunha o emprego de mão de obra escrava, quer de indígenas, quer de africanos ou seus descendentes. Foi assim nas plantações de cana, nos engenhos em que açúcar e aguardente eram fabricados, foi assim nas áreas de cultivo de tabaco, e foi também na mineração.
Vários autores dos Séculos XVII e XVIII foram enfáticos em dizer que, sem escravos, era impossível que um colonizador obtivesse sucesso em seus empreendimentos. A imagem mais forte desse pressuposto talvez seja mesmo a que usou Antonil, ao afirmar que os escravos eram "as mãos e os pés de um senhor de engenho". No pensamento então corrente, nada podia ser feito sem o trabalho de cativos.
A descoberta de ouro nas Gerais, em Goiás e no Cuiabá não alterou em nada a mentalidade escravista reinante. Muitos dos primeiros descobridores nada sabiam a respeito de técnicas de extração aurífera, e se não fossem os escravos, que traziam da África alguma experiência no ramo, seria quase impossível aos sertanistas arrancar da terra o cobiçado metal. A questão é: quantos escravos um minerador precisava ter?
De acordo com José Vieira Couto (que foi intendente no Distrito Diamantino), a providência inicial de qualquer minerador era ter entre cinquenta e cem cativos efetivamente trabalhando:
"Este mineiro empenha-se primeiramente em levantar uma fábrica de cinquenta ou cem escravos, porquanto com menos disso pouca coisa faz." (¹)
Vejam os leitores, portanto, que era necessário um capital nada desprezível para dar início a um empreendimento minerador, visto que, nas minas, um escravo jovem e saudável era vendido por preço exorbitante. O problema é que, devido à insalubridade do trabalho, a expectativa de vida de um escravo era baixa, e o minerador precisava, constantemente, repor trabalhadores para o lugar dos que morriam. Escreveu o já citado Vieira Couto:
"[...] Um mineiro, que tem cem negros (²), no fim de dez anos não os reformando não terá senão cinquenta, ou pouco mais, perdendo anos por outros um em cada vintena, e às vezes em cada quinzena; e os outros cinquenta, que lhe restam, estão com menos de uma sexta parte de vida [sic] [...]." (³)

A vida nas minas para homens livres e para escravos


Mineração no Brasil Colonial (⁴)

Estudos têm demonstrado que a condição de vida dos escravos nos engenhos açucareiros era lamentável, enquanto que nas minas, a despeito do trabalho duríssimo, um cativo podia viver melhor, sempre com a esperança da alforria, na hipótese de encontrar uma grande quantidade de metal precioso e ser, por isso, libertado pelo senhor. Era possível, aos domingos e feriados, faiscar ouro em áreas de baixo rendimento, e há relatos de escravos que, dessa forma, acabaram juntando o necessário para a compra da liberdade.  
Por seu turno, a vida dos mineradores nem sempre era das mais promissoras, e muita gente, na febre de enriquecer do dia para a noite, acabava investindo o que tinha, para perder tudo logo em seguida. Como já visto, era preciso gastar com a compra de escravos, além de ferramentas e outros equipamentos que, por mais rústicos que fossem, tinham seu preço; era preciso também contratar trabalhadores livres especializados - Vieira Couto menciona ferreiros, carpinteiros, carreiros e pedreiros - o que significava, por suposto, pagar salários, independente da quantidade de ouro que se extraía. Era preciso alimentar os escravos, e, nas minas, o preço dos alimentos chegava às nuvens, já que tudo vinha de longe.  Finalmente, havia os "Reais Quintos", impostos que deviam ser pagos à Coroa. Vê-se, pois, que para um minerador ter sucesso, devia fazer um investimento elevado, cujo retorno, em grande parte, dependia da boa sorte para encontrar muito mineral precioso, e isso, como se sabe, era para poucos.

(1) COUTO, José Vieira. Memória Sobre as Minas da Capitania de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1842, p. 24.
(2) Notem os leitores que José Vieira Couto empregava a palavra "negros" como sinônimo de escravos...
(3) COUTO, José Vieira. Op. cit., p. 24
(4) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A tragédia de um minerador paulista que foi procurar ouro em Cuiabá

Nos tempos coloniais, a procura de ouro no interior do Brasil era muito arriscada


Monumento ao minerador desconhecido em
Cristalina - GO (fotografia infravermelha)
Os leitores bem sabem o que é que movia muitos paulistas à ida aos sertões desconhecidos nos tempos coloniais: era a fome desesperada por enriquecimento (rápido, de preferência), quer através do apresamento de indígenas para escravização, quer mediante a descoberta de jazidas auríferas. No primeiro caso, os escravizados eram usados, alguns, em terras dos próprios apresadores, enquanto outros eram vendidos para quem queria cativos para o trabalho. Ter muitos escravos significava aumentar as áreas de cultivo, produzir mais e, por conseguinte, ampliar as possibilidades de ganho.
Nada disso, porém, se comparava à riqueza com que a sorte na procura do ouro favorecia alguns felizardos. Fazia-se fortuna em brevíssimo tempo. Poucos, porém, é que alcançavam a sonhada prosperidade. A maioria tinha rendimentos modestos, até porque, nas minas, o custo de vida era absurdo. Literalmente, tudo se comprava a peso de ouro. 
Não foram poucas as pessoas que, mesmo desfrutando em São Paulo de uma posição econômica satisfatória, resolveram arriscar o patrimônio na procura de metais preciosos. Queriam ter mais, muito mais, e acabavam perdendo quase tudo o que tinham. Um desses casos, registrado na Nobiliarchia Paulistana, é o do sargento-mor João Carvalho da Silva, Devia ser um sujeito respeitado em São Paulo, já que, sobre ele, Pedro Taques refere: "ocupou os cargos da sua República (¹), foi sargento-mor do terço de auxiliares, teve as estimações que soube conseguir a sua docilidade e a graduação do seu distinto nascimento. Possuiu os bens da fortuna, sem inveja aos opulentos do seu tempo [...]."
Ao ouvir dizer que em Cuiabá havia muito ouro, deu-lhe na cabeça investir tudo o que tinha para ficar ainda mais rico. Meteu-se em uma das monções e lá se foi, Tietê afora, e outros rios mais, com todos os escravos de que dispunha, supondo que tudo lhe sairia muito bem. 
Mas não foi assim.
A desdita começou ainda antes da chegada às minas, quando canoas com suprimentos foram perdidas nas terríveis cachoeiras que havia na viagem. Conta Pedro Taques:
"[...] Nesta jornada, a mais arriscada pelo precipício das grandes cachoeiras que há nos rios desta navegação, voltou-se a roda a que chamamos da fortuna, e emborcando-se-lhe algumas canoas da sua conduta, lamentou antes de chegar às minas, castigada a resolução que tomara de deixar o estabelecimento da pátria [sic] para passar às minas ainda não estabelecidas no ano de 1721. O golpe foi grande por ser muito avultado o prejuízo."
Não cessaram aí as desgraças. João Carvalho da Silva e os escravos chegaram a Cuiabá em ocasião na qual grassavam as doenças, e não demorou para que muitos dos seus cativos acabassem morrendo. Segue a Nobiliarchia Paulistana:
"[...] Perdeu quase todos os escravos e se impossibilitou para, com o serviço deles, lucrosos tesouros que o conduziram àqueles sertões à custa de tão excessiva despesa, riscos de vida e tolerância das incomodidades, além da contingência dos assaltos dos bárbaros gentios de diversas nações, a cujas forças têm perecido tantas vidas [...]."
Era essa, leitores, a dura realidade das monções cuiabanas, para a maioria dos que nelas se aventuravam. A Pedro Taques ainda ocorreu mencionar que o triste herói dessa história era já viúvo quando se pôs a procurar ouro e que não tinha filhos que pudessem lamentar a herança malbaratada. Acertou, ainda na Antiguidade, o sábio rei dos hebreus, ao considerar que proveito havia na vida daquele que, não tendo descendência, gastava tempo e energia em fadigas para acumular bens: "vanitas est et adflictio pessima..." (²)

(1) Era assim que Pedro Taques de Almeida Paes Leme, em sua Nobiliarchia Paulistana, nomeava a administração pública da cidade de São Paulo.
(2) Ecclesiastes 4, 7-8.


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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Quantas embarcações um engenho colonial devia ter

Não bastava a um engenho colonial produzir açúcar de boa qualidade. Para que o senhor de engenho pudesse comemorar os lucros, era preciso que a mercadoria, acondicionada em caixas de madeira, fosse vendida e levada ao porto, de onde, em navios, partiria para a Europa. 
No Brasil colonial quase não havia estradas. No melhor dos casos, havia caminhos cheios de buracos ou, em época de chuvas intensas, cheios de lama. Por causa disso, considerava-se que o melhor lugar para a instalação de um engenho era bem perto do mar, se possível; não sendo assim, devia, ao menos, não estar longe de um rio que possibilitasse acesso ao Atlântico. Em carros de bois, as caixas de açúcar eram levadas a um pequeno cais ou à margem do rio e, em embarcações apropriadas, conduzidas, então, ao porto que recebia navios capazes de cruzar o oceano.
Sendo assim, quantas embarcações um engenho deveria ter, a fim de garantir a remessa, sem atrasos, do açúcar produzido? Na segunda metade do Século XVI, de acordo com Gabriel Soares (ele próprio um senhor de engenho), deviam ser quatro, no mínimo:
"E são tantas as embarcações na Bahia, porque se servem todas as fazendas por mar;  e não há pessoa que não tenha seu barco ou canoa pelo menos, e não há engenho que não tenha de quatro embarcações para cima; e ainda com elas não são bem servidos." (*)
Esse era o padrão no Século XVI, mas é presumível que posteriormente os engenhos, com mais trabalhadores cativos e maiores áreas de cultivo, e, portanto, com maior produção, passassem a necessitar de mais embarcações. 
Bahia e Pernambuco, em fins do Século XVI e primeira metade do Século XVII, eram os maiores produtores de açúcar, ainda que os empreendimentos açucareiros fossem também significativos no Espírito Santo e no Rio de Janeiro. Sempre em áreas litorâneas, já se nota, uma vez que o foco de quase toda a produção de açúcar estava na exportação; a fabricação de aguardente de cana, ainda que em parte destinada ao consumo interno, era também voltada ao infame comércio de seres humanos para a escravização, que se fazia na costa da África. 
Notem, leitores, que há, aqui, um jogo sinistro na lógica de produção e troca: africanos escravizados e trazidos ao Brasil trabalhavam na lavoura de cana, nos engenhos em que se fabricava a cachaça e nas plantações de tabaco, cujo produto era destinado, em parte, à compra de outros escravos. Mais uma dessas tragédias de que a história da humanidade está repleta.

(*) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 151.


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sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

"Thy kingdom come..."

Oliver Cromwell, os puritanos e a experiência republicana na Inglaterra do Século XVII


1649. Um rei, Charles I,  perde a cabeça (*) - literalmente - e, em seu lugar, à frente do novo governo republicano, denominado Commonwealth of England, está Oliver Cromwell.
Cromwell foi uma dessas personagens que, em seu próprio tempo, e mesmo mais tarde, despertou as mais controvertidas opiniões. Para o grupo político que representava, o dos puritanos, com notável viés religioso, como aliás era comum na época, foi um verdadeiro herói, e assim também foi considerado pelos que, mesmo fora da Inglaterra, simpatizavam com suas ideias. Entre os opositores, no entanto, foi visto como o mais completo tirano, capaz de atrocidades que nem mesmo os mais sanguinários monarcas absolutistas haviam tentado. Acabou por dissolver o parlamento e chamar todo o governo para si, como Lorde Protetor da Inglaterra, Escócia e Irlanda.
É verdade que, politicamente, seu governo teve muito de questionável, em particular no trato com grupos discordantes. Escoceses e irlandeses não têm, por certo, razões para muito apreço por sua memória. Como negar, porém, o tino comercial embutido nos Ato de Navegação de 1651, decisivo que foi para tornar a Inglaterra, por séculos, uma verdadeira senhora dos mares? Explicando de um modo muito simples, ele determinava, entre outras disposições, que produtos importados somente poderiam ser trazidos até portos da Inglaterra por navios dos países produtores ou por navios de bandeira inglesa. Isso desbancava a concorrência holandesa, e foi uma prática que, dentro do contexto mercantilista que andava na moda, funcionou muito bem.
Oliver Cromwell morreu em 1658. Sim, eis aí um fato que é, às vezes, indevidamente esquecido: os poderosos também morrem.
Mas voltemos, leitores, ao assunto do governo republicano estabelecido após a execução de Charles I. Segundo uma antiga tradição, sendo nesse tempo violenta a aversão à monarquia (ao menos entre os adeptos de Oliver Cromwell), os puritanos, tão intensamente religiosos como eram, sempre que iam repetir o Pai Nosso, e para evitar a palavra "reino", diziam "Thy commonwealth come", em lugar de "Thy kingdom come". Seja isso fato ou lenda, revela com perfeição o clima que reinava (ai!) durante a breve experiência republicana vivida pela Inglaterra no Século XVII.

(*) Naquele tempo a guilhotina ainda não havia sido inventada, de modo que o rei foi decapitado segundo o método corrente em seus dias: o carrasco usava um enorme machado, cuja lâmina era muito bem afiada. Sabe-se que, para fazer o serviço completo, um carrasco experiente precisava, como regra, acionar o dito machado de três a cinco vezes.


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