sexta-feira, 29 de maio de 2015

Carne de porco e bananas para os doentes

Alguns doentes precisam de cuidados na alimentação, dependendo da enfermidade que os afeta. Isso é conhecimento antigo entre a humanidade, e resultou de observações quanto àquilo que proporcionava melhores resultados, embora nem seja preciso lembrar que muita gente deve ter deixado de viver até que esse saber fosse construído. Porém, a verificação de quais alimentos eram, no passado, tidos como apropriados aos enfermos, pode levar a algumas surpresas.
Vão aqui dois exemplos, registrados, ambos, por Pero de Magalhães Gândavo, no Século XVI.
Primeiro, referindo-se às bananas:
"Esta é uma fruta muito saborosa e das boas que há na terra, tem uma pele como de figo [sic], a qual lhes lançam fora quando as querem comer e se come muitas delas fazem dano à saúde e causam febre a quem se desmanda nelas. E assadas maduras são muito sadias e mandam-se dar aos enfermos." (¹)
Parece que, nos dias de Gândavo, banana assada era servida aos doentes, independente da moléstia. Casos específicos não eram considerados, até porque a maioria das pessoas não tinha conhecimento para tanto, os médicos eram raríssimos na Colônia e a ciência, nesse aspecto, ainda engatinhava. 
Pois bem, se o primeiro caso já lhe pareceu um pouco estranho, leitor, veja agora mais este:
"Manda-se dar nesta terra aos enfermos carne de porco, para qualquer doença é proveitosa, e não faz mal a nenhuma pessoa." (²)
É claro que não há quaisquer estatísticas da época, sobre quantos doentes saravam ou, ao menos, melhoravam com tal dieta. Sabe-se, porém, que no Brasil Colonial as taxas de mortalidade eram elevadas, por um conjunto de razões que iam muito além da alimentação equivocada. As condições de higiene eram mais do que precárias e, para muitas pessoas, conseguir alimento suficiente já era um problema sério. Sabe-se que muito do que se supunha correto em termos de cuidados médicos não passava de grande tolice (lembra-se das famosas sangrias?), de modo que o máximo cuidado que, em muitos casos, era possível para com um doente, consistia em assegurar-lhe que recebesse comida suficiente para refazer as forças. Nutrição, como hoje a entendemos, cientificamente elaborada, era coisa que ainda estava no futuro.

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 64.
(2) Ibid., p. 58.


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quarta-feira, 27 de maio de 2015

Tabernas e vendas

Comecemos por esclarecer a quem for preciso que o significado de taberna ou taverna é exatamente o mesmo. Isto posto, acrescentemos que, no Brasil, antes que ferrovias e rodovias mudassem o perfil do transporte de carga e mesmo do deslocamento de pessoas, todo o transporte terrestre de mercadorias era feito por tropas de muares. Ao final de cada dia de viagem os tropeiros procuravam acomodar-se em ranchos, nos quais podiam descansar e preparar alguma comida. É exatamente aí que entra a taberna (ou taverna...). 
Ao relatar uma viagem feita do Rio de Janeiro a Goiás em 1823, o Brigadeiro Cunha Matos observou, em relação a um determinado ponto do trajeto:
"Junto ao rancho existe uma taverna, que estava cheia de tropeiros e outros indivíduos de todas as cores, empregados em diversos serviços de jornada, e alguns cantavam e tocavam nas suas violas." (¹) 
É certo que nem toda taberna estava fixada à beira de uma estrada ou trilha, nem mesmo funcionava, obrigatoriamente, junto a um rancho de tropeiros. Havia não poucas tabernas urbanas. Ocorre, porém, que os ranchos eram pontos privilegiados de venda, porque os viajantes, exaustos, estavam quase sempre dispostos a pagar por um gole de cachaça ou um petisco qualquer os valores exorbitantes que o taberneiro ousava extorquir. Não raro o dono de um rancho ou pouso de tropeiros concedia abrigo grátis a quem chegava, sabendo que iria faturar alto com a taberna que tinha ao lado. 
Já as vendas tinham um repertório mais variado, e atendiam não apenas tropeiros e outros viajantes, mas também às pequenas necessidades da população fixa das redondezas. Descrevendo o "Rancho do Almeida", o mesmo autor, Cunha Matos, depois de dizer que tinha uma "venda imunda", explicou:
"Na venda do rancho existia pão, bolacha, queijo, doce de goiaba em tijolos, farinha e milho; não faltava aguardente, vinho e mais alguns gêneros." (²)

Tropeiros conversando diante de uma venda (³)
Uma descrição mais abrangente vem do inglês Richard Burton, em mais de um sentido um sujeito algo excêntrico. Burton, que esteve no Brasil durante a década de sessenta do Século XIX, afirmou que uma venda "vende de tudo, desde alho e livro de missa, até cachaça, doces e velas; às vezes é dupla, com um lado para secos e outro para molhados. Um balcão, sobre o qual se embalança uma grosseira balança, divide-a no sentido do comprimento. Entre ele e a porta, ficam tamboretes, caixas e barris virados para baixo. [...] As prateleiras de madeira sem verniz estão cheias de latas, canecas e outros recipientes, e, em ambos os lados, garrafas cheias e vazias, em pé ou deitadas. No chão, há sacos de sal e barris abertos, com rapadura e feijão, um caixote ou dois com milho, pilhas de toucinho e carne salgada, a popular "carne-seca", uma corda de fumo preto enrolada em uma estaca e garrafas e garrafões de cachaça. As mercadorias são guarda-chuvas, ferraduras, chapéus, espelhos, cintos, facas, garruchas, espingardas baratas, munição e linha de costura - na verdade tudo de que podem precisar homens ou mulheres rústicos. (...)." (⁴)
Tabernas e vendas não eram, porém, as únicas fontes possíveis de renda para o dono de um rancho. Era possível lucrar, também, com a forragem que era fornecida aos animais de carga. Além disso, outra coisa mais ou menos comum era a existência, ao lado dos ranchos, de uma "loja de ferrador", como se dizia na época - a oficina de alguém que instalava ou ajustava ferraduras em cavalos, mulas, etc.  - mais uma fonte de lucro para o dono de um rancho, portanto.
Senhores de escravos odiavam as tabernas e vendas (a menos, é claro, que fossem os donos delas). Era para lá que os cativos escapuliam, a fim de gastar o pouco dinheiro de que dispunham. Mas era nelas, também, que tinham a oportunidade de entrar em contato com escravos de outros senhores, sendo, desse modo, lugares favoráveis à fermentação de planos para fugas e rebeliões. 

(1) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 7.
(2) Ibid., p. 13.
(3) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 138.


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segunda-feira, 25 de maio de 2015

Como os soldados romanos treinavam para o combate

Públio Cornélio Cipião foi um general romano. Lutou e venceu os cartagineses comandados por Aníbal durante a Segunda Guerra Púnica. 
Cabem aqui duas breves explicações. 
A primeira é sobre o nome "Púnica" - os romanos chamavam punos aos cartagineses, daí o nome dado a esse confronto que é, tradicionalmente, dividido em três grandes etapas, sendo a primeira entre 264 e 241 a. C., a segunda entre 218 e 202 a.C. e a terceira e última entre 149 e 146 a.C.. 
A segunda explicação tem a ver com o propósito desse notável confronto da Antiguidade. Roma, na Península Itálica, e Cartago, no norte da África, tinham um mesmo objetivo, queriam obter a hegemonia no Mediterrâneo. Era um daqueles casos clássicos em que os contendores se aproximam, olhando cada um nos olhos do oponente e dizem, pau-sa-da-mente: "Não há lugar para nós dois neste mundo..."
Ora, justamente por ter conseguido a proeza de derrotar ninguém menos que Aníbal, general cartaginês, Públio Cornélio Cipião acabou conhecido pelo apelido de "Africano". Mas era romano mesmo.
Ocorre que Públio Cornélio Cipião era filho de um outro Públio Cornélio Cipião, daí o apelido ser muito útil quando se quer distinguir um do outro. A complicação não para aqui, já que Públio Cornélio Cipião Africano também teve um filho chamado Públio Cornélio Cipião. Assim, o Africano é também chamado "o Velho", quando se quer distingui-lo de seu filho, chamado "o Jovem". Chega!
Vamos agora ao assunto principal da postagem de hoje. De acordo com Políbio de Megalópolis, uma das grandes virtudes militares de Públio Cornélio Cipião (Africano e Velho), era manter as tropas em contínuo exercício. Conta-nos que, depois de vencer em Cartagena, providenciou ocupação para seus homens em cinco dias de treinamento.
No primeiro dia fez as legiões marcharem, levando as armas, por uma extensão de trinta estádios (¹). No segundo dia ordenou que todo o armamento fosse polido e estivesse limpo para inspeção. Como ninguém é de ferro, o terceiro dia foi dedicado ao descanso. No quarto dia houve treinamento de combate, com uso de espadas de madeira com ponta cega e revestidas de couro, além de lançamento de dardos igualmente cegos. A precaução era plenamente justificável, para evitar a perda de homens para os combates que de fato contavam. Finalmente, no quinto dia de treinamento, os soldados fizeram marcha idêntica à do primeiro dia.
Vejam os senhores leitores que tudo era muito simples, se comparado ao treinamento militar da atualidade. Mas era eficaz para as necessidades daqueles dias, e contribuiu para fazer de Roma a potência única do Mediterrâneo, ao vencer e aniquilar Cartago, sua concorrente.

Representação de soldados romanos, datada do Século XIX (²) 

(1) A medida de um estádio variava um pouco de um lugar para outro na Antiguidade, mas é usual considerar que, entre os romanos, equivalia a 185 metros. Assim, a marcha dos soldados terá alcançado os 5.550 metros.
(2) MACAULAY, Thomas B. Lays of Ancient Rome. New York: Harper & Brothers, 1888. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 22 de maio de 2015

Um professor dedicado

O trabalho de Anchieta como professor de Gramática no Colégio de São Paulo


O Colégio de São Paulo, iniciado por jesuítas em 1554, teve, de acordo com o padre Simão de Vasconcelos (¹), a segunda classe de Gramática que veio a existir no Brasil, uma vez que a primeira já funcionava no Colégio da Bahia. Diz Vasconcelos que as aulas eram frequentadas por "nossos irmãos e bom número de estudantes brancos e mamelucos, que acudiam das vilas vizinhas" (²).
Quem era o professor?
Ninguém menos que o jovem José de Anchieta. Não era ainda o famoso missionário que, depois de longuíssimo processo (³), acabaria canonizado, mas era um professor que mostrava muita dedicação ao ofício e, a crermos no que escreveu o Padre Simão de Vasconcelos, levava seus alunos a bons resultados, em termos de aprendizagem:
"Lia esta classe o Irmão José de Anchieta, ocupação em que perseverou alguns anos, com grande aproveitamento de seus discípulos, e com maior opinião de sua santidade." (⁴)
As condições de trabalho eram, todavia, precárias. Nada que se parecesse com as salas de aula do Reino, ou mesmo do Colégio da Bahia. Nem livros, sequer, havia para os alunos. Mas desistir não era uma possibilidade:
"O trabalho era excessivo; ainda naquele tempo não havia nestas partes cópia de livros, por onde pudessem os discípulos aprender os preceitos da Gramática.
Esta grande falta remediava a caridade de José à custa de seu suor e trabalho, escrevendo por própria mão tantos cadernos dos ditos preceitos, quantos eram os discípulos que ensinava, passando nisto as noites sem dormir, porque os dias ocupava inteiros nas obrigações do ofício; e acontecia não poucas vezes romper a manhã, e achar a José com a pena na mão." (⁵)
Os jesuítas não estavam, portanto, envolvidos apenas com a catequese dos povos indígenas da América. Lidavam também com o ensino dos colonizadores e seus filhos, razão pela qual criavam classes de Gramática. Por certo isso abria as portas para mais ampla divulgação dos valores defendidos por sua Ordem entre as mentes jovens da Colônia, como parte dos métodos adotados dentro da reação católica à Reforma Protestante (chamada Contrarreforma ou Reforma Católica). Porém, independente da opinião que tenhamos em relação à catequese e doutrinação na América, como não apreciar a dedicação de um professor como Anchieta? 

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865.
(2) Ibid., p. 90.
(3) Durou de 1617 a 2014.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Op. cit., p. 90.
(5) Ibid.


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quarta-feira, 20 de maio de 2015

Colares de ferro e máscaras de lata para castigar escravos

Um escravo fugitivo era, quando capturado, geralmente conduzido a uma casa de correção, até que seu senhor - em pessoa ou através de um procurador - apresentasse a documentação comprobatória do direito de propriedade. Voltava, então, ao lugar de trabalho, e, como sinal de ser "fujão", como se se dizia, passava a ostentar em público um horrível colar de ferro. O missionário e pastor metodista Daniel Kidder (¹) observou, no Rio de Janeiro, alguns escravos que usavam a tal "condecoração", e anotou em suas memórias:
"Alguns desses infelizes - como outros que se encontravam diariamente nas ruas - usavam enorme colarinho de ferro com uma extremidade que se projetava para cima, do lado da cabeça. Esse cruel distintivo geralmente indicava um escravo egresso que havia sido recapturado." (²)
Outro sinal público para infamar um escravo era o uso de uma máscara de lata, que era atada ao escravo cada vez que saía à rua. Era colocada para evitar que o cativo (ou cativa) ingerisse bebidas alcoólicas. Em um artigo de jornal, relembrando tempos de sua infância, Machado de Assis escreveu:
"Alegres eram umas máscaras de lata que vi em pequeno na cara de escravos dados à cachaça; alegres ou grotescas, não sei bem, porque lá vão muitos anos, e eu era tão criança, que não distinguia bem." (³)
Alegres ou grotescas? Deixo a critério dos leitores a decisão. É fato, porém, que tanto os colares de ferro quanto as máscaras serviam para estigmatizar escravos que, de algum modo, tentavam fugir àquilo que se esperava deles: trabalho e subordinação irrestrita à vontade de seus senhores.

Escravos portando colar de ferro e máscara de lata (⁴)

(1) Nascido nos Estados Unidos, residiu em território brasileiro entre 1837 e 1840.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 91.
(3) GAZETA DE NOTÍCIAS, "A Semana", 26 de junho de 1892.
(4) ______ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 18 de maio de 2015

Inflação e deflação

Inflação é uma palavra capaz de produzir calafrios - a maior "oferta" de moeda no mercado provoca uma elevação correspondente nos preços. Muito governo já veio abaixo, mundo afora, porque a população não tolerava mais o caos inflacionário. 
Um dos mais drásticos exemplos de inflação vem de fins do Século XV e parte do Século XVI. A famosa Revolução dos Preços, ocorrida na Europa, e em particular na Espanha, decorreu da farta entrada de metal precioso proveniente das terras há pouco descobertas na América. Em tempos de Mercantilismo, maior disponibilidade de ouro e prata significava mais dinheiro circulando e, portanto, era possível pedir mais pelas mercadorias disponíveis. Os preços subiram. Terrivelmente.
Menos comum é o fenômeno da deflação: há tanta mercadoria à disposição dos potenciais compradores que, com uma dada quantidade de dinheiro, é possível adquirir muito mais. Foi o que aconteceu no Império Assírio, nos dias do rei Assurbanípal (Século VII a.C.). Os belicosos assírios fizeram guerra contra povos árabes. Vitoriosos, arrastaram consigo uma multidão de prisioneiros, que acabaram escravizados. Espantosa, porém, foi a quantidade de camelos capturados. Eram tantos, tantos, tantos, que, no mercado assírio, o preço de um desses animais reduziu-se a um terço do que era praticado anteriormente. Um caso notável de deflação, portanto.


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sexta-feira, 15 de maio de 2015

Uma casa na roça, outra na vila ou cidade

No início do Século XVIII o jesuíta Antonil (Andreoni!) advertia senhores de engenho ou candidatos a esse posto que era desperdício de dinheiro manter duas casas, uma na fazenda, outra na cidade:
"Mau é ter nome de avarento, mas não é glória digna de louvor o ser pródigo. Quem se resolve a lidar com engenho, ou se há de retirar da cidade, fugindo das ocupações da República que obrigam a divertir-se, ou há de ter atualmente duas casas abertas, com notável prejuízo aonde quer que falte a sua assistência, e com dobrada despesa." (¹) 
O aviso de Antonil não era descabido, mas provavelmente encontrou pouca ou nenhuma obediência. No Brasil Colonial, e mesmo mais adiante, após a independência, muitas povoações somente eram de fato habitadas nos finais de semana e nos feriados, quando a gente das áreas rurais vinha assistir missa. Nos demais dias, as vilas e arraiais permaneciam quase desertos e, não raro, o padre era o único morador permanente, isso quando também não bandeava para outro lugar, malgrado seu dever de dizer missa diariamente. Por outro lado, fazendo justiça aos padres, é preciso dizer que eles tinham por obrigação atender às várias capelas filiais de suas respectivas paróquias, e, não sendo onipresentes, tinham de deslocar-se continuamente entre diversas povoações, que, em certos casos, ficavam muito distantes umas das outras.
O brigadeiro Cunha Matos, militar português que veio ao Brasil entre os que acompanharam o regente D. João, e que acabou ficando por aqui mesmo após a independência, a serviço do novo governo do Brasil, fez, ao andar por terras da província de Goiás, esta interessante observação:
"Na maior parte dos arraiais do Brasil as casas acham-se fechadas durante os dias da semana, abrindo-se unicamente nos dias de missa ou de festa que é quando os seus donos fazendeiros ali se demoram por espaço de algumas horas." (²)
Já nos outros dias, explicou, "o capelão, o oficial que serve de comandante do distrito em lugar do proprietário, o sacristão, o estalajadeiro ou rancheiro, os taberneiros ou vendeiros, o escrivão do juiz da Vintena e algumas meretrizes que fazem as delícias dos tropeiros [sic!], são as pessoas que ordinariamente habitam os arraiais nos dias da semana." (³)
É certo que Cunha Matos estava supondo a população fixa de alguma povoação à margem de uma estrada que consistia em rota de tropeiros. Se não fosse esse o caso, talvez a população nos "dias de semana"(⁴) não seria tão vasta.
No auge do café, em São Paulo, ou seja, posteriormente a 1850, viria a ocorrer um fenômeno inverso: os grandes fazendeiros moravam em belos casarões que faziam construir nas cidades, onde suas respectivas famílias poderiam desfrutar de um padrão elevado de convivência social, indo às fazendas para administrar os negócios, tarefa na qual, aliás, costumavam ter auxiliares, os famosos "administradores". 

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 29.
(2) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 90.
(3) Ibid.
(4) Essa expressão não deixa de ser engraçada, já que sábados, domingos e feriados também são parte das semanas.


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quarta-feira, 13 de maio de 2015

Viajando com os tropeiros na Serra dos Pireneus

A "Estrada do Norte", percorrida por tropeiros desde o Século XVIII


Por aqui passavam os tropeiros 
O padre Ayres de Casal, em sua Corografia Brasílica, explicava, na segunda década do Século XIX, que Meia Ponte, a que hoje chamamos Pirenópolis (¹) era uma povoação pela qual tropeiros iam e vinham constantemente:
"Os comboios da Capital e do Cuiabá que vão para a Metrópole ou São Paulo ou Bahia aportam aqui, onde cada qual toma o caminho do seu destino." (²)
Pouco tempo depois, o militar português Luís d'Alincourt observaria algo semelhante:
"As tropas de negociantes de Cuiabá e Goiás nele [Arraial de Meia Ponte] se refazem do preciso para descerem às Províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia." (³)
Meia Ponte era, então, um lugar bastante movimentado.
Ainda hoje existe parte do calçamento que constituía a chamada "Estrada do Norte" do Século XVIII, na Serra dos Pireneus (⁴). Vejam as fotos, senhores leitores, e, dando asas à imaginação, percorram comigo essa antiga rota.
Onde a maioria das pessoas só vê uma trilha revestida com pedras disformes, eu posso ouvir uma tropa que se aproxima: homens e animais vêm suarentos e empoeirados. Enquanto as mulas, resfolegando, tentam equilibrar os sacos de couro  e os jacás que levam aos lombos, ouvem-se risadas e imprecações, e segue monótono o bater dos cascos. Passam, e vão-se afastando indiferentes. Quase cadenciado, o som, aos poucos, torna-se menos audível, até desaparecer por completo numa curva longínqua - assim como no tempo, que já vai distante.

Trecho da "Estrada do Norte", na Serra dos Pireneus, Goiás

(1) Estado de Goiás.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 352.
(3) ALINCOURT, Luís d'. Memória Sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Brasília: Ed. Senado Federal, 2006, p. 64.
(4) A Serra dos Pireneus tem esse nome porque exploradores de ouro que andaram pela região achavam-na algo parecida com os Pireneus da Europa. Que fique bem entendido: essa era a opinião deles.


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segunda-feira, 11 de maio de 2015

Preparando as crianças livres para a vida sem escravos

Para quem vinha ao mundo em uma família de boa situação social e econômica - mais especificamente no Brasil - até meados do Século XIX, devia parecer a coisa mais normal do mundo ser servido ou servida por escravos o tempo todo. Era fato corriqueiro, nesses casos, "presentear" o menino branco com um pajem escravo, ou a meninazinha branca com uma "perfeita mucama", pouco mais velha que ela, que devia ajudá-la a banhar-se e vestir-se, fazendo-lhe sempre companhia.
Ora, diante do inevitável fim da escravidão, que se evidenciava desde a lei de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), tornou-se nítida a necessidade de preparar as crianças para a vida em um mundo sem escravos. Era preciso que deixassem de lado a mania de ter alguém que lhes servisse e, em todo o tempo, lhes atendesse aos caprichos. É certo que, no mundo pós-abolição, empregados poderiam ser contratados, mas jamais seriam como os escravos, obrigados à obediência sob a coerção do chicote ou da palmatória (¹).
Em um livro de leitura destinado à instrução primária, dizia a autora, Guilhermina de Azambuja Neves:
"Referiram-me um destes dias o fato de uma menina, que achou-se em grandes dificuldades para vestir-se, porque a sua mucama adoecera.
Não é verdade, meu filho, que ela não passaria por tal, se a tivessem acostumado a levantar-se e vestir-se só?
É tão cômodo e agradável poder a gente passar sem serviços alheios, e servir-se a si mesmo!" (²)
Notável mudança ideológica, não acham, senhores leitores? Entre palavras e fatos, porém, ia uma grande distância, de tal modo que, mesmo após a Abolição (1888), não era difícil observar, a todo instante, resquícios do velho sistema escravista e da mentalidade que o respaldava.

(1) A palmatória era usualmente o instrumento de castigo que se empregava para escravos domésticos.
(2) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed.
Rio de Janeiro: 1875, p. 74. O exemplar consultado pertence à BNDigital.


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sexta-feira, 8 de maio de 2015

Guerra tecnológica na Antiguidade

Arquimedes de Siracusa - um só homem pode fazer toda a diferença


No contexto das Guerras Púnicas (Roma contra Cartago), os romanos sitiaram Siracusa, pois esta se aliara aos cartagineses. Habituados a massacrar adversários com alguma facilidade, desta vez os romanos perceberam que tinham, pela frente, um autêntico desafio. Não, os siracusanos não eram melhores soldados, não tinham melhores generais que os romanos, nem tampouco tinham embarcações mais eficientes. Como os próprios romanos perceberam, a grande capacidade de Siracusa em resistir ao cerco estava nas infernais máquinas de guerra projetadas, ao que parece, por um único homem: Arquimedes.
Por certo os senhores leitores já devem ter ouvido falar dele em aulas de matemática e física (lembram-se?...). À época da guerra contra os romanos, Arquimedes era, já, um homem bastante idoso, mas ainda capaz de aliar conhecimento teórico à tarefa eminentemente prática de inventar e construir máquinas que frustravam, vez após vez, os intentos dos inimigos de Siracusa. Todas as máquinas de guerra que os romanos tinham por hábito empregar, eram neutralizadas por outras, que o velho genial inventava. Segundo todas as aparências, enquanto Arquimedes vivesse, as muralhas de Siracusa estariam muito bem protegidas.
Sabemos, por relato de Políbio de Megalópolis, que após oito meses de esforços inúteis, os cônsules romanos Marcelo e Ápio decidiram tentar outra tática: isolar Siracusa para que não recebesse qualquer ajuda de fora da cidade. Ápio ficou encarregado de, por terra e mar, impedir que os siracusanos recebessem ajuda externa, enquanto que os homens comandados por Marcelo trataram de inutilizar os campos adjacentes para a agricultura. 
Afinal, depois de dois anos, os romanos conseguiram vencer Siracusa. Queriam Arquimedes vivo - respeitavam-no e imaginavam ser possível tê-lo a seu serviço. Embora as narrativas do fato sejam um pouco contraditórias quanto aos detalhes, considera-se que Arquimedes foi morto por um soldado romano que não o reconheceu e que se mostrou impaciente com aquele ancião que não dava a menor importância às suas ordens. Se foi assim, ao menos o grande inventor terá escapado à humilhação de ver-se prisioneiro dos inimigos que, de forma tão inteligente e resoluta, havia combatido.


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quarta-feira, 6 de maio de 2015

Anjos de procissão

Anjo de procissão, de acordo com Debret (¹) 

O que pensaria um missionário protestante das  procissões típicas do catolicismo, em sua versão do Brasil Império? Temos a possibilidade de saber, já que Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista que residiu no Brasil durante os últimos anos do Período Regencial, deixou registros detalhados de suas impressões. Seus relatos, porém, são úteis não só pelos pontos de vista que expressavam, mas incluem, também, um carga de informações às quais, talvez, não teríamos acesso de outro modo. Não nos esqueçamos que Kidder escrevia tendo em mente os possíveis leitores em seu país de origem (Estados Unidos), de maneira que era cuidadoso em dar explicações para uma série de detalhes que, para um autor brasileiro da época, talvez fossem demasiado óbvios.
Assim, logo se percebe que, na capital do Império, durante o Século XIX, as procissões eram concorridas, delas participando, muitas vezes, pessoas de alta posição social - eram, pois, uma questão de status, principalmente quando revelavam o pertencimento a uma confraria de reputação elevada. Além disso, despertavam o interesse da população, que acorria, em grande número, para ver passar o cortejo.
Como o próprio Daniel P. Kidder revelou, sua estreia no universo das procissões ocorreu em uma quarta-feira de cinzas, no Rio de Janeiro:
"A primeira procissão que tive ocasião de observar foi a de quarta-feira de cinzas. Organizada pela Ordem Terceira de São Francisco, partiu da Capela da Misericórdia, percorreu as ruas principais da cidade e entrou no Convento de Santo Antônio. Cerca de vinte ou trinta andores, carregados ao ombro pelos homens, tomaram parte no cortejo. Alguns levavam imagens isoladas, outros transportavam grupos representando passagens das Escrituras ou da história da Igreja." (²)
Os andores eram muito pesados, de modo que exigiam um constante revezamento daqueles que os carregavam, dando ao olhar estrangeiro de Kidder a oportunidade de captar um aspecto pitoresco nas relações entre senhores e escravos:
"As ruas ficavam apinhadas de povo, notando-se numerosos escravos que pareciam se divertir vendo seus senhores empenhados em trabalhos pesados. De fato, estes se cansavam a ponto de correr o suor sobre seus rostos, como água." (³)
Lembremo-nos de que a solene procissão ocorria sob um sol escaldante de fevereiro!...
Adiante, porém, já que, agora, em seu depoimento, Daniel Kidder passa a descrever a presença de uma exótica figurinha, um "anjo de procissão":
"À frente de cada grupo de imagens ia um anjo conduzido por um padre e espalhando pétalas de flores pelo trajeto.
Como talvez o leitor deseje saber que espécie de anjos eram esses que tomavam parte nas festas, devemos explicar que constituíam eles uma classe especialmente criada para em tais ocasiões servir de guarda de honra aos santos.
Meninas de oito a dez anos eram geralmente escolhidas para saírem de anjo, sendo então paramentadas com indumentária fantástica. A ideia dessas roupas parecia ser a de imitar o corpo e as asas dos anjos, para o que as mangas levavam armações especiais [...]. Na cabeça levavam uma espécie de tiara. Os cabelos caíam em cachos, e o ar triunfal com que as crianças marchavam indicava que compreendiam perfeitamente  a honra de constituírem os principais objetos de admiração." (⁴)

Anjo de Procissão (⁵)
Devemos prosseguir, leitores (⁶). Como já disse, por ser estrangeiro, Daniel Kidder era capaz de perceber certas questões sociais que talvez passassem despercebidas à gente da terra, isso a despeito de, ele também, vir de um país no qual ainda havia escravidão. Sucede que cada "anjo", conduzido pela mão de um padre, tinha ainda um outro acompanhante:
"Contrastando com a pompa e o aparato desses anjos, caminhava ao lado o escravo servil, levando sobre a cabeça uma caixa ou cesta de flores para, de vez em quando, suprir a salva de prata de onde o anjo as tirava para espargir sobre o chão." (⁷)
Melancolicamente, pois, constatava-se que o brilho da festa popular era ofuscado pela maldita escravidão.

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 130.
(3) Ibid.
(4) Ibid., pp. 130 e 131.
(5) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(6) Não creio que anjos de procissão tenham deixado de existir. Em uma loja de artigos para festas, vi, não faz muito tempo, asas e outros acessórios. Perguntei, por curiosidade, do que se tratava, e a vendedora me informou que eram para crianças que se vestiam de anjos em um dado evento religioso.
(7) KIDDER, Daniel P. Op. cit. p. 131.


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segunda-feira, 4 de maio de 2015

Quem foi libertado pela Lei do Ventre Livre?

No Brasil, a escravidão foi hipocritamente descrita como um modo de levar africanos ao conhecimento do Evangelho - isso nos tempos coloniais. Passou a ser vista como um mal necessário, porque o País precisava de mão de obra. Mais tarde, ainda, já por meados do Século XIX, a pressão interna e externa pela abolição conduziu à ideia de que, em última instância, a escravidão era uma grande desgraça, mas que somente deveria ser extinta de forma gradual, para evitar uma calamidade na economia.
Em um livro de leitura com o título de Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, destinado às crianças que recebiam instrução primária no Império do Brasil, a autora, Guilhermina de Azambuja Neves, explicava:
"A escravidão é uma coisa contrária à religião de N. S. Jesus Cristo, e se a temos entre nós é porque nossos maiores, por falta de quem lavrasse a terra, mandaram buscar escravos em África.
Quando nascemos já achamos este mal; a única coisa que podemos fazer é extingui-lo, isso pouco a pouco, para evitar grandes prejuízos e desordens. 
Por uma lei devida aos esforços de alguns brasileiros, ilustres patriotas, são livres todos os que agora nascem sob o belo céu de nossa pátria.
Assim, em poucos anos não haverá mais escravos no Brasil; e, mais cedo ainda veríamos realizada tão generosa ideia, se todos se compenetrassem da verdade do que fica dito."  (¹)
A "lei devida aos esforços de alguns brasileiros, ilustres patriotas", citada pela Professora Guilhermina era, evidentemente, a de 28 de setembro de 1871, conhecida como "Lei do Ventre Livre", embora não tratasse apenas da liberdade dos filhos de mulheres escravas (²). Porém, ao contrário do sugerido pelo título da lei, e do que afirmava D. Guilhermina, não eram exatamente livres todos os que nasciam "sob o belo céu de nossa pátria". Embora esta postagem venha a ser um tanto longa, creio que valerá a pena analisar alguns aspectos da Lei de 1871, para que os senhores leitores percebam que, na verdade, servia ela antes para tergiversar sobre a abolição, do que para pôr um fim ao sistema de trabalho cativo.
Vamos "à letra da lei":
"A Princesa Imperial Regente, em nome de S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império, que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1 - Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta Lei, serão considerados de condição livre.
§ 1. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de vinte e um anos completos.
No primeiro caso, o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei."
Vejam os senhores leitores que, de saída, ficava claro que o "nascimento livre" dos filhos das escravas, era uma farsa, porque o menino ou menina estava obrigado a trabalhar para o senhor de sua mãe até à idade de vinte e um anos completos!
Sim, é fato que alguns senhores preferiam a indenização do Estado, porque entendiam que essas crianças, nem totalmente livres e nem completamente escravas, acabam sendo elementos de desordem dentro da instituição escravista, mas isso não muda, nem de leve, o espírito que inspirou o texto da Lei, que ainda acrescentava:
"§ 2. Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária [...]."
Ora, se era preciso que o menor pagasse para não servir, é porque ainda não era livre! Imaginava-se que, aqui, poderiam intervir as sociedades abolicionistas, provendo recursos para a completa liberdade das crianças nascidas após a aprovação da Lei. 
Mencionemos, de passagem, este outro parágrafo, que tratava da libertação (evidência da não-liberdade) de crianças que fossem injustamente castigadas pelos respectivos senhores:
"§ 6. Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1, se por sentença do juízo criminal reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos."
Cabe agora considerar o que acontecia aos menores cujos senhores preferissem receber do Estado os 600$000 de indenização:
"Art. 2 - O governo poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas ou tirados do poder destes em virtude do Art. 1 § 6.
§ 1. As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de vinte e um anos completos e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:
1. A criar e tratar os mesmos menores.
2. A constituir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos respectivos estatutos.
3. A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação."
Ainda aqui mostra-se que nenhum filho de mãe cativa era de fato livre antes de ter vinte e um anos, já que as associações autorizadas a receber os menores podiam valer-se de seus serviços ou mesmo cedê-los a terceiros, ainda que estivessem sob algumas obrigações. Volto a insistir, pois, na questão de que o nome "Lei do Ventre Livre" é, em absoluto, incorreto, e apenas servia para camuflar o drama da escravidão, numa tentativa de fugir a uma solução definitiva para a questão do trabalho no Brasil.
Para concluir, penso que alguns dos leitores devem ter-se perguntado como seria possível determinar quem era nascido após a entrada em vigor da Lei de 28 de setembro de 1871, e que teria, portanto, direito aos duvidosos benefícios dela. Nesse tempo, os registros civis de nascimento eram ainda desconhecidos no Brasil, e o que determinava a existência de alguém era, na prática, o registro de batismo por um sacerdote católico, de modo que foi aos padres que se incumbiu a obrigação de escriturar estritamente os nascimentos dos filhos de escravas:
Art. 8. § 5. Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravas nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000."
Agora, leitores, vamos à conclusão. 
A Lei do Ventre Livre foi sancionada em 28 de setembro de 1871, de modo que um menino ou menina (³) que nascesse imediatamente após essa data, somente seria de fato livre aos vinte um anos de idade - ou seja, em 1892. Ora, com a Lei Áurea, de maio de 1888, estaria livre antes disso, e não em virtude da Lei do Ventre Livre. Certo, nós só sabemos porque vivemos mais de um século mais tarde, mas apenas noto este fato para que todos vejam o quanto de falácia havia, afinal de contas, na tal proposta de abolição gradual.

(1) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 54 e 55. O exemplar consultado pertence ao acervo da BNDigital.
(2) Entre outros assuntos, dispunha, também, sobre as condições para que escravos adultos comprassem a própria liberdade, bem como sobre o estabelecimento de sociedades filantrópicas com a finalidade de ajudar escravos na obtenção de um pecúlio para a liberdade. 
(3) Filho ou filha de mãe escrava.


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sexta-feira, 1 de maio de 2015

Suicídios na Roma Antiga

É mesmo de chamar a atenção a quantidade de suicídios de que historiadores e cronistas da Antiguidade relatavam a ocorrência em Roma. Tanto mais notável,  ainda, por ser coisa de gente importante, da elite romana.
Por quê?
Sim, era, na lógica da época, uma questão de dignidade, quando alguém se encontrava em uma situação para a qual não via nenhuma outra solução honrosa. Foi o caso do general Quintílio Varo, por exemplo, quando percebeu que suas tropas estavam completamente derrotadas pelos bárbaros germanos em Teutoburgo. Para não cair prisioneiro dos inimigos, Varo cravou a espada em si mesmo. 
Isso era coragem? Talvez seja uma daquelas questões que dependem do ponto de vista e da cultura da época. Mas nem todos os suicidas de Roma estavam em situação extrema em um campo de batalha. Aliás, o método mais popular de suicídio entre os romanos era, geralmente, praticado dentro de casa - abrir as veias (dos pulsos), deixando que a perda de sangue se encarregasse do resto. Não foram poucos os políticos romanos que, metidos nas intrigas do poder, preferiram morrer assim, antes que uma formal condenação à morte os alcançasse. Houve uma verdadeira epidemia de senadores que decidiram abrir as veias durante os últimos anos do governo de Tibério. Tácito assim explica essa "preferência":
"Por medo do carrasco preferiam morrer assim, e também porque, aos condenados, recusava-se sepultura (¹) e os bens eram confiscados, enquanto que aos que tiravam a própria vida respeitava-se o testamento (²) e dava-se sepultura ao corpo, como recompensa." (³)
Ora, havia condenados que acabavam presos antes que tivessem tempo de fazer a opção pelo suicídio. Alguns, em desespero, conta-se, escapavam um instante aos guardas e arremessavam-se contra a parede mais próxima, fazendo a própria cabeça em pedaços...
Sêneca, professor de Nero, e Petrônio, escritor (⁴), são exemplos de romanos que abriram as veias; Oto, imperador, perfurou o coração com uma adaga, e Marco Antônio, o do Segundo Triunvirato e amante de Cleópatra, cravou a espada em si mesmo. Quanto a Nero, há controvérsias. Parece que tinha a intenção de usar a espada ou abrir as veias, mas acabou morto por um soldado, que (talvez) tenha obedecido a uma ordem do próprio imperador. Não era, no entanto, nenhum caso que levasse a humanidade a grandes lamentações.
Ah, duas coisas que devem ser lembradas: a prática de abrir as veias era também usual entre mulheres; a ascensão do cristianismo no Império foi, aos poucos, debelando, entre os romanos, a moda dos suicídios em nome da honra.

(1) Para os romanos era crucial um sepultamento digno junto aos antepassados, pois só assim seriam celebrados como lares por seus descendentes.
(2) Quanto à distribuição dos bens.
(3) TÁCITO, Annales. Tradução de Marta Iansen exclusivamente para uso no blog História & Outras Histórias.
(4) Autor de Satyricon, obra fortemente desaconselhada para menores. Quanto aos adultos, só é leitura para os que tiverem estômago para tanto.


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