No Brasil, a escravidão foi hipocritamente descrita como um modo de levar africanos ao conhecimento do Evangelho - isso nos tempos coloniais. Passou a ser vista como um mal necessário, porque o País precisava de mão de obra. Mais tarde, ainda, já por meados do Século XIX, a pressão interna e externa pela abolição conduziu à ideia de que, em última instância, a escravidão era uma grande desgraça, mas que somente deveria ser extinta de forma gradual, para evitar uma calamidade na economia.
Em um livro de leitura com o título de Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade, destinado às crianças que recebiam instrução primária no Império do Brasil, a autora, Guilhermina de Azambuja Neves, explicava:
"A escravidão é uma coisa contrária à religião de N. S. Jesus Cristo, e se a temos entre nós é porque nossos maiores, por falta de quem lavrasse a terra, mandaram buscar escravos em África.
Quando nascemos já achamos este mal; a única coisa que podemos fazer é extingui-lo, isso pouco a pouco, para evitar grandes prejuízos e desordens.
Por uma lei devida aos esforços de alguns brasileiros, ilustres patriotas, são livres todos os que agora nascem sob o belo céu de nossa pátria.
Assim, em poucos anos não haverá mais escravos no Brasil; e, mais cedo ainda veríamos realizada tão generosa ideia, se todos se compenetrassem da verdade do que fica dito." (¹)
A "lei devida aos esforços de alguns brasileiros, ilustres patriotas", citada pela Professora Guilhermina era, evidentemente, a de 28 de setembro de 1871, conhecida como "Lei do Ventre Livre", embora não tratasse apenas da liberdade dos filhos de mulheres escravas (²). Porém, ao contrário do sugerido pelo título da lei, e do que afirmava D. Guilhermina, não eram exatamente livres todos os que nasciam "sob o belo céu de nossa pátria". Embora esta postagem venha a ser um tanto longa, creio que valerá a pena analisar alguns aspectos da Lei de 1871, para que os senhores leitores percebam que, na verdade, servia ela antes para tergiversar sobre a abolição, do que para pôr um fim ao sistema de trabalho cativo.
Vamos "à letra da lei":
"A Princesa Imperial Regente, em nome de S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império, que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:
Art. 1 - Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta Lei, serão considerados de condição livre.
§ 1. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de vinte e um anos completos.
No primeiro caso, o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei."
Vejam os senhores leitores que, de saída, ficava claro que o "nascimento livre" dos filhos das escravas, era uma farsa, porque o menino ou menina estava obrigado a trabalhar para o senhor de sua mãe até à idade de vinte e um anos completos!
Sim, é fato que alguns senhores preferiam a indenização do Estado, porque entendiam que essas crianças, nem totalmente livres e nem completamente escravas, acabam sendo elementos de desordem dentro da instituição escravista, mas isso não muda, nem de leve, o espírito que inspirou o texto da Lei, que ainda acrescentava:
"§ 2. Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária [...]."
Ora, se era preciso que o menor pagasse para não servir, é porque ainda não era livre! Imaginava-se que, aqui, poderiam intervir as sociedades abolicionistas, provendo recursos para a completa liberdade das crianças nascidas após a aprovação da Lei.
Mencionemos, de passagem, este outro parágrafo, que tratava da libertação (evidência da não-liberdade) de crianças que fossem injustamente castigadas pelos respectivos senhores:
"§ 6. Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1, se por sentença do juízo criminal reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos."
Cabe agora considerar o que acontecia aos menores cujos senhores preferissem receber do Estado os 600$000 de indenização:
"Art. 2 - O governo poderá entregar a associações, por ele autorizadas, os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas ou tirados do poder destes em virtude do Art. 1 § 6.
§ 1. As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de vinte e um anos completos e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:
1. A criar e tratar os mesmos menores.
2. A constituir para cada um deles um pecúlio, consistente na quota que para este fim for reservada nos respectivos estatutos.
3. A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação."
Ainda aqui mostra-se que nenhum filho de mãe cativa era de fato livre antes de ter vinte e um anos, já que as associações autorizadas a receber os menores podiam valer-se de seus serviços ou mesmo cedê-los a terceiros, ainda que estivessem sob algumas obrigações. Volto a insistir, pois, na questão de que o nome "Lei do Ventre Livre" é, em absoluto, incorreto, e apenas servia para camuflar o drama da escravidão, numa tentativa de fugir a uma solução definitiva para a questão do trabalho no Brasil.
Para concluir, penso que alguns dos leitores devem ter-se perguntado como seria possível determinar quem era nascido após a entrada em vigor da Lei de 28 de setembro de 1871, e que teria, portanto, direito aos duvidosos benefícios dela. Nesse tempo, os registros civis de nascimento eram ainda desconhecidos no Brasil, e o que determinava a existência de alguém era, na prática, o registro de batismo por um sacerdote católico, de modo que foi aos padres que se incumbiu a obrigação de escriturar estritamente os nascimentos dos filhos de escravas:
Art. 8. § 5. Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro dos nascimentos e óbitos dos filhos de escravas nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000."
Agora, leitores, vamos à conclusão.
A Lei do Ventre Livre foi sancionada em 28 de setembro de 1871, de modo que um menino ou menina (³) que nascesse imediatamente após essa data, somente seria de fato livre aos vinte um anos de idade - ou seja, em 1892. Ora, com a Lei Áurea, de maio de 1888, estaria livre antes disso, e não em virtude da Lei do Ventre Livre. Certo, nós só sabemos porque vivemos mais de um século mais tarde, mas apenas noto este fato para que todos vejam o quanto de falácia havia, afinal de contas, na tal proposta de abolição gradual.
A Lei do Ventre Livre foi sancionada em 28 de setembro de 1871, de modo que um menino ou menina (³) que nascesse imediatamente após essa data, somente seria de fato livre aos vinte um anos de idade - ou seja, em 1892. Ora, com a Lei Áurea, de maio de 1888, estaria livre antes disso, e não em virtude da Lei do Ventre Livre. Certo, nós só sabemos porque vivemos mais de um século mais tarde, mas apenas noto este fato para que todos vejam o quanto de falácia havia, afinal de contas, na tal proposta de abolição gradual.
(1) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 54 e 55. O exemplar consultado pertence ao acervo da BNDigital.
(2) Entre outros assuntos, dispunha, também, sobre as condições para que escravos adultos comprassem a própria liberdade, bem como sobre o estabelecimento de sociedades filantrópicas com a finalidade de ajudar escravos na obtenção de um pecúlio para a liberdade.
(3) Filho ou filha de mãe escrava.
(3) Filho ou filha de mãe escrava.
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