quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando um escravo que alguém havia comprado podia ser devolvido?

Escravo - desenho de M. Rugendas (²)

Era possível devolver um escravo que alguém houvesse comprado? As Ordenações do Reino diziam que sim, conforme o Livro 4º, Título XVII:
"Qualquer pessoa que comprar algum escravo doente de tal enfermidade que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder da tal enfermidade, contanto que cite ao vendedor dentro de seis meses do dia que o escravo lhe for entregue." (¹)
Parece tudo muito claro e simples, mas, como é comum no mundo dos negócios, podia haver divergências de interpretação, de modo que a lei prosseguia, tratando de alguns casos particulares. O § 1 do mesmo Livro e Título estipulava que a devolução não seria admitida se, no ato da venda, o comprador estivesse ciente da doença do escravo ou se, não o sabendo, a doença não incapacitasse para o trabalho.
Vícios não seriam motivo para devolução (conforme o § 2), a menos que o vendedor afirmasse que o escravo não tinha vícios; entretanto, se o escravo fosse conhecido por ter fugido anteriormente e o comprador não fosse disso informado, então poderia o novo dono pleitear a devolução.
No § 3 determinava-se que a devolução era legítima em caso de escravo condenado à morte ou que já houvesse tentado suicídio "com aborrecimento da vida" [sic!!!]. Pelo § 4 definia-se que podia ser devolvido o escravo comprado com a alegação de que tinha um ofício ("como pintar, esgrimir ou que é cozinheiro"), mas que, em posse do novo senhor, se mostrasse incapaz no dito ofício. Porém havia a ressalva de que a venda seria válida se o escravo tivesse algum conhecimento do ofício, não necessitando ser completamente hábil.
Todos esses regulamentos estavam em vigor para escravos que já se encontrassem cativos em território do Reino. Para os recém-vindos da África, o prazo para devolução era diferente, conforme estipulava o § 7:
"Se o escravo que o comprador quiser enjeitar for de Guiné, que ele houvesse comprado a pessoa que de lá o trouxesse, ou ao tratador do dito trato, ou ao mercador, que compra os tais escravos para revender, não poderá ser enjeitado senão dentro de um mês, que lhe correrá do dia que lhe for entregue [...]."
Se alguém de meus leitores já estiver cansado com tantas minúcias, recomendo um tantinho de paciência. Agora vem o mais "exótico" da legislação, uma mostra perfeita da condição do cativo diante da Justiça e da sociedade na qual, totalmente contra a vontade, era obrigado não só a viver como a trabalhar:
§ 8 - "E o que dito é nos escravos de Guiné, haverá lugar nas compras e vendas de todas as bestas, que por quaisquer pessoas forem compradas, que se quiserem enjeitar por manqueira ou doença. E ainda que os escravos se não podem enjeitar por qualquer vício e falta de ânimo [...], as bestas se podem enjeitar pelos tais vícios ou faltas de ânimo, assim como se sem causa e não lhes sendo feito mal algum, se espantarem, ou empinarem, ou rebelarem."
Não, não acabou, senhores leitores. A tal comparação ia das coisas animadas para as inanimadas, conforme o § 10:
"E as coisas que não são animadas, quer sejam móveis, quer de raiz, se poderão enjeitar por vícios ou faltas que tenham, assim como um livro comprado no qual falta um caderno ou folha em parte notável, ou que está de maneira que se não possa ler, ou um pomar ou horta que naturalmente, sem indústria dos homens, produz plantas ou ervas peçonhentas."

(1) Ordenações do Reino, conforme edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII e, portanto, estiveram plenamente em vigor no Brasil durante todo o Período Colonial. Mesmo após a Independência (1822), não era raro que juristas se reportassem a elas.
(2) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dependência e controle das forças da natureza

Tempestade sobre Brasília - DF

Os povos do passado eram, em termos de sobrevivência, muito mais dependentes da boa vontade da natureza do que humanidade o é hoje em dia, já que tinham menos controle sobre ela. Exemplificando: Se chovia muito, ou se havia pouca chuva, as colheitas eram menores do que o necessário à subsistência da população e, desse modo, era provável que houvesse gente que acabaria morrendo de fome. Emigrar, ainda que temporariamente, podia ser uma solução (quando isso era possível). Havia também um outro fator a considerar: refugiados famintos nem sempre eram bem recebidos. Podiam, até, ser expulsos ou mortos.
Além disso, não havia tecnologia suficiente para a conservação de alimentos por um longo período, o que significa que, mesmo em caso de uma safra excepcional em um ano, podia muito bem ocorrer que, na temporada seguinte, houvesse escassez de alimentos.
Que falar, então de pragas que afetavam as lavouras? Ratos, formigas, gafanhotos podiam, em pouquíssimo tempo, jogar por terra as mais felizes esperanças de fartura e prosperidade.
A maior das catástrofes sobrevinha na ocorrência de anos sucessivos de colheitas magras. Em última análise, o fenômeno podia resultar em descrédito para os governantes e em ruína para uma civilização.
A quem culpar? Os povos da Antiguidade não tinham, como se sabe, uma profunda compreensão dos fenômenos naturais. Deuses eram associados às atividades comuns da subsistência e, se as coisas andavam mal, duas atitudes eram possíveis: a primeira delas era entender que o(s) deus(es) estavam irritados com seus servidores humanos e manifestavam raiva através de catástrofes. Era, portanto, necessário aplacar a ira das divindades com sacrifícios que, não raro, vinham a ser até mesmo de vidas humanas. De crianças, por exemplo.
Uma outra atitude era a de atribuir a culpa das desgraças à incompetência e/ou má vontade dos deuses. Não é por acaso que, sincreticamente, em algumas regiões do mundo, mesmo sob tradição cristã, se usasse (ou ainda se use) colocar imagens de santos de cabeça para baixo, ou mergulhados em água, se deixasse de chover ou se viessem inundações.
Hoje, convenhamos, a humanidade tem uma compreensão muito maior do que ocorre na natureza. Conhecer, porém, não significa, necessariamente, controlar. E, se não podemos controlar os fenômenos naturais ao nosso gosto - alguém aí é capaz de fazer chover?!!! (não uma chuvinha magra qualquer, mas chuvas fortes e persistentes que encham os reservatórios e acabem com certos problemas) - temos nos tornado especialistas em dificultar as coisas, arrasando este planeta e esgotando recursos naturais, muitas vezes para propósitos fúteis. Ora, o preço de tanta inconsequência, alto demais, terá de ser pago.
Há muita gente que não tem a menor ideia quanto à origem das coisas de que se alimenta. Não sabe de onde vêm, muito menos como e por quem são produzidas. Uma vez, em conversa com um grupo de adolescentes, notei, não sem espanto, que eles nem sequer imaginavam que azeitonas vinham de árvores. A verdade é que, cada vez mais distantes da natureza, muitos de nós já não se reconhecem como parte dela. Não faz muito tempo, indo a passeio a um "parque ecológico" (!!!), vi uma placa que dizia: "Não perturbe a natureza". Ora, que espécie de seres, afinal, somos nós?
Muitos são consumistas por estilo de vida. Outros porque foram ensinados a viver assim. Em alguns países, o consumo é incentivado para garantir que a economia "continue a girar". A maioria da população nem tem uma ideia correta do impacto ambiental de tanto consumo. Sequer sabe que a civilização ocidental já enfrenta, há tempos, sérios problemas com a quantidade monstruosa de lixo que produz.
Em que resultará tudo isso? Creio que não teremos de esperar muito por uma resposta.


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sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Gauleses novidadeiros

Novidadeiros e novidadeiras de plantão: leiam isto e vejam como se comportavam seus equivalentes da Antiguidade!
"É costume entre os gauleses obrigar a todo viajante, quer ele queira, quer não, a parar entre eles para relatar as novidades; fazem o mesmo aos mercadores quando chegam às suas povoações, já que o povo os cerca e passa a interrogá-los insistentemente para que digam de que região vieram e o que sabem de lá. Ocorre, por vezes, que apenas com base nesses rumores, decidem assuntos muito relevantes, o que os leva, logo, a que se arrependam, já que, apenas para não desagradá-los, os viajantes lhes respondem alguma coisa." (*)
Foi ninguém menos que Júlio César - o romano do Primeiro Triunvirato - quem escreveu o trecho acima, em De Bello Gallico, explicando o quanto os gauleses, por amor às novidades, chegavam a ser importunos, cada vez que um viajante se aproximava. Porém, se não queremos ser injustos com os habitantes das Gálias no primeiro século antes de Cristo, devemos assumir que, naquele tempo, eram poucas as pessoas que viajavam e, portanto, poucas também as oportunidades para que populações sedentárias ou mesmo seminômades se pusessem bem informadas. É certo que a visita de um mercador, que corria o mundo comprando em um lugar para vender em outro, não podia de modo algum ser desperdiçada. Salvo alguma (tenebrosa) exceção, coisa semelhante devia ocorrer com muitos outros povos e culturas da Antiguidade, quando se desejava saber um pouquinho do que acontecia em lugares remotos.

(*) CÉSAR, Caio Júlio. De Bello Gallico. Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Taipa de pilão e taipa de mão

É muito comum, em autores do Período Colonial, a referência a construções que eram feitas de taipa. O Padre Anchieta, por exemplo, ao tratar das fortificações que se faziam no Rio de Janeiro na luta contra os franceses (que também queriam ficar por lá), informou que "...tinham já feito um baluarte mui forte de taipa de pilão com muita artilharia dentro, com quatro ou cinco guaritas de madeira e taipa de mão, todas cobertas de telha que trouxe de São Vicente, e faziam-se outras e outros baluartes, e os índios e mamelucos faziam já suas casas de madeira e barro, cobertas com umas palmas feitas e cavadas como calhas e telhas, que é grande defensão contra o fogo." (¹) Essa carta, datada de 9 de julho de 1565, tendo o Padre Diogo Mirão como destinatário, foi escrita estando Anchieta na Bahia.
Já no Século XIX, o Padre Ayres de Casal observou, sobre os edifícios da cidade de São Paulo de seus dias, que eram "quase geralmente de taipa, isto é, de terra como greda acalcada entre duas pranchas, e branqueadas com tabatinga." (²) Antes de prosseguir, talvez seja útil lembrar que tabatinga é um tipo de argila que, naqueles dias, era comumente empregada para pintura de paredes, se não houvesse cal disponível.
Fragmento de construção em taipa de mão (pau a pique)
Ora, que coisa, afinal, é a taipa, à qual fazem referência tanto Anchieta quanto Ayres de Casal?
A chamada "taipa de pilão", empregada em construções de maior porte, consistia em argila que, posta em caixas, era socada até tornar-se uma massa muitíssimo resistente. Não há aqui exagero nenhum: construções de taipa de pilão (como igrejas, por exemplo, dos Séculos XVII e XVIII) têm chegado em boa forma até hoje, e isso sempre enfrentando as adversidades climáticas. Já a "taipa de mão", mais conhecida no Sudeste do Brasil como pau a pique, era frequentemente empregada para a construção de pequenas residências. As paredes eram feitas a partir de grades de madeira fixadas no solo e devidamente preenchidas com argila. Em localidades do interior do Brasil ainda é possível encontrar casas feitas de acordo com essa técnica.
Tanto a taipa de pilão quanto a de mão não são técnicas desenvolvidas no Brasil. Elas foram trazidas pelos colonizadores portugueses e, como é lógico, adaptadas para uso local. Podem ser encontradas em muitos lugares do mundo, já que requerem pouco material e o resultado, principalmente no caso da taipa de pilão, é bastante satisfatório.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 253.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 234.


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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Decepções dos jesuítas na catequese de meninos indígenas

Em uma carta escrita em São Vicente, datada de março de 1555, José de Anchieta assinalou, referindo-se ao Colégio de Piratininga:
"Temos uma grande escola de meninos índios, bem instruídos em leitura, escrita e em bons costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores. São eles a consolação nossa, bem que seus pais já pareçam mui diferentes nos costumes dos de outras terras; pois que não matam, não comem os inimigos, nem bebem da maneira por que dantes o faziam." (¹)
Os meninos índios, porém, logo cresceram, e lá se foi a "consolação" dos jesuítas - já adolescentes, os catecúmenos não mais queriam saber da rotina do colégio dos padres, e logo iam com seus parentes às práticas que, para os povos indígenas, caracterizavam os verdadeiros homens adultos. É ainda Anchieta quem relata, em uma outra carta, enviada ao Geral Diego Laynez em 1º de julho de 1560:
"Dos moços que falei no princípio foram ensinados não só nos costumes cristãos, cuja vida quanto era mais diferente da de seus pais, tanto maior ocasião dava de louvar a Deus e de receber consolação, não queria fazer menção por não refrescar as chagas, que parecem algum tanto estar curadas; e daqueles direi somente que chegando aos anos da puberdade, começaram a apoderar-se de si, vieram a tanta corrupção, que tanto excedem agora a seus pais em maldade quanto antes em bondade, e com tanta maior sem-vergonha [sic] e desenfreamento se dão às borracheiras e luxúrias, quanto com maior modéstia e obediência se entregavam dantes aos costumes cristãos e divinas instruções. Trabalhamos muito com eles para os reduzir ao caminho direito, nem nos espanta esta mudança, pois vemos que os mesmos cristãos procedem da mesma maneira." (²)
Será bom ressaltar que casos análogos ocorriam em quase todos os lugares nos quais os jesuítas estabeleciam missões, de modo que não será nada difícil imaginar quão frustrante era, para eles, observar que seus esforços resultavam inúteis. Lembrem-se os senhores leitores de que, no Século XVI, não era fácil empreender uma viagem à América, com a certeza quase absoluta de jamais retornar. Se é verdade que a Europa da época não era exatamente o melhor dos mundos, vir ao Continente Americano significava defrontar-se com o desconhecido, sem dispor dos recursos habituais para a sobrevivência. Vale reforçar, ainda, que, independente do que se pense hoje da catequese de indígenas, os jesuítas do Século XVI acreditavam com firmeza no trabalho que faziam e nele empregavam seus melhores esforços, daí porque a "deserção" dos meninos indígenas devia assumir um aspecto em extremo decepcionante. Disso resultou, portanto, uma gradual mudança de postura dos missionários. Se no princípio da catequese a ideia era empregar toda a doçura e caridade cristãs, não demorou para que os padres "jogassem a toalha", de modo que, em carta datada de 16 de abril de 1563, novamente endereçada ao Geral Diego Laynez, já vamos encontrar Anchieta disposto à adoção de práticas coercitivas no trato com os indígenas:
"Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta Capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle eos intrare." (³)
A Europa daqueles dias defrontava-se com a Reforma Protestante, com o Concílio de Trento, com a propagação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Ora, se era aceitável queimar hereges no Velho Mundo, por que pareceria estranho ou impróprio forçar os índios à conversão?

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 79.
(2) Ibidp. 156.
(3) Ibid.


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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Primeiro os meninos indígenas

No Século XVI, os meninos indígenas tinham a preferência dos jesuítas na catequese


Os adultos, primeiro, ou os meninos? Esta questão se impôs aos jesuítas que, em meados do Século XVI, começavam a desenvolver a catequese de povos indígenas do Brasil. Depois de breve tempo, chegou-se à conclusão de que os meninos eram "mais aptos" para as pretensões dos missionários, uma vez que os homens feitos dificilmente deixavam os hábitos e costumes nos quais haviam crescido e passado toda a existência.
Isso não quer dizer que jesuítas não se dessem ao trabalho de tentar a doutrinação de adultos. Era apenas uma questão de prioridade, já que as crianças (e, por vezes, também as mulheres indígenas) pareciam mais receptivas que os escolados guerreiros nativos, orgulhosos das práticas recebidas dos ancestrais.
Pelas cartas que jesuítas enviavam à Europa - aos superiores ou aos irmãos de Ordem - sabemos alguma coisa sobre  a rotina desses primeiros tempos de catequese. Em uma carta de Anchieta, datada de 1555, destinada aos irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, pode-se ler:
"Estes índios, entre quem estamos agora, nos dão seus filhos para que os doutrinemos, e pela manhã, depois da lição, dizem ladainhas na igreja, e à tarde, a Salve; aprendem as orações em português e em sua própria língua (...)." (¹)
Observemos, de passagem, um fato interessante que pode ser depreendido do trecho acima: chegados ao Brasil em 1549, já em 1555 eram alguns dos jesuítas capazes de proporcionar ensino tanto em português quanto na chamada "língua geral", majoritariamente empregada por indígenas das regiões litorâneas.
Também de 1555 é esta informação que aparece em outra carta de Anchieta, que nos oferece uma ideia do currículo adotado, incluindo leitura, escrita e, por suposto, doutrinação religiosa:
"Estamos, como lhes hei escrito, nesta aldeia de Piratininga, onde temos uma grande escola de meninos, filhos de índios, ensinados já a ler e escrever, e aborrecem muito os costumes de seus pais, e alguns sabem ajudar a cantar a missa: estes são nossa alegria e consolação, porque seus pais não são mui domáveis [sic], posto que sejam mui diferentes dos das outras aldeias, porque já não matam nem comem contrários, nem bebem como dantes." (²)
Em 1556 Anchieta ainda escreveria, deixando bem claro que a doutrinação era o primeiro e maior cuidado:
"No que diz respeito à doutrinação dos meninos, suficientemente me explanei nas cartas antecedentes. Duas vezes por dia se reúnem na escola, e todos eles, principalmente de manhã, porque depois do meio-dia, cada um precisa prover à sua subsistência, caçando ou pescando; e se não trabalharem, não comem. O principal cuidado que deles se tem, consiste no ensino dos rudimentos da fé, sem omitir o conhecimento das letras, às quais tanto se afeiçoam, que se nessa ocasião se não deixassem seduzir, talvez outra se não pudesse encontrar. Em matéria de fé, respondem por certas fórmulas que se lhes ensinam; alguns, mesmo sem elas." (³)
É significativa a observação de que, à tarde, não havia aulas, uma vez que competia aos meninos a obrigação de caçar e pescar para o próprio sustento; parece também que o velho (mas muitas vezes eficiente) método grego de ensinar mediante perguntas e respostas era empregado em terras brasílicas por missionários jesuítas que se viam, de certa forma, como repetidores na América da missão desenvolvida pelos apóstolos. Não demoraria, porém, para que os padres, tão esperançosos quanto a seus catecúmenos, tivessem uma amarga decepção. Na próxima postagem trataremos disso.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 72.
(2) Ibid., p. 85.
(3) Ibid., p. 89.


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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Escravos vendedores

Durante a escravidão, havia escravos especializados em várias tarefas


"Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação, como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.- Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá."
Machado de Assis, Dom Casmurro

Escrava vendedora de
galinhas (²)
Assim como os trabalhadores livres, escravos podiam também ser especializados em alguma tarefa, fosse porque tivessem aprendido um ofício, fosse porque os respectivos senhores os destinavam a certos trabalhos em particular. Desse modo, havia escravos vendedores, escravos "de recados", escravos (especialmente escravas) para afazeres domésticos, escravos "do eito", ou seja, da lavoura, e assim por diante.
Quanto aos ofícios, propriamente, havia escravos sapateiros, pedreiros, barbeiros... Disso decorria que o proprietário, às vezes, alugava o(s) escravo(s) para que prestasse(m) serviço a outras pessoas. É claro que o pagamento pelo trabalho ia para as mãos do senhor e não do escravo, embora certos acordos não fossem proibidos. Não havia nenhum regulamento que impedisse um senhor de prometer ao escravo uma parte dos ganhos, uma "comissão", no caso de escravos encarregados da venda de um produto qualquer.
Viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil durante o Século XIX notaram que era grande o número de escravos que, pelas ruas do Rio de Janeiro, apregoavam uma variedade de artigos para venda. Há registros escritos e iconográficos desse costume. Como exemplo, vejamos um trechinho anotado pelo príncipe Adalberto da Prússia:

Escrava vendedora de frutas (³)
"Frequentemente os negros que passavam carregavam na cabeça caixas envidraçadas com artigos de armarinho para vender; muitas vezes vendendo roletes de cana-de-açúcar também. Muito originais e quase grotescos são os pregões com que gritam ou cantam apregoando sua mercadoria." (¹)
Havia, é certo, escravas com enormes tabuleiros de doces, havia quem vendesse bonecas de pano e outros brinquedos rústicos - coisas que faziam a delícia das crianças da época. Havia também vendedores de café, caldo de cana, limonada... A lista é enorme. A maior parte das pessoas achava tudo isso normal, sem levar em conta que, afinal, os vendedores eram escravos. Não trabalhavam para si mesmos, e sim para o lucro dos respectivos senhores.


Escravo vendedor de doces (⁴)
(1) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, pp. 30 e 31.
(2) Escrava vendedora de galinhas no Rio de Janeiro, provavelmente Século XIX. O original pertence ao acervo da BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização.
(3) _____________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence ao acervo da BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Escravo vendedor de doces, de acordo com Joaquim Lopes de Barros, 1840/41. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.






segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Por que foi tão difícil derrotar Canudos e o Conselheiro

"De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem consigo milhares de fanáticos. Também eu o disse aqui, há dois ou três anos, quando eles não passavam de mil ou mil e tantos. Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se despega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até a morte. Que vínculo é esse?"
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 31 de janeiro de 1897

O chamado Movimento de Canudos, na última década do Século XIX, foi, certamente, muito mais complexo do que, à época, se acreditou. Os rebeldes eram pintados como um bando de desordeiros, sem nenhuma organização, acostumados à pilhagem do que achavam nas propriedades vizinhas - motivo pelo qual deviam ser rápida e facilmente derrotados.
Os primeiros enfrentamentos, contra forças policiais, depois contra homens do Exército, logo demonstraram o quanto essa visão simplista estava equivocada.
Os "jagunços" (assim eram chamados os seguidores de Antônio Conselheiro) conheciam muito bem o terreno no qual lutavam. Os militares mandados ao sertão da Bahia, por sua vez, estavam obrigados a lutar em terreno que lhes era completamente desconhecido, com fardamento inadequado e, graças à imprevidência do comando, submetidos à mais absurda falta de suprimentos, inclusive para alimentação.
Cada derrota das forças governamentais era duplamente proveitosa aos homens do Conselheiro. Primeiro, caía-lhes nas unhas todo o armamento que os soldados, em fuga, deixavam para trás. Depois, crescia no imaginário da soldadesca a superstição de que Canudos jamais cairia e, portanto, era inútil lutar. Assim desmoralizadas, as tropas estavam mentalmente incapacitadas para a luta. Um autêntico desastre. Quem quiser conhecer o assunto em detalhes, pode ler Os Sertões (de Euclides da Cunha), em sua terceira e última parte.
Enquanto isso, a imprensa, nas maiores cidades do Sudeste, esperava avidamente por notícias sensacionais do teatro de guerra. Não tardou que houvesse gente insensata o bastante para sugerir que monarquistas de peso apoiavam a revolta. Mais ainda, talvez houvesse interesse do governo argentino em favorecer a gente do Conselheiro para desestabilizar o governo do Brasil... Chegou-se a supor que os jagunços eram abastecidos com armamento embarcado em Buenos Aires!...
Que ninguém duvide: os boatos, às vezes, vão longe demais e podem até ocasionar catástrofes.
Por seu turno, o Ministério da Guerra parecia nunca chegar à consciência exata do que deveria fazer. Uma boa noção do que era a falta de entendimento quanto às condições da guerra no sertão é dada pela famosa Quarta Expedição (comandada pelo General Artur Oscar), que intentou conduzir pela caatinga um canhão que pesava nada menos que 1700 kg, transportado, sob sol escaldante, por vinte juntas de bois. Os bois (infelizes!...) foram depois carneados, já que os soldados estavam, ainda esta vez, sem ter o que comer. O maior lucro desse empreendimento foi fazer crescer, entre os sertanejos, a ideia de que era preciso destruir a "matadeira", nome que deram ao canhão.
As táticas europeias de guerra, que o comando insistia em utilizar, mostraram-se uma estupidez diante de opositores que atuavam isoladamente ou em pequenos grupos, valendo-se do conhecimento excelente que tinham do terreno. Não foi de um dia para outro que os estrategistas da Capital vieram a compreender que, em Canudos, não havia dois exércitos formais, lutando frente a frente. Como os acontecimentos demonstraram, o arraial foi derrotado em combate sangrento, nada convencional, que incluiu cortar, aos jagunços, o acesso a qualquer suprimento de água. E cortar a garganta, também, aos que caíam prisioneiros. Sabia-se que os seguidores do Conselheiro, que não temiam morrer lutando por seu líder, tinham, no entanto, verdadeiro horror à ideia de que seriam degolados, em virtude de algumas superstições que, entre eles, eram correntes.
Antônio Conselheiro, o líder místico, morreu em 22 de agosto de 1897. Esse fato, no entanto, não pôs fim à Guerra. A luta somente chegou a termo na tarde do dia 5 de outubro de 1897. Isso é evidência de que a liderança "militar" e a "religiosa" em Canudos estavam sob distintas mãos.
Sem, nem de longe, pretender esgotar o assunto, resta considerar a atração que Antônio Conselheiro exercia sobre as multidões de flagelados pela seca. Havia em suas pregações místicas vestígios de sebastianismo (sim!) e ideias de oposição à República, mas sua ascendência sobre a gente do sertão não teria a mesma intensidade se não fossem as condições da miséria mais torturante a que estavam submetidos os camponeses, em paralelo à geral falta de instrução entre eles. O sertão era, para as autoridades republicanas, uma realidade distante. O movimento de Canudos acordou os governantes, ao menos momentaneamente, para o drama dos retirantes e da seca.


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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Queijadinhas para o padre José

É sabido que, em alguns lugares, durante o Período Colonial, os padres jesuítas não eram muito estimados pelos colonos, ocorrendo não poucos entreveros com os religiosos por questões ligadas à escravização dos índios. De um lado, os colonos forçavam os indígenas ao trabalho, alegando que precisavam da mão de obra; de outro, os padres insistiam que o cativeiro era injusto e impedia a catequese. Rebatendo, diziam os colonos que, nas reduções, os jesuítas também se serviam do trabalho dos índios, a pretexto da catequese... E nesse rumo seguia um confronto interminável, com não poucos episódios dramáticos (como, por exemplo, a expulsão dos jesuítas de São Paulo em 1640).
Pequena imagem do Padre
José de Anchieta
em porcelana, c. 1940 (³)
Ora, se devemos crer no que escreveu o Padre Fernão Cardim sobre as viagens do visitador jesuíta, Padre Cristóvão de Gouvêa, nos anos oitenta do Século XVI, foram os jesuítas, por onde quer que passavam, muito bem recebidos (e Cardim registra esse fato com uma certa admiração, o que demonstra que talvez os religiosos estivessem aguardando outra coisa). Conta-nos, até, um episódio bastante saboroso (em mais de um sentido, como se verá), ocorrido em uma ocasião na qual, tendo ido às "visitas", retornavam bastante fatigados:
"Dali tornamos à vila, e vindo encalmados por uma praia, eis que desce de um alto monte uma índia vestida como elas costumam, com uma porcelana da Índia cheia de queijadinhas de açúcar, com um grande púcaro d'água fria, dizendo que aquilo mandava seu senhor ao padre provincial José (...)." (¹)
Neste caso, pode-se dizer que os padres estavam recebendo mostras de grande apreço, não é mesmo?
O "Padre José", provincial, citado por Cardim é, provavelmente, o Padre José de Anchieta, que exerceu o provincialato jesuíta no Brasil até 1587; dele, o mesmo Cardim diria, em seguida:
"É este padre um santo de grande exemplo e oração, cheio de toda a perfeição, desprezador de si e do mundo; uma coluna grande desta Província, e tem feito grande cristandade e conservado grande exemplo; de ordinário anda a pé, nem há retirá-lo de andar sendo muito enfermo. Enfim, sua vida é vere apostolica." (²)

(1) CARDIM, Pe. Fernão S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 23 e 24.
(2) Ibid, p. 24.
(3) Do acervo do Museu Histórico e da Porcelana de Pedreira - SP.


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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Sobre o açúcar que era posto a secar no terreiro

Muitos engenhos de açúcar do Período Colonial adotavam o procedimento de secar o açúcar produzido em um terreiro - ao ar livre, portanto. Esse método podia ter sérios inconvenientes, tanto para o rendimento da produção quanto para a higiene do produto. É o que denunciava José Caetano Gomes, em sua Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar, escrita em fins do Século XVIII:
"A forma de secar o açúcar no terreiro é péssima; além de ser preciso ter sentinela, ainda que quem o vigia seja um Argos (¹), não impede que se furte muita parte: a formiga, a galinha, o cão, o porco, todos o comem; o vento faz depositar nele mil impurezas; se há chuvas continuadas, o que sucede muitas vezes, não podendo as formas sair da casa de purgar, mela o açúcar nelas; a estufa salta aos olhos, porém ninguém a pôs ainda em prática." (²)
Gostaria de saber se os apreciadores do açúcar produzido no Brasil, que o compravam em mercados na Europa, tinham alguma ideia de como era ele produzido... Vale a mesma questão para uma série de coisas que todos nós hoje apreciamos, para as quais será melhor restringir a curiosidade, apreciando apenas o sabor.
Por outro lado, não há dúvida de que a proposição de José Caetano Gomes era boa - estufas resolveriam o problema. Mas, no Brasil Colonial, toda a produção era rudimentar. Muitos proprietários de engenho tinham pouca ou nenhuma instrução e, por isso, estavam incapacitados para a compreensão de novos métodos e processos. Não percebiam que um investimento podia, no futuro, trazer lucros significativos. Era corrente entre eles o dito: "Quero cana mil, e não gentil". (³)

(1) Referência a Argos Panoptes, personagem da mitologia grega dotado de uma centena de olhos.
(2) GOMES, José Caetano. Memória Sobre a Cultura e Produtos da Cana-de-Açúcar. Lisboa: Casa Literária do Arco do Cego, 1800, p. 46.
(3) Ibid., p. 5.


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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Senhores podiam mandar seus escravos para a Casa de Correção e para o Calabouço

Escravo sendo conduzido à Casa de Correção (³)

Um escravo desobediente podia ser mandado, por seu próprio senhor, para a prisão - a famosa "Casa de Correção", lugar para o qual eram também enviados os escravos que cometessem delitos em áreas públicas. Daniel P. Kidder, missionário e pastor metodista que viveu na capital do Brasil nos últimos anos do Período Regencial, observou, a respeito das Casas de Correção:
"É para aí que se mandam os escravos desobedientes ou insubordinados. Os negros são recebidos a qualquer hora do dia ou da noite e aí ficam até que os seus senhores os venham reclamar. Seria realmente de admirar se de vez em quando não se dessem aí cenas de requintada crueldade." (¹)
Já o calabouço era reservado para fugitivos, ainda que os senhores eventualmente também mandassem escravos para lá. Tem-se também descrição de Daniel P. Kidder:
"Trata-se de masmorra construída numa ponta de terra que se projeta para a baía, mesmo em frente à cidade [Rio de Janeiro], onde os escravos fugitivos são encarcerados até que sejam procurados pelos respectivos donos." (²)
Pode parecer estranho que proprietários de escravos, interessados antes no trabalho dos cativos que em mantê-los presos, decidissem mandá-los ao calabouço. No entanto, devemos ter em conta que a horrível prisão servia para aterrorizar, desencorajando atos de desobediência ou fugas. Entrava em ação, também, quando um escravo recém-chegado ao mercado parecia rebelde à sua "nova condição". Tanto é verdade que, uma das personagens do universo machadiano, Cotrim, um comerciante (entenda-se: contrabandista) de escravos, que aparece em Memórias Póstumas de Brás Cubas (cunhado da personagem principal), é descrito como alguém que tinha inimigos, em decorrência das maneiras pouco suaves, atribuindo o autor, porém, esses traços à natureza de sua "ocupação":
"Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais."
Teria Machado escrito essas linhas com uma ponta de cinismo? Não podemos ter certeza em grau absoluto, é claro, mas a ironia da crítica social transparece, a meu ver, até pelo teor sarcástico que, finamente, predomina nas Memórias Póstumas.

Escravos aprisionados no tronco, de acordo com Debret (⁴)

(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 91.
(2) Ibid., p. 94. 
(3) O original pertence ao acervo da BNDigital. A imagem foi editada para facilitar a visualização.
(4) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Quem deveria amamentar os bebês?

Durante muito tempo amamentar bebês humanos foi tarefa delegada a amas de leite, livres ou escravas. As mães, quando tinham posição social elevada, jamais faziam isso. Houve até filósofo que abordasse a questão, tentando mostrar que meninos destinados a liderar a sociedade nunca deveriam ser amamentados pelas próprias mães, pois tal contato com elas seria prejudicial à sua educação.
Diante dessa mentalidade, não deve surpreender a ninguém o fato de que, no Brasil, até boa parte do Século XIX, a amamentação de crianças livres fosse confiada a escravas. A Literatura está repleta de referências a esse costume. Veja-se este trecho, a título de exemplo, da obra As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo:
"Uma noite, por exemplo, levou o crioulo a conversar no terreiro da venda.
Depois de fácil ajuste para um de seus frequentes deboches em senzalas de escravas e sítios ocupados por gente depravada, o Barbudo perguntou:
– Simeão, donde diabo veio o favor que conseguiste de teus senhores? Olha que deveras eles te estimam!
– Minha mãe foi ama de leite da menina – respondeu o crioulo."
Ainda outro exemplo, também de Macedo, em Uma Pupila Rica:
"Não consentem que eu tenha uma amiga, nem que eu desça sozinha ao jardim, nem que saia uma vez de casa, ao menos para levarem-me à igreja: despediram a minha ama de leite que meu pai libertara com a condição de acompanhar-me até o meu casamento: enclausurada e suspeita, as criadas espiam-me..."
Ama de leite (*)
Em uma época na qual havia poucas ocupações socialmente aceitáveis para mulheres de condição livre, mas pobres, e que, portanto, precisavam ganhar o próprio sustento, ser ama de leite era uma solução, temporária, é verdade, mas à qual não poucas recorriam. Valendo-nos, mais uma vez, da Literatura, encontramos em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, este trecho:
" - Olha! pediu ela, faze-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama de leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne Mole, nesta ultima barriga, tomou conta de um pequeno aí na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil reis por mês... E muito bom passadio!..."
Aos poucos, porém, sob influência do pensamento médico e com o fim da escravidão, as expectativas da sociedade iriam mudar. Por um lado, verificou-se que a amamentação era, de fato, muito importante para a saúde do bebê; por outro, passou-se a deplorar que, para isso, as tenras criancinhas fossem entregues aos cuidados de pessoas estranhas. Em nome da higiene e da necessidade, aquilo que se condenara, ou seja, que as mães de elevada posição social amamentassem seus pimpolhos, passou-se a recomendar como um dever sagrado e intransferível. A propaganda logo faria uso desse novo ideário, como, a seguir, constatarão os senhores leitores, através de dois anúncios que ilustram muito bem a questão.
Neste primeiro caso, o anúncio publicado na revista paulistana A Cigarra em dezembro de 1924 afirma sem rodeios o dever materno da amamentação, oferecendo um produto que "realiza este ideal":
 

Já neste outro anúncio, que apareceu em A Cigarra em janeiro de 1928, um outro produto é apresentado na suposição de que favoreceria a saúde das mães que amamentavam seus bebês:



(*) _______________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence ao acervo da BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Sobre os padres que vinham ao Brasil no Século XVI

É de Joaquim Manuel de Macedo (¹) uma curiosa afirmação sobre os padres que, no início da colonização, vinham ao Brasil - diz ele que "os padres entraram com o pé esquerdo na Terra de Santa Cruz" (²). E explica:
"Os padres que naquela época foram chegando não deviam ser dos mais recomendáveis, nem pela sua ilustração, nem por uma grande moralidade, porque os donatários, que no Reino recrutavam nas últimas camadas da sociedade a gente de que precisavam para criar os seus estabelecimentos coloniais, por certo que não teriam mui zeloso cuidado na escolha dos clérigos que fizeram vir."
A situação era de tamanha seriedade que, quando em 1549 vieram os primeiros jesuítas, Nóbrega, um deles, ficou horrorizado com o desregramento que notou entre os "padres seculares" que já andavam pela Colônia. Daí o empenho para que ficasse clara a distinção entre os "padres da Companhia" e os outros.
É fato que o número de sacerdotes era reduzido e de modo algum suficiente para atender a todas as povoações. Era, então, perfeitamente possível que alguém passasse quase a vida toda sem qualquer assistência religiosa, em tempos nos quais a Igreja desempenhava um papel preponderante na sociedade e, por conseguinte, nas ideias que povoavam a cabeça de cada colono. Aprovemos ou não, na época a religião podia ser um fator importante de controle social - uma ferramenta valiosa como freio à má conduta dos colonos, em situações nas quais o Estado era, na prática, ausente. Disso decorria a importância de que os padres fossem exemplos de bom comportamento. Não era, porém, o que usualmente ocorria.
Nóbrega tinha a língua afiada e, em carta datada de 1549, que enviou a seus irmãos de Ordem em Portugal, não economizou nas palavras ao descrever os religiosos que encontrou no Brasil:
"Os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos, porque, além do seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo, e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que são cães, e outras coisas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações. De maneira que nenhum demônio temos agora que nos persiga senão estes. Querem-nos mal porque lhes somos contrários a seus maus costumes, e não podem sofrer que digamos as missas de graça, em detrimento de seus interesses. Cuido que, se não fora pelo favor que temos do governador e principais da terra, e assim porque Deus não o quer permitir, que nos tiveram já tiradas as vidas. Esperamos que venha o bispo, que proveja isto com temor, pois nós outros não podemos por amor." (³)
Até quanto ao bispo que viesse, tinha Nóbrega as suas restrições, já que, escrevendo ao padre-mestre Simão Rodrigues a respeito do prelado que devia receber a dignidade episcopal (⁴), observou: "Venha para trabalhar e não para ganhar." (⁵)
Disso se conclui que Nóbrega estava em plena consciência quanto à enormidade do trabalho de catequese que desejava empreender. Que, ao menos, não viessem padres de má conduta para atrapalhar!

(1) Todo mundo conhece Joaquim Manuel de Macedo como romancista - o homem que escreveu A Moreninha. Mas poucos sabem que, por formação, era médico, e que atuou como professor de História no Imperial Colégio de Pedro II.
(2) MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 231.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 311.
(4) Dom Pero Fernandes Sardinha foi o primeiro bispo do Brasil.
(5) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Op. cit., p. 296.


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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Viagens nos tempos coloniais

Se, no passado, as notícias corriam mundo bem devagar, é também verdade que viajar constituía-se, quase sempre, em uma grande aventura. Qualquer viagenzinha que hoje fazemos, por via aérea, em trinta ou quarenta minutos, podia levar mais ou menos uma semana. Que dizer, então, das viagens mais longas?
Embarcações a vela em mar tempestuoso (²)
Sabe-se, por exemplo, que durante a maior parte do século XVI, apenas um navio fazia, anualmente, a rota entre a Capitania de São Vicente e a Europa. Excluem-se, por suposto, eventuais viagens feitas por piratas e corsários.
Além disso, a navegação a vela tinha seus inconvenientes: não era em qualquer época do ano que se podia viajar. No século XVII considerava-se mais adequado que os navios que iam do Brasil para o Reino iniciassem a rota nos meses de agosto ou setembro. Lembremo-nos de que, diante da fúria do oceano, qualquer nau ou caravela da era de ouro das grandes navegações tinha uma resistência que podia lembrar a de uma casca de ovo, ao menos para quem viajava dentro dela.
Em se tratando de viagens terrestres, sabe-se que, no início do século XVIII, uma viagem de São Paulo às Minas Gerais levava cerca de dois meses; foi o que relatou Antonil:
"Gastam comumente os paulistas desde a vila de São Paulo até as Minas Gerais dos Cataguás pelo menos dois meses..." (¹)
Voltando ao mar, a esquadra que saiu de Portugal em novembro de 1807 com destino ao Brasil, trazendo a família real portuguesa, muitos nobres e mais gente que conseguiu embarcar, era composta por cinco fragatas, dois brigues, duas charruas e sete naus. Acompanhavam-na muitas outras embarcações mercantes. Toda essa gente chegou ao Brasil em janeiro de 1808, depois de uma viagem nada confortável.
Hoje temos a ideia de que viajar pode ser uma ótima opção de lazer. Mas nem sempre foi assim. Viagens eram cansativas, longas, desconfortáveis e, principalmente, arriscadas. Pouca gente tinha recursos e coragem para meter o pé na estrada e ir conhecer o mundo. Não é estranho, portanto, que, para a maioria das pessoas, o mundo fosse mesmo muito pequeno. Um ser humano comum podia passar a vida toda apenas em uma pequena povoação, sabendo do resto do planeta só aquilo que contavam uns poucos aventureiros, com todos os requintes do exagero e - por que não? - de mentira, que superfaturava a coragem do narrador.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 159.
(2) MALLET, Allain. Manesson Beschreibung des gantzen Welt-Kreises. Frankfurt am Main: J. A. Jung, 1719. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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