No Século XIX a mortalidade infantil era muito alta. Isso não era coisa apenas de lugares paupérrimos. Embora não haja estatísticas totalmente confiáveis, sabe-se que em alguns países da Europa só um pouco mais da metade dos bebês que vinham ao mundo conseguia crescer o suficiente para alcançar o final da adolescência. Os restantes iam "ficando pelo caminho", em grande parte até os sete ou oito anos de idade, ainda que crianças maiores também fossem vitimadas por doenças e desnutrição severa.
Mesmo na primeira metade do Século XX as condições não eram muito melhores. Idosos contavam - ou ainda contam - de como em sua infância os funerais de meninos e meninas - seus companheiros de brinquedo ou estudo - eram uma realidade nada incomum. Detalhes como a roupa ou o caixão usual para os pequenos falecidos ainda fazem parte das memórias dos sobreviventes.
Essa situação passaria por transformações radicais ao longo do Século XX. Vacinas, antibióticos, desenvolvimento da puericultura, maior escolaridade materna, melhoria no padrão nutricional, foram alguns fatores que contribuíram para que a mortalidade infantil, em muitos lugares, despencasse.
Mas vamos retornar ao Século XIX. Se a mortalidade infantil era alta entre crianças de condição livre, o que não ocorreria aos filhos nascidos de escravas no Brasil?
Fato é que, antes da abolição do tráfico de africanos, a maioria dos senhores não dava a menor importância ao nascimento dos filhos de suas escravas. O motivo era simples: parecia pouco econômico ter despesas com a criação de alguém que somente aos dezesseis ou dezoito anos poderia, enfim, trabalhar como um adulto. Era preciso também levar em conta que não poucos dentre esses meninos e meninas podiam morrer antes de atingir a "idade produtiva". Muito mais barato era comprar um escravo forte e saudável, que saia do mercado de cativos e ia direto para a roça. Um relato feito por Cristiano B. Ottoni, no calor dos debates que cercaram a chamada Lei do Ventre Livre, dá uma ótima ideia de qual era o raciocínio de um típico senhor de escravos:
"Em todas as palestras entre fazendeiros se ouvia este cálculo: "Compra-se um negro por 300$000; colhe no ano cem arrobas de café, que produzem líquido pelo menos o seu custo; daí em diante tudo é lucro; não vale a pena aturar as crias que só depois de dezesseis anos darão igual serviço."" (¹)
A crueza da argumentação talvez venha a causar espanto aos leitores, mas trata-se de um retrato fidedigno do que ocorria nas fazendas de café. Escravas gestantes continuavam a ir diariamente ao trabalho na roça, não recebiam, como regra, qualquer cuidado especial com a alimentação, e os bebês, quando nasciam, dificilmente eram alvo de alguma consideração. Cresciam junto às mães, partilhando, com elas, as péssimas condições de vida das senzalas. Testemunhavam quotidianamente a opressão a que estavam submetidos os cativos, prenúncio da vida desgraçada e sem perspectivas favoráveis a que estavam destinados. Alguns, por sorte ou robustez natural, acabavam sobrevivendo. A maior parte morria na infância. Mesmo sem dados exatos vê-se que, sob tais condições, a mortalidade infantil entre escravos era brutal.
Há quem imagine que a estapafúrdia Lei do Ventre Livre, com todas as suas contradições, pôs fim ao problema, mas não foi assim. Afinal, a escravidão, que nunca deveria ter existido, estava com os dias contados e, se durou ainda alguns anos, foi, entre outras razões, pela pressão política dos que detinham o poder econômico e que morriam de medo que suas fazendas ficassem desprovidas de mão de obra. Sofriam de severa falta de imaginação, que os tornava incapazes de visualizar um mundo sem a existência do trabalho compulsório.
Em imagem de Debret (²), o cortejo fúnebre de um menino negro (³) |
(1) OTTONI, Cristiano Benedito. A Emancipação dos Escravos. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1871, p. 67.
(2) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Cortejo fúnebre para negros, particularmente escravos, ocorriam, em geral, apenas em áreas urbanas, nas quais as confrarias existentes (como de N. Sra. do Rosário ou de Santa Ifigênia, por exemplo) zelavam pela assistência religiosa quando algum de seus membros falecia. Escravos que morriam em fazendas eram, quase sempre, sepultados em alguma área que o proprietário destinava para cemitério dos cativos. A consequência prática é que, nesse caso, sequer havia um registro legal dos óbitos.
(3) Cortejo fúnebre para negros, particularmente escravos, ocorriam, em geral, apenas em áreas urbanas, nas quais as confrarias existentes (como de N. Sra. do Rosário ou de Santa Ifigênia, por exemplo) zelavam pela assistência religiosa quando algum de seus membros falecia. Escravos que morriam em fazendas eram, quase sempre, sepultados em alguma área que o proprietário destinava para cemitério dos cativos. A consequência prática é que, nesse caso, sequer havia um registro legal dos óbitos.
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