sexta-feira, 12 de junho de 2015

A chamada dos escravos

Escravos respondiam à chamada pela manhã e à noite, e seguiam em fila para o trabalho


O dia de trabalho de um escravo da lavoura começava muito cedo, embora o horário variasse um pouco, de acordo com a região e as regras que cada senhor fazia executar em sua propriedade. Invariavelmente, porém, tudo principiava pela "chamada", uma contagem de cativos para garantir que ninguém cometesse o equívoco de esquecer o trabalho. Era também um meio para verificar se alguém, durante a noite, havia conseguido fugir.
O segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, com a intenção de instruir o filho que, ainda jovem, ia assumir uma propriedade agrícola, escreveu a Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, na qual detalhou o modo pelo qual, segundo seu ponto de vista, devia ser conduzida a chamada:
"O administrador (¹), meia hora antes de romper o dia, deve mandar tocar a chamada, à qual acode, de pronto e a um ponto já designado, toda a escravatura dos diversos trabalhos; formam-se os escravos com separação dos dois sexos e por alturas, ficando os mais altos à direita, e as mulheres defronte dos homens e os feitores no centro. Passa-lhes o administrador uma revista, para ver os que faltam, tomando nota se por doentes, se por omissão ou fuga; dá alta aos restabelecidos do hospital e recolhe a ele os que se acham enfermos; observa se os escravos têm a ferramenta própria do trabalho do dia, cuja ordem deve ser dada de véspera. Imediatamente os mandará persignar e rezar duas ou três orações e seguir logo ao seu destino, acompanhados do feitor." (²)

Escravos em fila, a caminho da roça (⁴)
O toque de chamada era, nas grandes propriedades, feito com uso de um sino. Em algumas menores, porém, na falta do sino, era costume bater um objeto metálico em uma enxada. 
Prosaico? Certamente.
Ninguém deve supor, porém, que a mesma ordem fosse rigorosamente seguida em todas as fazendas, mas a rotina era algo parecida. A chamada, é bom lembrar, podia ser feita a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que se desconfiasse de alguma fuga ou tentativa de revolta.
A rotina da chamada repetia-se ao anoitecer:
"O administrador, de noite, quando chegar a escravatura, deve de novo formá-la, passar uma segunda revista, ver se trouxeram capim para a cavalariça ou lenha para si ou para gasto da casa, se dela precisar. Ordenará então o serão da noite, ou no paiol ou no engenho de mandioca, únicos que a humanidade e o seu interesse toleram [sic], porém que não exceda das oito e meia às nove horas; findo o serão irão os escravos cear e logo depois recolher-se às suas senzalas, proibindo-se que saiam até ao toque da chamada da madrugada." (³)
A duríssima jornada dos escravos não terminava, portanto, ao cair da tarde - prolongava-se noite adentro, sempre de acordo com o costume da fazenda ou a conveniência do senhor. O fato de que se proibia sair das senzalas até a hora da chamada na madrugada seguinte mostra, no entanto, que, a despeito do cansaço muito natural, resultante das longas horas de trabalho sob sol ou chuva, com uma alimentação nem sempre adequada, havia escravos que tinham outras ideias e, escapulir podia ser uma tentação, quer para simples conversas, para correr até a venda mais próxima, ou mesmo para planejar uma tentativa de fuga.

(1) Um trabalhador assalariado, que devia supervisionar todo o trabalho na fazenda.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 32 e 33.
(3) Ibid, pp. 35 e 36.
(4) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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