segunda-feira, 15 de junho de 2015

Queimados vivos

César, em De Bello Gallico, relatou, a respeito de Caio Valério Procilo, que fora feito prisioneiro pelos germanos comandados por Ariovisto:
"Contava que, diante dele próprio, três vezes lançaram sortes para decidir se seria queimado vivo imediatamente ou mais tarde, e que somente em decorrência do resultado da sorte é que ainda estava vivo." (¹)
Parece horrível? Pois é mesmo. Mas a ideia de queimar gente viva atravessou os séculos, e, infelizmente, como sabem muito bem os leitores, ainda tem seus adeptos.
Cristãos, nos dias de Nero, acusados injustamente de cumplicidade no incêndio de Roma, eram untados com algum tipo de gordura e, então, postos a queimar, depois que anoitecia, para iluminar os jardins do imperador, onde se realizavam festejos.
Dizem que o mundo dá muitas voltas e, neste caso, a volta foi tão acentuada que, sob a condenação da Igreja, através do Santo Ofício da Inquisição, não foram poucos os sentenciados por heresia que, queimados vivos em autos de fé,  pagaram pelo crime de pensar diferente da maioria. 
Ocorre, porém, e isso já é menos conhecido, que contemporaneamente às condenações do Santo Ofício, o Estado português também sentenciava à morte por fogo, em alguns casos considerados de jurisdição civil. Senão, vejamos, primeiro, a penalidade para quem fizesse moeda falsa em Portugal ou em seus domínios ultramarinos, de acordo com o Livro V das Ordenações do Reino (²), no Título XII:
"E por a moeda falsa ser coisa muito prejudicial [...] e merecerem ser gravemente castigados os que nisso forem culpados, mandamos que todo aquele que moeda falsa fizer, ou a isso der favor, ajuda ou conselho, ou for disso sabedor e o não descobrir, morra morte natural de fogo, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa do Reino."
Não era só. A mesma pena, cuidadosamente descrita, era aplicada em casos de sodomia, também de acordo com o Livro V, desta vez no Título XIII:
"Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimada e feita por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Coroa de nossos Reinos, posto que tenha descendentes."
Mais ainda, no Título XIII, § 2:
"Outrossim, qualquer homem ou mulher que carnalmente tiver ajuntamento com alguma alimária, seja queimado e feito em pó. [...]."
Cabe, aqui, esclarecer que, para que alguém fosse considerado culpado, era preciso haver pelo menos duas testemunhas...
Finalmente, conforme o Título XVII, também seria queimado vivo aquele ou aquela que se envolvesse em relação incestuosa:
"Qualquer homem que dormir com sua filha, ou com qualquer outra sua descendente, com sua mãe, ou com outra sua ascendente, seja queimado, e ela também, e ambos feitos por fogo em pó."
O mundo ocidental olha, hoje, com horror, para essas penas cruéis. Mesmo onde se aplica a pena de morte, existe uma preocupação (nem sempre alcançada, é verdade) com que a morte seja rápida e, tanto quanto possível, sem demasiado sofrimento. Ninguém se esqueça, no entanto, de que, há apenas uns poucos séculos, a execução por fogo consistia em um espetáculo público muito concorrido. Sem nenhum exagero, havia quem preparasse lanche para ir, com a família, apreciar um auto de fé. Vejam, senhores leitores, a que abismos é capaz de ir a humanidade quando a selvageria suplanta a razão!

(1) Tradução de  Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra. Publicadas no início do Século XVII, as Ordenações eram, em grande parte, uma compilação de leis vigentes há muito tempo.


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