quinta-feira, 28 de abril de 2011

Os papas tiveram que proibir o uso de tabaco nas igrejas

Nos séculos XVII e XVIII a produção de tabaco do Nordeste do Brasil ganhou notoriedade, estando muito longe de ser apenas destinada ao maldito comércio de seres humanos que se ia fazer na África. É Antonil (¹), em Cultura em Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas (1711) quem nos informa:
"Os que são demasiadamente afeiçoados ao tabaco o chamam de erva santa: nem há epíteto de louvor que lhe não deem, para defender o excesso digno de repreensão e de nota. Homens há que parece não podem viver sem este quinto elemento, cachimbando a qualquer hora em casa e nos caminhos, mascando as suas folhas, usando de torcidas e enchendo os narizes deste pó."
Vê-se que o hábito/vício de usar tabaco, em qualquer de suas formas, já começava a sair da esfera privada para vir a ser um problema no âmbito público. Acha que estou exagerando? Pois leia o que mais escreveu Antonil:
"Deixando porém de reparar nesta viciosa superfluidade, só lembro quanto dois Sumos Pontífices, Urbano VIII e Inocêncio X, estranharam o usar dele nas igrejas, pela grande indecência que repararam e julgaram ter este intolerável abuso, digno de se notar e estranhar nos seculares e mais nos eclesiásticos pouco acautelados, ainda quando assistem no coro aos ofícios divinos, e muito mais nos religiosos, que devem dar exemplo a todos (e maiormente nos lugares sagrados) de gravidade e modéstia. E por isso ambos os sobreditos pontífices chegaram a proibi-lo com excomunhão maior: o primeiro com um Breve de 30 de janeiro do ano 1642 o proibiu na Igreja de São Pedro em Roma e no adro e alpendre do dito templo; o segundo com outro Breve debaixo da mesma pena aos 8 de janeiro de 1650 nas igrejas de todo um arcebispado, em que se ia introduzindo esta demasia com escândalo. E em algumas Religiões (²) mais observantes se proibiu o uso público do tabaco nas igrejas com privação de voz ativa e passiva, isto é, sob pena de não poderem ser eleitos os transgressores, nem poderem escolher a outros para superiores e para outros ofícios da Ordem."
Eis aí, leitor, a gênese de toda a atual legislação restringindo o fumo em lugares públicos. Seria desnecessária, se houve sempre uma educada consciência da distinção entre comportamentos apropriados em público e em particular.

(1) Sobre a verdadeira identidade de A. J. Antonil, veja a postagem Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial.  
(2) Neste caso, é referência às Ordens Religiosas.


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terça-feira, 26 de abril de 2011

O cachimbo de J. S. Bach

Na última semana a imprensa informou que os brasileiros estão fumando menos. Enfim, a ser verdade, eis aí uma boa notícia. A despeito da plasticidade fotocinematográfica da fumaça subindo lentamente, diante de uma personagem em devaneio (como, por exemplo, em "Anjo Azul" e em muitos outros filmes), nem mesmo o mais devoto tabagista seria capaz de negar os danos à saúde que o cigarro pode causar.
J. S. Bach foi um compositor absolutamente fascinante, tanto na quantidade quanto na qualidade de sua obra. Muito conhecido por algumas de suas peças sacras, Bach deixou, contudo, um vasto arsenal de composições profanas, nem sempre tão conhecidas do grande público, mas não menos importantes em termos de bibliografia musical.
Acontece que, além de notável compositor e executante - particularmente ao órgão - Bach foi também um excelente professor, tanto para seus (numerosos) filhos como para seus discípulos (não menos numerosos). Para eles compôs grande quantidade de peças didáticas, das quais se servem ainda hoje os aprendizes de música.
Não, leitor, não mudei de assunto. Como sabemos que Bach era fumante? Entre os alunos de Bach figurou sua segunda esposa, Anna Magdalena Bach, a quem o compositor dedicou dois cadernos de estudos e, no segundo deles (¹), anotou uma ariazinha intitulada nem mais nem menos que "So oft ich meine Tobackspfeife", na qual descreve a agradável sensação de ter bom tabaco em seu cachimbo, embora a fumaça que dele subia lhe recordasse, tristemente, o quanto ele próprio era passageiro (²).
Espero que ninguém venha a ter Bach em menor conta por causa disso. O caso é que, no século XVIII, já havia uma certa consciência de que o tabaco podia produzir um hálito desagradável, além de manchas nos dentes, coisas demasiado óbvias, mas os resultados a longo prazo não eram ainda plenamente conhecidos. Não é o caso atualmente!

(1) 2. Notenbuch für Anna Magdalena Bach.
(2) "So oft ich meine Tobackspfeife
         mit gutem Knaster angefüllt,
         zur Lust und Zeitvertreib ergreife,
         so gibt sie mir ein  Trauerbild,
         und füget diese Lehre bei,
         dass ich derselben ähnlich sei."


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sábado, 23 de abril de 2011

Doces sabores da Páscoa e da gramática

Todo estudante lê muita coisa apenas para cumprir exigências acadêmicas. Não foi diferente comigo, aposto que também foi assim com você. Reler uma obra importante, sem nenhuma obrigação de fazê-lo, já é outra coisa. Um dia desses topei com este delicioso trechinho de Raul Pompeia em O Ateneu:
"A seu turno a gramática abria-se como um cofre de confeitos pela Páscoa. 
Cetim cor de céu e açúcar. Eu escolhia a bel-prazer os adjetivos, como amêndoas adocicadas pelas circunstâncias adverbiais da mais agradável variedade; os amáveis substantivos! voavam-me à roda, próprios e apelativos, como criaturinhas de alfenim alado; a etimologia, a sintaxe, a prosódia, a ortografia, quatro graus de doçura da mesma gustação. Quando muito, as exceções e os verbos irregulares desgostavam-me a principio; como esses feios confeitos crespos de chocolate: levados à boca saborosíssimos."
Ora, bem, então ocorreu-me que seria bom cumprimentar meus leitores e assinantes com essa inusitada associação entre os doces da páscoa e a gramática...
Portanto, desejo a você - leitor, assinante, seguidor - uma feliz páscoa, com ou sem gramática, mas com muito doce, especialmente chocolate. Afinal, já, já, vem a segunda-feira e, nesses dias do capitalismo, as celebrações terminam no domingo mesmo, ao contrário de antigos tempos, em que seguiam semana adentro.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Ainda sobre a Semana Santa de 1822 em São Paulo: o que vestiam as mulheres nas igrejas

Na postagem anterior tratei de como Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês de passagem por São Paulo na Páscoa de 1822, ficou estarrecido com a falta de devoção do povo em geral ao assistir aos ofícios da Semana Santa. Veremos ainda outras de suas observações e, admitindo que correspondam à realidade, só podemos concluir que, para a gente paulistana da época, a Semana Santa era uma alegre oportunidade para festejar, sem a conotação de luto que, pela natureza dos rituais, deveria haver. A título de exemplo, podemos considerar o que diz Saint-Hilaire sobre a noite de quinta-feira, quando a liturgia relembrava o julgamento de Jesus:
"Na noite de quinta-feira santa o altar-mor de todas as igrejas estava extremamente ornamentado e a banqueta acima do anfiteatro prodigiosamente carregada de círios. Admirei sobretudo a brilhante iluminação da igreja do Carmo. As ruas se achavam cheias de povo, que passeava, de igreja em igreja, mas unicamente para vê-las, sem a menor aparência de devoção. Vendedoras de confeitos e doces sentavam-se no chão, à porta das igrejas, e as pessoas compravam guloseimas para as oferecer às mulheres com quem passeavam." (¹)
Veja, leitor, que a data servia para passeio e galanteria, com quase nenhum significado religioso. Já tratamos, na última postagem, das causas desse "fenômeno" e, por isso, vamos em frente.
Chega a sexta-feira santa e nosso viajante francês resolve percorrer as igrejas, contrastando o que vê com os costumes de sua terra natal. Conclui que, de todas elas, somente na Catedral o aspecto correspondia ao que se esperava para a comemoração da morte e sepultamento de Jesus:
"A Catedral vinha a ser a única que tinha aspecto lutuoso. Mas se achava iluminada e longo velório preto escondia o nicho do altar-mor. Em frente a esta cortina havia uma cruz, muito grande, da mesma cor do reposteiro e que dele mal se destacava, e um sudário branco enrolado nos braços da cruz parecia, até certo ponto, flutuar no ar. Ao rosto de Cristo deitado no altar, recobria um pano grosso, e só aparecia uma das mãos da imagem que, ligeiramente espalmada, saía fora do esquife. Os fiéis iam todos beijá-la e depositavam esmolas numa bacia." (²)
Não estaria tudo perfeito, segundo os padrões religiosos do século XIX? Nem tanto. Nosso autor prossegue, assinalando não sem desgosto: "O que prejudicava um pouco o efeito deste conjunto era a presença de jovem sacristão, de jaleco  e sem gravata, sentado displicentemente perto da bacia, numa atitude de perfeito tédio e indiferença, de pernas cruzadas e com o peito quase inteiramente descoberto." (³)
É aí que, em sua descrição, Saint-Hilaire deixa um relato muito importante, sobre os hábitos de vestuário das mulheres que iam às igrejas naquele ano de 1822, o mesmo da independência do Brasil, o que talvez signifique que o costume de vestir-se de preto, cobrindo-se quase completamente, já foi, em termos de prática religiosa, mais amplo do que se poderia supor, pelo menos onde predominavam as tradições ibéricas:
"Em São Paulo as negras e mulatas e em geral as mulheres do povo aparecem nas igrejas com a cabeça e o corpo envoltos em pano preto. As mulheres de classe mais elevada põem à cabeça e ombros uma mantilha de casimira preta com que escondem quase inteiramente o rosto, mantilha esta debruada de larga renda da mesma cor." (⁴) A propósito, a ilustração de Debret, que aparece na postagem anterior, registra adequadamente esse costume. (⁵)

(1) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 104.
(2) Ibid., p. 105.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) A ilustração de Debret é aproximadamente contemporânea, ainda que não do mesmo local, o que permite supor que tais hábitos de vestuário eram mais ou menos generalizados Brasil afora.


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terça-feira, 19 de abril de 2011

A celebração da Páscoa em São Paulo no ano de 1822

Corria 1822 e, naquele ano, a Páscoa foi celebrada na primeira quinzena de abril. De passagem pela cidade de São Paulo, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, como sempre às voltas com suas amostras de plantas e insetos, assistiu às celebrações da Semana Santa, deixando por escrito um relato do que viu:
Manhã de Quarta-Feira Santa na Igreja, por Debret (¹)
"Estas festas para cá atraem grande número de pessoas do campo. Segui parte dos ofícios e doeu-me a falta de atenção dos fiéis. Ninguém se compenetra do espírito das festas. Os homens mais distintos nelas tomam parte pela força do hábito, e o povo, como a um grande divertimento.
No ofício de quinta-feira santa, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do bispo. Olhavam todos à direita e à esquerda, conversavam antes deste solene momento e recomeçavam a conversar imediatamente depois.
Há aliás uma circunstância que deve servir de desculpa ao povo. Ignora ele o fim e o sentido das cerimônias religiosas, não entende a língua em que o padre invoca o Senhor. E como ninguém usa livro de missa nas igrejas nada existe absolutamente capaz de fixar a atenção dos fiéis." (²)
Aos olhos do viajante europeu, a missa parecia feira... Ele próprio percebe que parte do problema concentrava-se na falta de educação religiosa apropriada, que levasse os fiéis a um bom entendimento da liturgia pascal. Mas não era só.
Os ofícios eram, evidentemente (como o foram até o Concílio Vaticano II), celebrados em Latim. Que esperar em termos de compreensão por parte de um povo que tinha, por vezes, dificuldades inclusive com o português, já que, em São Paulo, durante muito tempo, a língua indígena local  foi persistentemente utilizada no âmbito doméstico? Para que usar livro de missa, se quase toda gente era analfabeta?
Não param aqui os obstáculos. A liturgia usada na Semana Santa era muito longa e não chega a surpreender que os moradores de áreas rurais, que vinham à cidade para as festas, ficassem entediados, depois de viagens em burros, carroças ou carros de bois. A maioria das igrejas, pode acreditar, leitor, somente tinha bancos para as "pessoas importantes", restando aos demais a escolha entre, devotamente, assistir em pé, ou, o que não era incomum, sentar no chão. Além disso, vale acrescentar que, para a maioria das pessoas, as cerimônias na igreja estavam entre as poucas oportunidades de vivência social existentes, particularmente no caso das mulheres, que muitas vezes viviam quase reclusas, tendo contato apenas com as pessoas da família. A missa, nesse caso, podia ser uma rara ocasião para colocar as fofocas em dia.
Não é necessário dizer que os rituais, pensados para a realidade (inclusive climática) da Europa, estavam inadequados ao Brasil, mas continuavam a ser repetidos como ordenavam as regras, sem levar em conta a condição religiosa da população da Colônia. O resultado? Esse que Saint-Hilaire captou muito bem.

(1) DEBRET, J.B. Voyage Pittoresque et Historique  au Brésil, vol. III. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. 
Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 104.


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domingo, 17 de abril de 2011

Celebrar para não esquecer

"Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio: fidenter tamen dico scire me, quod si nihil praeteriret, non esset praeteritum tempus; et si nihil adveniret, non esset futurum tempus; et si nihil esset, non esset praesens tempus. Duo ergo illa tempora, praeteritum et futurum quomodo sunt, quando et praeteritum jam non est, et futurum nondum est? Praesens autem si semper esset praesens, nee in praeteritum transiret; jam non esset tempus, sed aeternitas."
Santo Agostinho, Confessionum

É interessante observar quantas festividades, mesmo em comunidades muito diversas, têm por objetivo não apenas comemorar mas, até onde possível, repetir algum grande evento do passado. E, quanto mais elaborado o ritual, mais o acontecimento em questão é traduzido em símbolos que, para as pessoas envolvidas, são plenos de significado, ainda que pareçam obscuros a quem "não faz parte do grupo". Isso vale para as cerimônias religiosas, é verdade, mas poderia ser estendido a muitos outros eventos - as paradas militares, por exemplo, não repetem elas, muitas vezes, o ímpeto do ir à batalha na qual eventualmente uma dada nação foi vitoriosa?
Pergunto-me o que há em nós, humanos, que nos leva a ritualizar, na tentativa de repetir o passado. É que, talvez, estejamos conscientes de que somos algo desmemoriados - acho que qualquer historiador tem boas razões para ter isso na conta de pecado mortal. Mas, ao eleger determinados acontecimentos para merecerem celebração, estamos sendo seletivos e, necessariamente, ao privilegiar alguns, relegamos outros ao esquecimento, deliberadamente ou não. Preservamos a memória de uma dada comunidade, mas uma memória selecionada e filtrada por nós mesmos.
Há ainda o fato de que tentamos (inutilmente, claro), controlar o tempo, e a suposta repetição, ano após ano, de um evento, nos dá a ilusória sensação de que podemos voltar ao passado quando e quanto quisermos, exercendo algum controle sobre ele. Tolice! Tinha muita razão Santo Agostinho ao entender que o tempo é daquelas coisas que sequer conseguimos definir, quanto mais controlar.
Enquanto escrevo, há som de sinos chamando às procissões do Domingo de Ramos (para falar a verdade, chega a ser surpreendente que ninguém tenha vindo até agora pedir um ramo das oliveiras do meu jardim...). Ano após ano, a celebração é repetida. Cumprem essas procissões a função de preservar a memória coletiva, tornando-se, para as comunidades que as celebram, um fator poderoso de agregação social. E, seja a festa voltada para a chamada "Semana da Paixão", para a lembrança da saída do Egito ou para qualquer outro momento que envolva, em algum nível, a repetição de fatos passados, estamos exercitando uma dimensão essencialmente humana, em luta contra nossas limitações temporais, simplesmente tentando não esquecer.


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quinta-feira, 14 de abril de 2011

Por que não houve uma Guerra de Secessão no Brasil

Quando se compara a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos e no Brasil, é frequente a interrogação: Por que não tivemos no Brasil uma guerra como a Guerra da Secessão? Há uma lista enorme de razões para isso, mas quero citar aqui apenas algumas delas, que me parecem ter maior relevância, sempre tendo em conta que o parâmetro para a comparação é o panorama nos Estados Unidos exatamente antes do início da Guerra Civil:
1) Embora disparidades regionais existissem no Brasil, não havia uma clara disputa envolvendo eventuais diferenças de interesses no que se refere à escravidão (ao contrário, principalmente após 1850 - o ano da abolição formal do tráfico de africanos - a região Nordeste, sempre muito relacionada à produção açucareira, bem como as regiões mineradoras, tornaram-se importantes fornecedoras de mão de obra escrava para as regiões cafeeiras);
2) Não havia no Brasil uma elite regional fortemente identificada com a carreira militar, ao contrário do que ocorria no Sul dos Estados Unidos;
3) A iniciativa por substituir o trabalho escravo por mão-de-obra livre partiu, em muitos casos, dos próprios cafeicultores;
4) O segmento de cafeicultores que insistia no escravismo era aquele integrado por fazendeiros empobrecidos, cuja única riqueza era o plantel de escravos e que, portanto, não tinha grande força política e muito menos militar para uma eventual contestação armada às medidas abolicionistas;
5) Não havia uma clara oposição entre campo versus cidade - a maior parte do Brasil do século XIX era essencialmente rural;
6) A abolição do trabalho escravo foi (exageradamente) gradual, o que deu tempo mais que suficiente aos fazendeiros escravocratas para a busca de alternativas ao trabalho compulsório;
7) Não havia grandes disputas quanto aos "melhoramentos internos", como ocorria nos Estados Unidos, já que quase todas as benfeitorias eram destinadas às regiões cafeeiras, assumindo-se que o Brasil era mesmo dependente das exportações de café e precisava investir nisso;
8) No Brasil, as Forças Armadas tiveram, politicamente, um papel secundário, até à chamada Guerra do Paraguai, e só depois disso é que uma parte expressiva da oficialidade veio a assumir-se claramente republicana e abolicionista;
9) Levando em conta tudo o que já foi dito, conclui-se que, no Brasil, a abolição foi conduzida segundo os interesses da elite escravista, malgrado pressões internacionais, da imprensa nacional e de incipientes segmentos intelectualizados com uma visão mais progressista da sociedade;
10) Finalmente, resta dizer que, segundo meu ponto de vista, ainda que o Brasil não houvesse adotado nunca qualquer medida abolicionista, a escravidão teria de acabar, ou seja, acabaria acabando... Tenho fortes razões para pensar assim, mas é uma ideia que pretendo defender em outra ocasião.


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terça-feira, 12 de abril de 2011

A Guerra Civil Americana, cento e cinquenta anos depois

Há cento e cinquenta anos, com o bombardeio do Forte Sumter, começava a Guerra de Secessão. A imprensa do mundo todo (ou pelo menos, do mundo ocidental), está lembrando o fato. Para muitos cidadãos estadunidenses, a horrenda Guerra Civil foi um marco em fazer de seu país aquilo que é hoje - uma opinião que até procede. Afinal, se considerarmos as severas disparidades entre o que se conhecia como Estados do Norte e Estados do Sul, veremos que a questão escravista ou abolicionista (aí depende do ponto de vista de cada um) era a mais apaixonante no debate político da época, mas era apenas uma dentre muitas questões, tão quentes quanto e, economicamente, até mais relevantes naquele momento.
O cinema encarregou-se, senão de criar, ao menos de reforçar o mito do Sul feliz e próspero, no qual senhores e escravos viviam em paz e harmonia, o que não é, por suposto, possível, em qualquer sistema (como no caso, o escravista), em que homens são explorados abertamente por outros homens. Mais tarde o mesmo cinema teria de mostrar a dura realidade das tentativas de segregação racial e subsequente luta pelos direitos civis. Nesse sentido, não há como negar que a Guerra deixou sequelas que ainda persistem, e só não vê quem não quer.
Um outro aspecto a ser considerado é que essa Guerra Civil, com seu saldo absurdo de seiscentos mil mortos, funcionou como autêntico laboratório do que seria uma conflagração em escala industrial. A linha de montagem da morte sepultou velhas táticas de combate, nas quais os generais sulistas eram mais que mestres, introduzindo armas de uma incrível capacidade destrutiva e lançando as bases, com os campos cravejados de soldados mortos, para o que seria o cenário de horror da Primeira Guerra Mundial.
Ao fim de tudo, sepultados os mortos (incluindo o Presidente A. Lincoln) e iniciada a reconstrução do Sul (no modelo que mais interessava aos industrialistas vencedores), sobraram ressentimentos, é verdade, mas a nação, assim "passada a limpo", foi capaz de encontrar seu caminho, bem ou mal, unificado e, durante décadas, economicamente muito vigoroso.
Na próxima postagem veremos as razões pelas quais um outro país, também ex-colônia e também escravista, seguiu um rumo muito diferente em seu acerto de contas com a escravidão.

domingo, 10 de abril de 2011

Quanto vale um gato? Felinos vendidos a peso de ouro nas minas de Mato Grosso

Quanto vale um gato? A resposta depende, é claro, do grau de apreço que alguém possa ter pelos bichanos. Ninguém sabe, com exatidão, quando foram feitas as primeiras tentativas de domesticar esses felinos, mas ao menos conhecemos o fato de que, no Antigo Egito, os gatos eram não apenas apreciados mas até cultuados como divindades...
O caso de hoje é, porém, de um tempo bem mais recente.
Felinos nativos do Brasil não são animais domésticos, é claro (não passa pela cabeça de ninguém ter uma jaguatirica de estimação para capturar camundongos). Por isso, se queriam ter hábeis rateiros, os colonizadores portugueses precisavam trazer gatos da Europa. Tratando do estabelecimento de povoações em Mato Grosso, na época áurea da mineração, o Padre Ayres de Casal relata:
Simpático gatinho aguardando adoção (²)
"Por estes tempos florescia aqui um novo ramo de comércio, melhor dissera ridículo modo de ganhar dinheiro ou de ajuntar ouro, não menos notável pelo seu objeto, que eram os gatos, como pela ganância, que dava tanto ao vendedor, como ao comprador. O primeiro casal destes animais que aqui apareceu, comprou-se por uma libra de ouro; a sua descendência vendeu-se a trinta oitavas do mesmo metal; depois a vinte; donde foi diminuindo em preço proporcionalmente com o número da sua multiplicação, até chegar ao comum dos lugares, onde abundam. As casas, as colheitas do milho e de outros alimentos fizeram multiplicar tão extraordinariamente os ratos, que davam que fazer à gente para obviar os estragos deste flagelo doméstico e rural. Foram eles os que davam tão grande valor aos seus inimigos." (¹)
Pois bem, leitor, é hora de fazer umas contas. Como se sabe, uma libra equivale a aproximadamente 459 gramas. Isso significa que, se acreditarmos no relato do Padre Aires de Casal, teremos que admitir que o primeiro casal de gatos que chegou a Mato Grosso foi vendido por quase meio quilo de ouro! Sim, em vigor a lei da oferta e da procura (muito ouro e pouco gato no mercado), em dias de uma suposta inesgotabilidade do metal precioso, mas ainda assim talvez o bom padre tenha exagerado, ou crido, em plena boa fé, em algum "depoimento" que lhe chegou aos ouvidos. Seja como for, o que fica dessa história é o fato de que os gatos eram muito necessários e, nesse caso, podiam ser vendidos por alto preço. Como foram prolíficos, hoje em dia estão por toda parte e, excetuando-se exemplares das raças mais raras, ninguém em geral paga muito por eles. Já não valem seu peso em ouro.

(1) AYRES DE CASAL, Manuel.  Corografia Brasílica.
(2) Na data da foto, esse gatinho estava disponível para adoção em uma entidade de proteção aos animais. Se você não tem um animalzinho de estimação, mas gostaria de ter, considere a possibilidade de adotar um.


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quinta-feira, 7 de abril de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - As ferrovias como fator de urbanização

As várias possibilidades de origem de núcleos urbanos no Brasil que abordei em postagens anteriores são válidas desde o período colonial. A de hoje, no entanto, somente apareceu nas décadas finais do Império.
De modo análogo ao que ocorreu em muitos outros países, também no Brasil o século XIX foi marcado pela implantação de uma malha ferroviária. Nesse caso específico, tinha por principal objetivo atender às regiões produtoras de café, com o fim de facilitar a exportação, ainda que a circulação de passageiros também fosse levada em conta.
Se observarmos mapas antigos, mostrando a expansão dos "caminhos de ferro", como se dizia na época, é possível verificar um fenômeno curioso: o trajeto não era planejado apenas para alcançar as cidades já existentes, onde eram construídas as estações ferroviárias mais importantes, mas muitas vezes era desenhado de modo a passar o mais próximo possível das grandes fazendas. E foi aí que as ferrovias tornaram-se um importante fator para o surgimento de novos núcleos urbanos.
A lógica do processo era quase sempre assim:
1) Uma pequena estação era construída nas imediações de uma fazenda dedicada à cafeicultura, facilitando o embarque da produção com destino aos portos;
2) Alguns funcionários da ferrovia precisavam, por razões de trabalho, residir próximo à estação, e assim algumas casas, eram construídas;
3) Esses moradores e suas famílias tinham, naturalmente, necessidades de consumo, o que atraía alguns pequenos comerciantes para a localidade;
4) Gradualmente, a pequena vila crescia, de modo que a primitiva estação dava origem a uma cidade.

Estação Ferroviária Manuel Leme, na cidade de Leme (SP), atualmente usada
como terminal para ônibus urbanos
Um exemplo interessante é a cidade de Leme, no interior de São Paulo. Em 1877 inaugurou-se a Estação Manuel Leme (tendo o nome do proprietário da fazenda de café mais próxima), ao redor da qual se estabeleceu uma povoação. Só depois é que veio a primeira capela, ou seja, neste caso a ferrovia inverteu a ordem habitual de urbanização que, durante séculos, havia predominado no Brasil.


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terça-feira, 5 de abril de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - Núcleos urbanos formados ao redor de capelas

Em postagens anteriores (da série A Arquitetura Sacra Paulista e Mineira nas Regiões Cafeeiras) já mencionei o fato de que muitas cidades brasileiras nasceram ao redor de uma capela, que podia ser edificada em uma fazenda, para uso dos moradores ou, em outros casos, em algum lugar que o misticismo popular consagrava como milagroso. Nas imediações da primitiva capelinha iam sendo construídas, gradualmente, algumas habitações e, desse modo, uma povoação chegava a estabelecer-se. Há um trecho interessante de Auguste de Saint-Hilaire sobre esse fenômeno:
"A cerca de quarto de légua da fazenda encontramos a vila de Carrancas, sede de paróquia, mas que quando muito merece o nome de aldeia. Fica situada numa encosta de colina e compõe-se de umas vinte casas arrumadas em volta de uma praça coberta de grama.
A igreja ocupa o lado mais alto da praça.
É pequena mas construída de pedra e muito bonita por dentro.
Não é à mineração que Carrancas deve a sua origem. No lugar em que está situada existiu outrora uma fazenda com capelinha. Atraídos pelo desejo de ouvir missa, alguns cultivadores vieram estabelecer-se na vizinhança. Foi a fazenda destruída, mas a capela continuou a subsistir. Substituíram-na por uma igreja mais considerável e pouco a pouco formou-se a aldeia." (¹)
Capela do Bom Jesus em Pedreira - SP
Ocorre que, infelizmente, (como aconteceu inclusive no caso citado por Saint-Hilaire), a maioria dessas capelinhas foi demolida, geralmente para dar lugar a uma igreja maior. Não tenho nada contra as grandes igrejas (isso não é questão para este blog), mas teria sido interessante, em termos de preservação do patrimônio histórico, que as antigas construções houvessem permanecido. Há, no entanto, algumas que ousaram sobreviver. A título de exemplo, veja ao lado a Capela do Bom Jesus, construída pela família do fundador da cidade de Pedreira, interior de São Paulo. Neste caso, a capela, edificada entre 1896 e 1897, foi mais tarde sucedida pela Igreja Matriz de Sant'Ana, estando esta última, a bem da memória histórica da cidade, erigida a boa distância da primeira. (²)
Entretanto, leitor, não se deve imaginar que bastava haver capela para, necessariamente, haver povoação. Esta citação do Padre Ayres de Casal, em sua Corografia Brasílica, referindo-se a uma localidade no Piauí, nos dá perfeitamente a ideia de que, às vezes, "o tiro podia sair pela culatra", ainda que temporariamente:
"A Freguesia de Nossa Senhora das Mercês, cujos primeiros habitantes eram, pela maior parte, índios jaicós, fica entre o rio Itaim e a ribeira das Guaribas. Todos os fregueses vivem dispersos: o vigário é quase o único vizinho da Matriz, que fica mais de vinte léguas afastada da capital."

(1) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 56.
(2) Para saber mais sobre a Matriz de Sant'Ana, acesse: A arquitetura sacra paulista e mineira nas regiões cafeeiras - 3


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domingo, 3 de abril de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - Núcleos urbanos decorrentes da mineração

Desde que, em fins do século XVII, encontrou-se ouro no interior do Brasil, muitos dentre a população já residente na colônia, e outros que vieram de fora, lançaram-se febrilmente à exploração do metal precioso. Despovoavam-se as vilas e cidades já existentes, e outras surgiram, quase como mágica, nos locais considerados promissores para a mineração. Sobre isso escreveu Saint-Hilaire:
"Conformavam-se, tanto quanto possível, com os misteriosos e lacônicos roteiros dos mais antigos sertanistas; em toda a parte eram pesquisadas a areia dos ribeirões e a terra das montanhas, e, quando encontravam algum terreno aurífero, construíam barracas em sua vizinhança, a fim de explorá-lo. Essas espécies de acampamento (arraiais) tornavam-se pequenas povoações, depois vilas; e foi assim que os paulistas começaram a povoar o interior das terras, incorporando à monarquia regiões mais vastas do que muitos impérios." (¹)
É interessante notar que se, por um lado, os acampamentos e outras formas provisórias de habitação deram origem a muitas novas povoações, por outro, quando se esgotava o ouro facilmente explorável, muitas dessas localidades eram abandonadas, desaparecendo completamente ou, na melhor das hipóteses, resistindo como um pequeno núcleo de agricultura de subsistência.
Isso não invalida o fato, no entanto, de que a mineração propiciou um verdadeiro ciclo de urbanização no interior do Brasil, principalmente nas Minas Gerais, mas também em Goiás e, em menor escala, em outros lugares. Sobre a mais famosa das cidades nascidas da mineração, escreveu o Padre Ayres de Casal:
"Vila Rica, anteriormente Ouro Preto, criada em 1711, grande, populosa, abastada e florescente, é a Capital e residência dos governadores da Província e do ouvidor da Comarca [...]. Tem juiz de fora do cível, crime e órfãos, servindo também de procurador da Coroa; vigário forâneo, professores régios de Primeiras Letras, Latim e Filosofia; porém é mal situada nas abas meridionais da serra do Ouro Preto, entre morros tristonhos, em terreno mui desigual, e frequentemente coberta de névoa [...]." (²)
Rio Vermelho ao passar pela Cidade
de Goiás
Já em Goiás a mais destacada povoação foi Vila Boa de Goiás, inicialmente Arraial de Sant'Ana, fundada no século XVIII pelo famoso bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva. Cabeça da Província e depois Estado de Goiás, preservou essa condição até que, já no século XX, a Capital foi transferida para Goiânia. Sobre ela escreveu o mesmo Padre Ayres de Casal:
"Vila Boa, a princípio Arraial de Santa Ana, erigida no ano de 1739, grande, populosa e florescente, é a residência do governador, do prelado, que é bispo in partibus, e também do ouvidor da comarca, que serve de provedor das capelas, resíduos e ausentes e de juiz da Coroa. [...] Está situada em lugar baixo, sobre as margens do rio Vermelho, que a divide em dois bairros pouco desiguais e comunicados por três pontes. Fica no centro do Estado. Seus edifícios nem são grandes, nem elegantes, nem muito sólidos: os notáveis são a igreja matriz, dedicada a Santa Ana, cinco capelas de Nossa Senhora, com as invocações de Boa Morte, Rosário, Carmo, Abadia e Lapa; outra de São Francisco; o Palácio dos Governadores, a Casa da Câmara, a da Contadoria e a da Fundição do Ouro. Tem um fortim com duas peças para salvar nas solenidades, um chafariz e um passeio público." (³)
Capela da Boa Morte,
Cidade de Goiás
Vale dizer que, ainda segundo Ayres de Casal, a mineração foi a grande propulsora da urbanização em Goiás:
"Quase todas as povoações desta Província existiam já quando ela foi criada e entregue ao governo do ilustríssimo Conde d'Arcos, D. Marcos de Noronha; e nenhuma (exceto as do meio-dia) deve sua fundação senão ao ouro." (⁴)
Resta ainda verificar quem era a gente que, enfrentando a longa e perigosa viagem até as minas, estava disposta a arriscar-se para ali enriquecer. Sobre isso, num trecho memorável de sua obra, Antonil escreveu:
"A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e meterem-se por caminhos ásperos, como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo e as correram todas dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister, não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar.
Igreja de São Francisco, Cidade de Goiás
Cada ano vem nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros para passarem às Minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens, e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, religiosos de diversos Institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento ou casa. " (⁵)
Fica evidente que, nessas condições, os núcleos urbanos decorrentes da mineração eram potencialmente capazes de gerar situações explosivas nos mais diversos aspectos, fosse em termos de violência suscitada pela ambição e cobiça (de que há relatos estarrecedores), fosse ainda por questões políticas ou de contestação à autoridade estabelecida em nome da Coroa Portuguesa. De qualquer modo, esse quadro era já uma grande novidade em se tratando do Brasil, no qual, por pelo menos dois séculos, o extrativismo vegetal e a agricultura canavieira haviam reinado soberanos.

(1) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 156.
(2) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.



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