quinta-feira, 29 de junho de 2017

Luditas

A manhã fria e cheia de névoa não se apresenta como um convite a sair de casa. Mas isso não é uma opção. A família toda (exceto o pai) deixa a mísera habitação e caminha para a fábrica em que trabalha. Nas ruas imundas, o esgoto corre a céu aberto e ratos disputam espaço com os pés dos que passam. O cheiro é péssimo. Há muita fumaça e as pessoas têm um aspecto pouco saudável. Entre os que não trabalham - porque não querem, porque não podem ou porque não acham emprego - o alcoolismo não é nada incomum.
Já na fábrica, a mãe inicia a dura rotina da tecelagem. Os filhos são ocupados em tarefas menores. Para todos, a jornada será longa, como acontece em seis dias de cada semana.
Os trabalhadores estão desassossegados. Circulam notícias, que ninguém quer comentar em voz alta, de que, em alguns lugares, operários descontentes estão destruindo máquinas e até incendiando fábricas. 
Luditas - quem eram eles?
Em History and Antiquities of Nottingham encontramos a informação de que foi em 1811 que as agitações começaram. Embora, na época, as autoridades locais não tivessem muita simpatia por qualquer revolta social, eram, ainda assim, capazes de reconhecer o lamentável estado de pauperização em que viviam os trabalhadores. No dia 11 de março, centenas de operários se reuniram para protestar em praça pública; a polícia tratou de dispersá-los, mas, à noite, algo aconteceu: "Homens saídos do vilarejo de Arnold vieram e quebraram sessenta e três teares, a maioria deles pertencente ao Sr. Broksop." (¹) 
Nas semanas imediatas não houve pausa na destruição de equipamentos, e os incêndios continuaram. Embora a polícia agisse para capturar os responsáveis, poucos foram presos, porque, segundo a mesma fonte, os homens estavam unidos "por juramentos ilícitos, usavam disfarces e eram organizados em sua obra de destruição" (²).  Ao que parece, leitores, foram esses os primeiros incidentes envolvendo luditas, ou seja, trabalhadores insatisfeitos que, intencionalmente, quebravam maquinário e incendiavam fábricas. Por cinco anos, fatos semelhantes ocorreram, não só no condado de Nottingham, como nos de Leicester, Lancaster, Derby e York.
Mas de onde, afinal, veio o nome de "luditas"? Aqui, leitores, as fontes divergem, como costuma ocorrer, em se tratando de um movimento popular e, por sua natureza, ilegal. History and Antiquities of Nottingham atribui a origem da palavra ao nome de certo rapazote insolente, Ludlam, originário de Leicestershire, que teve um entrevero violento com o próprio pai. O líder de cada bando de destruidores de fábricas era chamado "General Ludd" ou "Ned Ludd". Outra explicação para o nome "ludita" seria esta: Ned Ludd seria um menino que trabalhava em uma fábrica e que, por fazer o trabalho com menos habilidade do que se esperava, fora espancado pelo capataz e, em consequência, morrera. Vejam que este é um nó difícil de desatar.
A despeito da origem incerta, o modo de ação dos luditas mostra que havia, mesmo, algum grau de organização:
"Aquele que toma sobre si esse título [General Ludd] tem o comando absoluto dos homens de seu bando, que, armados com espadas, pistolas, espingardas, etc., entram nas fábricas e destroem as máquinas [teares], depois do que se reúnem a pouca distância da cena de destruição, onde o líder chama cada um dos homens, que respondem por certos números, e, se todos lá estão e a tarefa da noite terminou, ele dispara um tiro de pistola; todos, em seguida, se separam, indo para as respectivas casas, onde removem os disfarces negros com que se cobriam." (³)
Recompensas generosas em dinheiro foram oferecidas para favorecer a captura de luditas, mas mesmo essa tentação à cobiça, com a garantia adicional do anonimato, foi de pouco resultado. 
Consciência de classe ou desespero? A existência dos luditas, enquanto produto da Revolução Industrial inglesa, parece sugerir que, malgrado as condições extremamente desfavoráveis em que vivia a quase totalidade da população trabalhadora, havia uma parcela que tinha um grau nada desprezível de consciência quanto às mudanças que se operavam, mudanças essas que alterariam desde as raízes e irreversivelmente as relações de trabalho e produção.

(1) ORANGE, James. History and Antiquities of Nottingham vol. II. London: Hamilton, Adams, and Co., 1840  p. 874.
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 875; todas as citações de History and Antiquities of Nottingham que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 27 de junho de 2017

O mito do caipira preguiçoso e improdutivo

A grande luta social do Século XIX foi a da abolição da escravatura. A favor da abolição militaram alguns dos cérebros mais brilhantes de que o País dispunha; contra ela estavam, como é óbvio, muitos proprietários de escravos, bem como aqueles que tinham empreendimentos que lucravam com a escravidão. Destes, vinha a pergunta: Se não tivermos escravos, quem é que vai trabalhar?
Quase ninguém considerava que os ex-escravos poderiam ser contratados como trabalhadores livres. Até parece que, na cabeça de muita gente, a abolição seria uma espécie de evento mágico, por meio do qual os escravos simplesmente desapareceriam. A lei que aboliu a escravidão sequer fazia menção a eles (¹).
Era desejada e estimulada a vinda de imigrantes europeus (²), cujas características eram apresentadas como diametralmente opostas às dos trabalhadores livres nacionais, os chamados "caipiras", citados, algumas vezes, como verdadeiros acervos ambulantes de todos os defeitos. Existe deles uma descrição que, para os propósitos de nosso estudo, é um verdadeiro primor, e, apesar de um pouco longa, merece ser lida com atenção. Foi escrita por Augusto Emílio Zaluar e publicada no ano de 1862, quando o assunto da abolição ia esquentando e já se falava em intensificar o apoio à imigração europeia:
"À exceção das pessoas mais ilustradas, dos fazendeiros e comerciantes, o resto da população (³) é naturalmente indolente, preguiçosa e alheia a todos os regalos da civilização [...].
Como a terra é aqui abundante e toca a todos, esses homens [chamados] caipiras cultivam a ferro e fogo o torrão que possuem, e plantam-lhe milho, feijão e arroz. Colhido o seu produto, que sem muito trabalho podem haver, levam-no ao mercado, onde o vendem para comprar a roupa que lhes é necessária durante o ano, e regressam a casa, entregando-se outra vez aos seus hábitos de ociosidade, confiados na fertilidade do solo, que lhes fornece abóboras, aipim, batatas e outros gêneros, bem como das matas, que lhes oferecem palmitos, aves e outras muitas qualidades de caça, assim como nos rios, que os alimentam com muitos, variados e gostosos peixes." (⁴)
Leitores, sei que vocês são perspicazes, e, a esta altura, já devem ter esboçado um sorriso. Preguiçosos, os caipiras? Desde quando o solo produz milho, feijão, arroz, abóboras, aipim e batatas espontaneamente, sem qualquer esforço e intervenção de seres humanos? Alguém já ouviu falar de caça e peixes que, por conta própria, aparecem abatidos à porta de quem quer que seja?
Mas o trecho em questão é ainda contraditório. Afinal, se os caipiras eram tão preguiçosos como se afirmava, como é que cultivavam "a ferro e fogo o torrão" em que viviam? Notem, meus leitores, que, ao mesmo tempo em que se lhes imputava ociosidade, eram criticados pelo apego ao cultivo da terra!...
Com isso, já chegamos à questão central da má vontade que imperava (⁵) para com os trabalhadores livres nacionais no Século XIX: eles contrariavam os desejos dos latifundiários, à medida que, tendo um pequeno pedaço de terra que cultivavam para viver, não estavam dispostos a se sujeitar ao trabalho assalariado, em qualquer condição que fosse, nas terras de grandes fazendeiros, quase sempre interessados em explorar a mão de obra, quer de escravos, quer de trabalhadores livres (⁶). À acusação recorrente de que usavam métodos primitivos na prática da agricultura, bem poderiam os caipiras levantar a seguinte questão: Não faziam o mesmo os grandes fazendeiros (⁷), em cujas terras o implemento agrícola mais moderno era a enxada?

(1) Um dos problemas relacionados à Lei Áurea é que nela não se estabeleceu nenhuma provisão para que os ex-escravos tivessem condições dignas de existência.
(2) Havia razões políticas para isso, dentro e fora do Brasil.
(3) Zaluar estava se referindo a uma povoação do Vale do Paraíba, que é hoje uma cidade muito importante no Estado de São Paulo.
(4) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, pp. 165 e 166.
(5) Isso não é um trocadilho.
(6) Este fato explica dois outros, também do Século XIX: a intenção de restringir o acesso à terra (através da Lei de Terras de 1850) e as revoltas de imigrantes europeus, que acusavam os latifundiários de tratá-los do mesmo modo que faziam com os escravos.
(7) É certo que uma minoria de proprietários rurais adotava práticas modernizadoras na lavoura, mas isto era exceção, e não regra.


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quinta-feira, 22 de junho de 2017

Os reis assírios eram grandes caçadores

Neste relevo, assírios são vistos caçando um leão (¹)

Todo mundo sabe que os assírios eram apaixonados pela guerra. Com o passar do tempo, adquiriram uma fama nada simpática, em razão de incontáveis atrocidades cometidas contra inimigos derrotados. Porém, em tempos de paz, eram dados à prática de um esporte muito comum na Antiguidade: a caça. Os baixos-relevos que recobriam seus palácios vieram a ser registros preciosos, com excepcional realismo, dessas atividades de lazer a que os monarcas consagravam parte de seu tempo. Esses mandatários eram, também, adeptos da pesca no mar, de acordo com registros da época. Vejam, leitores, que nem era preciso que os escribas e artistas se desdobrassem em bajulações profissionais para garantir uma imagem favorável aos soberanos, já que os próprios monarcas se encarregavam de tentar proezas que destacassem seu papel de líderes corajosos (²).
Não se deve pensar que a caça fosse, para os reis assírios e outros membros da corte, apenas um passatempo adequado para espantar o tédio entre uma guerra e outra. Como exercício físico, era útil para quem queria manter a forma - os campos de batalha da Antiguidade requeriam muito da força e resistência dos soldados, e mesmo os reis precisavam, frequentemente, entrar em ação, se queriam conservar o respeito de seu próprio povo. Além disso, esse esporte sanguinário ajudava a eliminar qualquer vestígio de sensibilidade diante da dor e sofrimento alheios. Logo, era muito importante para um povo famoso por mutilar e empalar os inimigos derrotados.

Relevo retratando um leão ao sair da jaula (³)

Havia dias, por certo, em que mesmo o rei não estava disposto a peregrinar atrás de feras. Ainda assim, não existia motivo para deixar de fazer correr o sangue de leões e outros animais. Tanto entre os assírios como entre os babilônios era usual manter um estoque de animais selvagens à disposição dos sanguinários monarcas. Sempre que desejado, alguns desses infelizes seres vivos eram soltos e, sem muito trabalho, o rei ensanguentava sua lança e/ou algumas flechas. Os seres vivos viravam seres mortos, enquanto o apetite bélico era aguçado em planos para novas guerras, conquistas e crueldades.

Rei assírio matando um leão (⁴).

(1) LAYARD, Austen Henry. A Popular Account of Discoveries at Nineveh. London: John Murray, 1851, p. 288.
(2) Têm imitadores até hoje...
(3) LAYARD, Austen Henry. Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1882, XXIV.
(4) Ibid., XXVI. Todas as imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 20 de junho de 2017

Senhores de engenho eram explorados por comerciantes de açúcar

Entre os motivos tradicionalmente apontados para o declínio em importância da produção açucareira colonial encontra-se a descoberta de jazidas auríferas, as "Gerais". Por causa da corrida às minas, o preço dos escravos passou por considerável elevação, a tal ponto que muitos senhores de engenho, pensando apenas no ganho imediato, vendiam seus cativos para negociantes que pretendiam fornecer mão de obra para as áreas em que se procurava ouro (¹). Além disso, como havia elevada demanda por alimentos para abastecer as regiões mineradoras, muitos senhores de engenho deixaram de cultivar cana, total ou parcialmente, usando as terras no plantio de gêneros que pudessem ser vendidos aos "mineiros" a peso de ouro (literalmente), já que os suprimentos precisavam ser transportados de lugares distantes e quase nada se cultivava junto às povoações que, do dia para a noite, surgiam em lugares de ricas jazidas. Pouca gente era sensata o suficiente para plantar alguma coisa quando o ouro era arrancado da terra com aparente facilidade (²).
Isso, porém, não era tudo. Epidemias (varíola e febre amarela, principalmente) dizimavam a população colonial, tanto de livres como de escravos. Por consequência, havia redução na mão de obra disponível para a lavoura e para o trabalho nos engenhos. O impacto era severo sobre a produção açucareira. 
Percebendo a fragilidade da situação dos proprietários de engenho, desesperados que estavam para vender o açúcar que conseguiam produzir (³), mercadores e mestres de navios entravam em acordo, de modo a forçar uma redução nos preços usuais - é o que se depreende de uma carta escrita pelo padre Antônio Viera ao Conde de Castelo Melhor:
"Fecharam-se este ano os mercadores em não querer comprar, e os mestres de navios em não querer carregar, para levarem de graça o que se não pode cultivar sem tão custosos instrumentos, como os das fábricas dos engenhos; e havendo leis e forcas para os outros ladrões e homicidas, só para estes que roubam e matam um Estado tão benemérito não há castigo." (⁴)
A carta, escrita na Bahia, onde Vieira passou seus últimos anos, tinha a data de 8 de julho de 1692. Embora a produção de açúcar estivesse longe de desaparecer, havia chegado o tempo de uma completa alteração no foco da economia colonial, que acabaria, inclusive, por resultar na mudança da capital brasileira para o Rio de Janeiro. O Reino queria ouro e, finalmente, as terras portuguesas na América começavam a enviar o tão sonhado metal.

(1) Nem mesmo proibições seguidas de ameaças severas obstavam essa prática.
(2) As técnicas de extração aurífera empregadas no Brasil Colonial eram bastante primitivas. Muita terra rica em ouro se perdia, e apenas jazidas mais ou menos superficiais podiam ser exploradas.
(3) Os proprietários de engenhos, apontados como topo da pirâmide social nos tempos coloniais, estavam às vezes tão endividados que temiam perder tudo o que tinham, em particular após alguns anos de safras ruins, acompanhadas por perda de escravos em razão de alguma doença.
(4) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 442.


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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Missões jesuíticas na América do Sul

O que eram as missões estabelecidas por jesuítas no Continente Americano? O padre Antonio Ruiz de Montoya, que trabalhou no Paraguai durante o Século XVII, explicou que, notando os missionários que os indígenas viviam dispersos em pequenas aldeias, trataram de conduzi-los "a povoações grandes e à vida política e humana e a beneficiar algodão para se vestirem, porque comumente viviam desnudos, ainda sem cobrir o que a natureza ocultou" (¹).
As missões organizadas no Brasil, geralmente não muito distantes do litoral, tinham uma estrutura bastante simples, de acordo com o que as circunstâncias permitiam. Sabemos, por relato do padre Simão de Vasconcelos, que havia dois tipos básicos de missões:
"Duas sortes há de missões: umas se fazem correndo as aldeias dos índios já batizados ou catecúmenos, reduzidos a elas e doutrinados aí pelos padres. Outras se fazem caminhando ao interior das brenhas cento, duzentas e mais léguas, trazendo delas bandos de bárbaros, para torná-los exércitos de Cristo." (²)
Na percepção dos missionários, a proximidade dos colonizadores era, porém, um problema muito sério. Motivo? O mau exemplo que davam aos catecúmenos, que logo aprendiam, por observação, que entre os cristãos professos podia haver uma enorme diferença entre dizer e fazer. Foi exatamente por isso que, no interior do Continente, em áreas que hoje pertencem, por exemplo, ao oeste dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e em outros países, como o Paraguai e a Argentina, os jesuítas resolveram fundar missões a uma razoável distância das vilas coloniais. Aí desenvolveram uma estrutura complexa de povoamento e catequese, que, no entender de alguns, tendia a ser, em algum momento no futuro, um verdadeiro império jesuíta na América (³).
Nesse cenário, cada missão era uma cidade em miniatura, muito limpa e organizada, sob o comando de jesuítas, mantendo, ao menos na aparência, algo da antiga ordem social indígena, na medida em que um cacique era também reconhecido como autoridade civil. Segundo explicação de Ayres de Casal, "cada uma das reduções, por outro nome missões, era uma considerável ou grande vila, e todas por um mesmo risco com ruas direitas e encruzadas em ângulos retos; as casas geralmente térreas, cobertas de telha, branqueadas, e com varandas pelos lados para preservarem do calor e da chuva, de sorte que vendo-se [sic] uma, se forma ideia verdadeira das outras. Em cada uma só havia a Igreja Matriz, todas geralmente de pedra, magníficas, elegantes, de naves, e ricamente ornadas, algumas inteiramente douradas. Um vigário e um cura, ambos jesuítas, eram os únicos eclesiásticos, e suficientes para exercer todas as funções paroquiais, sendo ainda os inspetores em toda a economia civil, debaixo de cuja direção havia corregedores eleitos anualmente, um cacique vitalício e outros oficiais, cada um com sua inspeção e alçada". (⁴) 
É óbvio que, aceitando viver nas missões, os indígenas tinham de pôr de lado a maior parte de suas antigas tradições. Passavam a usar um vestuário padronizado, tinham hora definida para todas as atividades e qualquer prática poligâmica era completamente banida. As crianças frequentavam a escola, havia aulas de música, pintura e escultura, os adultos aprendiam ofícios mecânicos e técnicas de agricultura, todos deviam comparecer à "doutrina" (catequese) e os faltosos eram punidos. A imposição desse estilo de vida aos indígenas tem recebido críticas, uma vez que, sob a estrita tutela dos padres, os indígenas perdiam a autonomia e já não podiam tomar as próprias decisões, até mesmo quanto a questões corriqueiras do quotidiano. Por outro lado, é inegável que os missionários tinham por seus catecúmenos um afeto imenso. Estavam dispostos a morrer por eles, se necessário. Quando paulistas apareceram em sua área (⁵), devastando missões para escravizar indígenas, houve padres que se dispuseram a acompanhar os infelizes prisioneiros até São Paulo, a fim de protestar junto às autoridades sobre a injustiça que se cometia. Desnecessário é dizer que não foram atendidos.

(1) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 162.
(3) Quando os jesuítas foram expulsos em 1768, uma das acusações frequentes que lhes faziam era de que estariam arquitetando um plano vastíssimo de estabelecimento de uma espécie de "império teocrático" no coração do Continente Americano. Tal acusação jamais foi efetivamente comprovada.
(4) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica,  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, pp. 159 e 160.
(5) Essa primeira aparição de uma bandeira de apresamento em território das missões do Guayrá aconteceu em 1628.


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terça-feira, 13 de junho de 2017

A descoberta de jazidas auríferas não enriqueceu os bandeirantes paulistas

Casa do ciclo bandeirante em Santana de Parnaíba (SP), localidade em que nasceu
Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera

Pode parecer absurdo, mas é fato: bandeirantes paulistas, como regra geral, não enriqueceram com a descoberta de jazidas auríferas, e tampouco deixaram herança considerável para seus descendentes. Escrevendo em fins do Século XVIII (portanto, mais ou menos cem anos após os primeiros achados significativos), o astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida observou que os bandeirantes, “entranhando-se por aqueles imensos sertões sem outra bagagem mais que a pólvora e a bala, sem outro rumo mais que o do acaso, [descobriram] neles todas as minas de ouro e pedrarias que possuímos, e que tanto têm enriquecido aos seus posteriores, ficando eles e seus descendentes pobres". (¹)
Os paulistas descobridores de minas não recebiam qualquer ajuda da Coroa para seus empreendimentos; ao contrário, muitos deles consumiam o patrimônio em tentativas de atender às solicitações reais, cuja Real Fazenda se achava sempre em má situação. Pedro Taques de Almeida Paes Leme, em sua Nobiliarchia Paulistana, assinalou que "Fernão Dias Paes não teve um só real de ajuda de custo, como do mesmo modo não tiveram os mais paulistas descobridores das Minas Gerais, do Cuiabá e dos Goiases [...]." Esse fato, aliado às magras recompensas que recebiam pelos serviços prestados (²), explica, em parte, a razão pela qual os descobridores de ouro e pedras preciosas não se tornaram economicamente poderosos. Alguns chegaram a ter prejuízo considerável.
É possível, leitores, que o maior ícone bandeirante na procura do ouro seja Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, descobridor das minas de Goiás na primeira metade do Século XVIII. Pois bem, o brigadeiro Cunha Matos, que esteve em Goiás pouco depois da Independência (³), teve ocasião de encontrar descendentes do famoso explorador - um rapaz de quatorze anos e duas moças, uma com dezenove e outra com vinte e cinco anos - vivendo, os três, em uma modesta casinha nas proximidades do rio Corumbá. Sobre as moças, observou:
"Apareceram-me pobre mas decentemente vestidas, e ainda que mui acanhadas, inculcam nobreza de alma, sobretudo na resignação com que suportam a quase indigência em que se acham. Assim vivem os descendentes do ramo principal dos Anhangueras! [...] Assim vivem, faltas de todas as comodidades, as bisnetas do célebre Bartolomeu Bueno, conquistador e povoador de Goiás, que regurgitando em ouro, morreu em miséria, e cuja consorte foi obrigada a vender todas as suas joias e escravos para pagar vinte mil cruzados, que se lhe adiantaram pelo Cofre da Fazenda Real! Sic transit gloria mundi!" (⁴)
E quanto ao menino:
"O irmão é um galante moço sem educação: na sua quase miséria comporta-se como um plebeu honesto, sem, todavia, se esquecer de que é fidalgo, e príncipe dos fidalgos de Goiás." (⁵)
A riqueza do ouro fora passageira, tanto para indivíduos como para as localidades nascidas com a mineração. Aos leitores que se condoeram diante da pobreza da família Bueno, informo que, para remediar a situação, o presidente da Província de Goiás tornou-os administradores da passagem do rio Corumbá; por iniciativa do Brigadeiro Cunha Matos, o jovem Bueno foi admitido como tenente de Caçadores, posto que lhe assegurou um soldo.

(1) ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Demarcação dos Domínios da América Portuguesa. São Paulo: Typographia de Costa Silveira, 1841, p. 87.
(2) Quando chegava a haver alguma recompensa.
(3) Cerca de um século após os descobrimentos do Anhanguera.
(4) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás, Tomo I. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 114.
(5) Ibid., p. 115.


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quinta-feira, 8 de junho de 2017

A navegação em águas do Império Romano no Século I

A fonte de informação - Plínio, o Velho - é confiável. Afinal, além de ser um dos grandes nomes da ciência na Antiguidade, ele chegou a ocupar um cargo importante no comando da marinha de Roma, de modo que não vem a ser nenhuma surpresa que, no Livro II de sua Naturalis Historia, tenha dedicado atenção às questões náuticas. Assim é que somos informados de alguns aspectos interessantes que regiam a navegação no Século I d.C., particularmente para as embarcações que percorriam águas do Mediterrâneo e adjacências.
Muitos navios comuns no mundo romano desse tempo eram mistos, ou seja, eram impelidos pela força do vento (tinham velas) e de músculos humanos, tanto de escravos como de condenados por algum crime. Empunhando longos remos, esses homens eram obrigados, em diversas manobras, a mover embarcações, quer mercantes, quer de guerra. 
O vento, todavia, era preponderante. De acordo com Plínio, a temporada anual de navegação começava na data a que hoje chamamos 8 de fevereiro. Era a ocasião em que os ventos furiosos de inverno serenavam e o mar parecia mais calmo. Comércio e viagens eram possíveis e, nessas condições, com menor perigo. Assim seguia o ano, até que a chegada de uma nova estação fria obrigava quem tinha juízo a permanecer em terra. Lemos em Naturalis Historia:
Calendário romano para os meses de
novembro e dezembro (³)
"Cerca de quarenta e quatro dias depois do equinócio de outono o ocaso das Plêiades assinala o começo do inverno, que usualmente sucede nos idos de novembro (¹), quando sopra o vento hibernal chamado Aquilão." (²) 
Entretanto, ainda de acordo com Plínio, havia, no inverno, uns poucos dias de navegação favorável, "seis dias antes e seis dias depois do dia mais curto do ano", ou seja, do solstício de inverno. Para viagens breves, eram uma possibilidade, e também um risco. O mar podia sofrer mudanças bruscas, a viagem talvez não ocorresse tão depressa quanto se supunha possível. Era realmente perigoso. Somente piratas - sempre eles! - e que se arriscavam em meio às ondas de inverno, esperando pilhagem maior, desde que sobrevivessem.
Marinheiros desse tempo eram homens supersticiosos. Em qualquer estação do ano, o mar tinha (e tem) seus perigos, daí porque, dentre todas as divindades do panteão romano, Castor e Pólux, os deuses-estrelas da Constelação de Gêmeos, eram, segundo informação de Plínio, invocados como protetores dos marinheiros: "O povo faz preces a eles, como deuses que socorrem no mar." (²)
É certo que Plínio, com justificado ceticismo, não parecia demonstrar muita fé na intervenção de tão ilustres personagens. Não censurava, porém, a devoção popular. Que mal haveria nessa crença ingênua (talvez pensasse), se ela ajudava a marinhagem a levar de vencida o receio que a fúria das ondas encorajava?

Pequena embarcação romana (⁴)

(1) Nota-se que o começo das estações estava, na mentalidade romana, associado às condições climáticas, não sendo visto como um evento astronômico com data fixa, não importando o frio ou calor em dias predeterminados.
(2) Os trechos citados de Naturalis Historia são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(3) MALLET, Allain. Manesson Beschreibung des gantzen Welt-Kreises. Frankfurt am Main:  J. A. Jung, 1719, p. 59.
(4) HOLMES, George C. V. Ancient and Modern Ships Parte I. London: Eyre and Spottiswoode, 1910, 49.


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terça-feira, 6 de junho de 2017

Uma comparação entre europeus e indígenas, de acordo com Jean de Léry

"Nasceram mais livres que nós, senhores absolutos das terras em que Deus os pôs..."
Padre Antônio Vieira, em carta de 5 de agosto de 1684

Quando fazemos alguma viagem, procuramos ter, com antecedência, o máximo de informações sobre o local de destino. Consultamos sites, olhamos fotos e vídeos, recorremos a mapas, se necessário. E, é bom que se diga, tudo isso hoje é muito fácil, em quase qualquer lugar do mundo. Mas nem sempre foi assim.
No Século XVI, quando um europeu resolvia correr o risco de uma viagem marítima para fora de seu Continente, dificilmente sabia o que é que haveria de encontrar. Os mapas eram imprecisos e mesmo navegadores experientes tinham problemas em determinar com exatidão o lugar em que se encontravam. Tudo o que havia ao redor era a água do mar e, muito longe, o céu estrelado. Ah, naturalmente quando as estrelas, incluindo o sol, eram visíveis. Caso contrário, os problemas eram muito maiores.
Jean de Léry era ainda bastante jovem quando atravessou o Atlântico e, mergulhado em ideais religiosos, veio viver por quase um ano na França Antártica, uma colônia que calvinistas franceses tentaram em vão estabelecer na América do Sul, em área do atual Estado do Rio de Janeiro. Como os franceses tinham um bom relacionamento com os índios tupinambás, Léry pôde observar tranquilamente como é que esses nativos viviam. E as comparações vieram, inevitáveis. Foram, mais tarde, expostas em um livro, Histoire d'un Voyage Faict en la Terre du Brésil
Notou, logo de início, que os indígenas não eram nem mais altos e nem mais pesados que os europeus; não obstante, eram muito mais fortes. Por quê? Léry responsabilizou o clima do Brasil, que não tinha extremos de frio e calor, e o ar que, segundo ele, era puríssimo (¹). A diferença era tanta que um europeu jamais seria capaz de usar um arco indígena, e isso valia até mesmo para os ingleses, que eram considerados os melhores arqueiros da época - percebam, leitores, que era um francês quem estava dizendo... Europeus somente estavam em condições de usar arcos indígenas feitos para meninos de uns dez anos de idade, não mais. Espantosa, também, era a velocidade com que um tupinambá atirava. No tempo necessário para que um inglês disparasse meia dúzia de flechas, um índio faria o dobro. 
Mas não era só. Andando por aldeias indígenas, Jean de Léry percebeu que o modo como as mães cuidavam de seus bebês era, por assim dizer, o oposto do que de se praticava na Europa. Crianças europeias viviam, no verão e no inverno, enfaixadas e cobertas por montes de agasalhos, e, mesmo admitindo as especificidades relativas ao clima frio, não podia o francês deixar de admirar que os bebês indígenas vivessem livres. Embora não usassem fraldas, nunca estavam sujos. Sim, aprendiam a gostar de banhos desde pequenos.
Prevendo que seus leitores não tardariam a argumentar que, mesmo levando vantagem nesses aspectos, os indígenas viviam em plena selvageria, Léry, longe de fugir da questão, tratou de expor o assunto. Não havia como negar que as guerras entre nativos eram sangrentas, que a antropofagia não era nenhuma raridade, que as inimizades entre tribos eram quase perpétuas. Um horror! Que diria Léry?
O jovem artesão francês, depois de deixar o Brasil em 1558, retornou à Europa, participou de guerras por causa de questões religiosas e, mais tarde, indo a Genebra, estudou teologia e veio a ser um pastor protestante. Só aí é que escreveu seu livro, e tinha, então, uma resposta na ponta da língua para as invectivas quanto à selvageria dos indígenas. Não estariam os europeus de seu tempo em pé de igualdade nesse assunto? Não eram os pobres, mesmo quando padeciam de fome, explorados pelos ricos? Não havia tantos que, mesmo orgulhosos de se chamarem cristãos, se engalfinhavam em guerras monstruosas, tendo a defesa da religião por pretexto? Que dizer do Massacre de São Bartolomeu? 
O recado de Léry era simples: Se alguém queria ver selvageria, não era preciso sair da Europa. E concluía dizendo que, não fora o que chamava de "traição de Villegaignon", o Brasil teria sido seu lar para sempre.

Indígenas treinando para o combate (²)

(1) Bons tempos, aqueles...
(2) ___________ Bilder - Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus.


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quinta-feira, 1 de junho de 2017

Os corvos de Odin e as araras dos Araés

Odin, o deus nórdico, queria estar sempre atualizado. Para isso contava com a ajuda de dois corvos, que, sentados, um em seu ombro direito e outro em seu ombro esquerdo, traziam continuamente um relatório do que viam enquanto voejavam mundo afora (¹).
Se saísse da mitologia nórdica e viesse para a América do Sul, é possível que, em lugar dos dois corvos, Odin arranjasse dois papagaios. Seriam, com toda probabilidade, mais falantes, e talvez até tivessem mais para contar...
Dois papagaios - ou seriam duas araras?
Ao que parece, havia uma crença entre indígenas do Brasil Central, de que a aproximação dos que não eram indígenas era notificada por araras, de acordo com o que escreveu José Vieira Couto de Magalhães:
"Diversos bandos de araras passaram por cima de nossas cabeças; referiram-me que os índios dos Araés têm uma crença por virtude da qual pensam que, quando suas aldeias têm de ser visitadas pela nossa gente, as araras os advertem disso, esvoaçando e gritando por cima de suas moradas." (²)
Araras ou corvos novidadeiros faziam sentido na imaginação de quem vivia em tempos nos quais as comunicações eram lentas. Por isso, não deixa de ser intrigante que ainda exista quem venha dizer: Um passarinho me contou que...

(1) A conclusão óbvia é que, para a mentalidade nórdica, Odin, o maior dos deuses, não era, por si mesmo, onisciente.
(2) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio AraguaiaGoiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 153.


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