segunda-feira, 30 de maio de 2016

O rapto das sabinas

Comecemos, meus leitores, por dizer que o rapto das sabinas não foi só das sabinas. Mas disso trataremos mais adiante.
Rômulo, como se sabe, foi, ao lado de Remo, seu irmão, o herói lendário da fundação de Roma. A nova cidade tinha, no entanto, um gravíssimo problema: sua população era constituída exclusivamente por indivíduos do sexo masculino...
Pois bem, de acordo com Tito Lívio (¹), em Ab urbe condita libri, "por falta de mulheres, a grandeza da cidade [Roma, que Rômulo fundara], não duraria mais que a vida de um homem, pois não havia esperança de descendência." (²)
Alguém perguntará: E por que os romanos não se casavam? Aí exatamente é que residia o problema. Eles até queriam, mas os povos vizinhos não consentiam que suas filhas contraíssem casamento com romanos, porque a fama dos homens de Roma era ruim. Não, não era ruim, era péssima.
Foi então que Rômulo teve uma ideia que soou brilhante aos ouvidos romanos. Foram organizados jogos em honra do deus Netuno, e, para maior brilho da festa, os povos que viviam nos arredores de Roma foram também convidados. Segundo Tito Lívio, o convite não só foi aceito, como toda a gente da redondeza compareceu. Uma verdadeira multidão, portanto, e, no meio dela, muitas jovens solteiras - sabinas, entre elas, mas não só - o que deu aos romanos a ocasião para a perfídia, já que as senhoritas foram raptadas, a fim de dar descendentes aos arruaceiros de Roma.
Conta Tito Lívio:
"Com medo diante do espetáculo [do rapto], os pais das raptadas fugiram tristemente, lamentando a violação das leis da hospitalidade."
Naturalmente todos os ofendidos juraram vingança. Cada povo tratou de fazer guerra aos raptores, mas, um a um, todos os vizinhos foram derrotados. Finalmente vieram os sabinos, que, em um primeiro combate saíram vencedores. Em desespero de causa, Rômulo prometeu construir um templo em honra de Júpiter e, maravilha das maravilhas, nessa hora as mulheres sabinas que haviam sido raptadas apareceram, algumas já carregando bebês, e a guerra acabou, de modo que, ainda de acordo com Tito Lívio, os romanos e os sabinos vieram a ser um só povo. Tempos depois, Rômulo tratou de dividir "o povo em trinta cúrias, dando a cada uma o nome de uma mulher sabina".
Ora, ora, meus leitores, essa história tem uma coleção de incongruências. Vejamos:
  • Se os romanos eram gente tão ruim, por que os povos vizinhos aceitaram vir aos jogos organizados por Rômulo?
  • Os povos convidados não eram, em conjunto, muito mais numerosos que os romanos? Por que, então, não partiram para o ataque ali mesmo, a fim de libertar as mulheres raptadas e/ou vingar a afronta?
  • Supondo que fosse mesmo impossível uma luta imediata, por que cada povo foi, isoladamente, fazer guerra contra os romanos, quando seria mais provável a vitória se todos fossem juntos à desforra?
O fato é que a história do rapto das sabinas (e das moças dos outros povos) só foi escrita longo tempo depois da época em que se supunha ter acontecido, e, assim, é considerada por muitos como um episódio lendário, que explicaria, alegoricamente, como Roma foi, aos poucos, dominando os povos vizinhos. No entanto, levando em conta que na Antiguidade o rapto de mulheres não era nada incomum, não seria nenhum absurdo supor que algo possa ter acontecido, encarregando-se o passar do tempo de agregar adornos e detalhes romanescos que não estavam presentes na aventura original. A pose histórica ficou, é claro, aos cuidados da pena de Tito Lívio.

(1) Historiador romano que viveu entre a segunda metade do Século I a.C. e a primeira do Século I d.C.
(2) Todas as citações de Ab Urbe condita libri que ocorrem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 27 de maio de 2016

As minas de Afonso Sardinha


Um dos lugares, no interior de São Paulo, em que Afonso Sardinha
conduziu a busca por jazidas (³)

É pouco provável que Afonso Sardinha seja nomeado em aulas de História nas escolas de nível fundamental e médio. A maior parte dos leitores, acredito, sequer terá ouvido falar nesse sujeito, mas foi ele, em  fins do Século XVI, que começou a dar forma ao sonho de achar ouro em terras do Brasil. Era, ao que parece, um explorador incansável, e para efetuar descobrimentos teve que percorrer uma parte significativa do território do atual Estado de São Paulo. Embora procurasse metais preciosos, reconhecia a importância, e mesmo a necessidade, de trabalhar ferro para objetos de que os colonos precisavam desesperadamente, porque as magras remessas que anualmente vinham do Reino eram caras e insuficientes, e nesse sentido, seria o primeiro a fazer experiências em uma região na qual muitas outras, em grande parte malogradas, viriam a acontecer em séculos posteriores.
Pedro Taques, na Nobiliarchia Paulistana, dá mais detalhes desse indivíduo notável mas pouco lembrado, descrevendo-o como "o afamado paulista Afonso Sardinha, primeiro descobridor das minas de ouro em todo o Estado do Brasil em São Paulo nas serras de Iaguamimbaba, que agora se chama Mantaguyra, na de Jaraguá, termo de São Paulo, na de Vuturuna, termo da vila de Paranhiba e na de Hybiraçoyaba (¹), termo de Sorocaba." É possível que na pequena São Paulo do Século XVIII Afonso Sardinha fosse ainda lembrado, em vista da menção dele feita por Taques como "afamado paulista". O tempo, porém, lançou o homem em quase absoluto esquecimento.
Engana-se, todavia, quem imagina que suas descobertas de minas foram feitas com alguma ajuda de custo por parte da Coroa, que era, certamente, grande interessada no assunto. Nem Afonso Sardinha e nem os paulistas que vieram depois dele recebiam qualquer adiantamento para a ida ao sertão à procura de jazidas auríferas. As primeiras minas encontradas não eram, de fato, muito promissoras, ainda que apresentassem algum rendimento. 
Sardinha, explorador e minerador, foi também um caçador de índios, o que se infere por testamentos da época, nos quais se mencionavam pessoas que tinham índios "administrados", trazidos a São Paulo em uma expedição feita por ele. Por algum tempo exerceu cargo público, segundo aparece também na Nobiliarchia:
"Afonso Sardinha [...] fez muitos serviços à sua custa à real coroa, não só com os descobrimentos de minas de ouro já no ano de 1590, mas também quando foi capitão da gente de São Paulo para a reger e governar, de que teve patente datada em 20 de abril de 1592 por Jorge Corrêa, moço da câmara, capitão-mor governador e ouvidor da Capitania de São Vicente e São Paulo em qual se vê os muitos e grandes serviços que havia feito a Sua Majestade [...]. Este Afonso Sardinha fez fabricar dois engenhos de ferro, em que se fundia excelente ferro e com muita abundância, dos quais ainda no presente tempo existe no serro de Hybiraçoiaba uma muito grande bigorna, que a todos acusa e recorda a certeza daquela fábrica [...]."

Muro de pedra que talvez servisse para bloquear a passagem da água em uma
área explorada por Afonso Sardinha (³)

Pedro Taques recorda, então, que Afonso Sardinha, descobridor de minas, jamais foi devidamente recompensado por El-Rei:
"Afonso Sardinha contentou-se só com a glória do real serviço, fazendo os descobrimentos dos três metais, ouro prata e ferro, tudo à sua custa. Até os engenhos para se fundir ferro entregou a Sua Majestade."
Consta que, em testamento, Afonso Sardinha deixou à sua mulher todos os bens que tinha, com o desejo expresso de que, após a morte dela, fossem passados para as mãos dos jesuítas (²). Para os padrões da Capitania de São Vicente de seu tempo, ele não era um homem pobre, mas não se pode dizer que sua vida de trabalhos tenha sido largamente recompensada. Pode ter sido o primeiro, mas não foi o único descobridor de minas que jamais recebeu premiação à altura de suas realizações - pouco depois da Independência, o Brigadeiro Cunha Matos, em suas andanças nas proximidades de Corumbá de Goiás, encontrou descendentes de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, vivendo na maior pobreza.

Local provavelmente explorado por Afonso Sardinha em fins do Século XVI (³)

(1) Os leitores não devem estranhar a grafia dos topônimos, em especial se forem de origem indígena. Um mesmo autor escrevia, ora de um jeito, ora de outro (até Pedro Taques fazia isso), porque não havia uma norma estrita a esse respeito.
(2) Legar bens a uma Ordem religiosa era, nesse tempo, uma fato comum: esperava-se que os religiosos beneficiados retribuíssem com missas que, segundo suas crenças, ajudariam a libertar a alma do generoso doador das penas do purgatório.
(3) Considera-se que esse lugar foi um dos muitos explorados por Afonso Sardinha em fins do Século XVI, quando procurava metais preciosos e ferro. Está localizado dentro da área da Floresta Nacional de Ipanema, em Iperó - SP. Em relação às experiências para fundir ferro, é difícil determinar o quanto eram bem-sucedidas. Pedro Taques era, às vezes, um pouco exagerado ao relatar as virtudes e sucessos dos paulistas.


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quarta-feira, 25 de maio de 2016

O trabalho das lavadeiras na capital do Império do Brasil

Mulher lavando roupa, de acordo com James Wells Champney, 1860 (¹)

"Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos."

Machado de Assis, Dom Casmurro

Esqueça as eficientes lavadoras eletrônicas - você está agora no Século XIX, leitor, e a roupa suja não será, de jeito nenhum, lavada em casa, ao menos se você for um sujeito de certa importância.
Lavar, passar e engomar a roupa era trabalho para escravas, mas que podia também ser feito por mulheres pobres e de condição livre, em troca de um modesto pagamento. 
Na imagine, porém, como regra, a existência de uma lavanderia doméstica. A roupa era lavada, quase sempre, em pequenos riachos, nas imediações das casas ou nos arredores da cidade. Lavadeiras iam juntas a determinados lugares para lavar a roupa e colocá-la para secar ou alvejar, aplicando técnicas da época.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis apresenta, logo nas primeiras páginas, o tio João, personagem de vida e linguagem nada imaculadas, que apreciava dar dois dedos de prosa com as escravas encarregadas de lavar a roupa. É o próprio Brás Cubas, o autor-defunto ou defunto-autor, quem conta:
"Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo [o tio João], no fundo da chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redarguindo as pilhérias do tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
- Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!"
Para os naturais da terra tudo isso poderia soar como a coisa mais normal deste mundo. Estrangeiros é que olhavam com curiosidade, talvez mesmo com espanto, para o modo como a elite do Império garantia o uso de roupas limpas. Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista que viveu alguns anos no Brasil durante o Período Regencial, fez observações interessantes sobre o modo como trabalhavam as lavadeiras que teve a oportunidade de ver em ação, durante um passeio a cavalo que fez ao Corcovado:
"Límpido arroio saltita no fundo de um precipício cavado nas fraldas do Corcovado. Passeando-se pelas margens podem-se contemplar inúmeras lavadeiras dentro d'água batendo roupa sobre as pedras que se sobrelevam à corrente. Muitas delas saem da cidade pela manhã, com enorme trouxa sobre a cabeça, e voltam à tarde com toda ela já lavada e enxuta. Em diversos lugares veem-se pequenos fogões improvisados onde preparam as refeições, e grupos de crianças brincando pelo chão, algumas das quais já grandinhas, correm atrás das mães. As menores, porém, vão penduradas às costas das escravas sobrecarregadas com a mala de roupas." (²)

Lavadeiras do Rio de Janeiro (³)
Já veem os leitores que, como disse ao princípio, ao menos nos dias do Império, roupa suja não era mesmo lavada em casa. Gracejos à parte, o fim da escravidão forçou uma mudança de mentalidade. Embora muita gente ainda contratasse os serviços de uma lavadeira, gradualmente ganhou espaço a ideia de que, afinal, seria muito mais higiênico se as roupas fossem lavadas e passadas dentro de casa, de preferência por alguém da própria família (⁴), com essa ou aquela marca de sabão, cuja propaganda aparecia nos jornais e nas revistas da época - uma prova de que é possível achar argumentos para quase tudo, principalmente quando interesses (comerciais ou não) estão em jogo.
Não nos esqueçamos também de que, para lavar a roupa em casa, era preciso existir um suprimento regular de água, muito diferente do velho sistema em que escravos traziam-na dos chafarizes ou aguadeiros andavam a vendê-la pelas ruas. A gradual implantação de redes de abastecimento, primeiro nas grandes cidades e, mais tarde, nas menores, forneceu a base para que os velhos costumes quanto à lavagem da roupa sofressem uma reviravolta, ainda que, em não poucos lugares, poços de uso doméstico tenham sido, também, por bastante tempo, uma solução a ser levada em conta.

Propaganda de sabão na revista A Lua, 1910 (⁵)

(1) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 111 e 112.
(3) ________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Para que isso fosse possível, o modo como as residências eram construídas precisou sofrer alterações significativas.
(5) A LUA, Ano I, nº 10, Março de 1910.


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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Nem todo atleta grego era candidato a herói

Tentativa de reconstituição de como seria uma arena para treinamento de atletas
e competições em Esparta (¹)

Para os atletas que competiam em Olímpia, ou mesmo nos outros jogos que eram celebrados na Grécia, o importante era vencer. Embora os gregos acreditassem que a cada certame os deuses se intrometiam para que a vitória fosse de seus favoritos, nem por isso os competidores deixavam de treinar com afinco e, durante as provas, havia até quem se dispusesse a morrer na luta, de preferência a sair derrotado.
Isso não quer dizer que a totalidade dos atletas gregos era composta de candidatos a heróis. Havia, também, gente que sonhava com a fama, mas cujos triunfos não iam muito além da imaginação. Sabemos que era assim por uma comparação feita por Políbio de Megalópolis em sua História, na qual é oferecida ao leitor a possibilidade de entrever o fato de que, mesmo sob o suposto olhar dos deuses, havia competidores que não estavam decididos a dar o sangue pela vitória:
"Não tem esta reflexão outro propósito senão mostrar que há aqueles que, à semelhança dos maus atletas no estádio, param de correr e abandonam seu objetivo quando próximos à chegada, enquanto outros, em idêntica situação, obtêm vantagem frente aos demais competidores." (²)
No esporte como na vida, na Antiguidade ou no Século XXI. Concordam, leitores?

(1) HALL, Jennie. Life in Ancient Greece. London: George G. Harrap & Company, 1913. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) O trecho citado da História de Políbio é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 20 de maio de 2016

Como o Brasil foi afetado pela pandemia de gripe espanhola (1918 - 1919)

Propaganda de medicamentos para alívio dos sintomas da gripe: "...as manifestações perigosas
da gripe (...) são verdadeiros espectros, que ameaçam a todos os povos agora mais que nunca..."
(¹)

A pandemia de gripe que varreu o mundo entre 1918 e 1919 é chamada "espanhola", mas, ao que se sabe, não começou na Espanha, havendo certa polêmica sobre a origem dos primeiros casos. De qualquer modo, soldados da Entente, em abril de 1918, foram as primeiras vítimas militares em território europeu (a Espanha, na Primeira Guerra Mundial, era não beligerante). A gripe vinha juntar-se, portanto, aos já numerosos flagelos ocasionados pela guerra, com o agravante de que, aliada à alta taxa de mortalidade, a pandemia parecia ter preferência por gente jovem e cheia de saúde, o que não a impedia de afetar, também, os de mais idade.
O fim da Primeira Guerra Mundial favoreceu a propagação da doença, já que os soldados que voltavam para casa acabaram levando a gripe para muitos lugares diferentes. É verdade que, nesse tempo, os transportes intercontinentais eram feitos apenas em navios, o que, por um lado, retardava a chegada de enfermos, mas, por outro, a convivência em embarcações apinhadas favorecia a contaminação. Mesmo com a adoção de medidas de controle, pessoas aparentemente saudáveis desembarcavam e, em terra, manifestavam os sintomas da temida doença.
Levantamentos estatísticos têm demonstrado que uma primeira fase de transmissão, ocorrida entre abril e agosto de 1918, foi de pouca gravidade, mas, a partir de setembro, a mortalidade disparou, indo essa fase gravíssima até fins de janeiro de 1919. A gripe espanhola ainda faria vítimas nos meses seguintes, porém menos intensamente. 
É evidente que o Brasil não estava, na época, preparado para lidar com uma pandemia, sendo necessário admitir que, além de tentativas de educar a população quanto a hábitos de higiene que dificultassem a propagação da gripe, não havia muito mais a fazer. A capacidade de atenção hospitalar era reduzida, e o isolamento dos doentes, mesmo necessário, em certos casos favorecia o abandono, com o medo desempenhando, em tal cenário, um papel nada desprezível. 

Escoteiros de São Paulo auxiliando a população durante a pandemia de gripe.
A legenda original dizia: "Os escoteiros saindo da Repartição do Telégrafo Nacional,
no serviço de entrega de despachos durante a epidemia."
(²)

Escoteiros de São Paulo saindo de uma farmácia para fazer a entrega de medicamentos.
Legenda original: "Os bravos escoteiros em serviço de entrega de medicamentos, durante a
epidemia de gripe, nesta capital."
(³)

Embora seja difícil saber quantas pessoas morreram por causa da gripe em terras brasileiras, uma vez que as condições sanitárias deficientes não possibilitavam um controle estrito, há uma estimativa de que o número de óbitos tenha chegado perto de trezentos mil - para uns poucos meses, quando as condições de transporte e comunicações não eram ainda muito favoráveis, foi mesmo um absurdo. Detalhe: entre os mortos, estava o presidente eleito da República, Conselheiro Francisco de Paula Rodrigues Alves, falecido em janeiro de 1919, e que não chegou a ser empossado no cargo (⁴)

Sepultamento (em Guaratinguetá) do presidente eleito Rodrigues Alves,
que faleceu em consequência da gripe em janeiro de 1919 (⁵)

(1) A CIGARRA, Ano VI, nº 109, 1º de abril de 1919.
(2) A CIGARRA, Ano V, nº 103, 24 de dezembro de 1918. 
(3) Ibid.
(4) Já fora presidente da República entre 1902 e 1906.
(5) A CIGARRA, Ano V, nº 105, 1º de fevereiro de 1919.


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quarta-feira, 18 de maio de 2016

Trabalho compulsório na América Espanhola: a Encomienda

Encomiendas, encomenderos, encomendados


A encomienda foi um tipo de trabalho compulsório adotado por colonizadores na chamada América Espanhola. Em poucas palavras, funcionava assim: um espanhol (o encomendero) recebia certo número de índios (os encomendados), de quem poderia exigir trabalho sem qualquer remuneração, ficando, no entanto, obrigado a cuidar de sua catequese. Hoje chega a parecer ridículo, ainda que não tenha graça nenhuma.
Sem entrar no assunto da catequese forçada de indígenas, será útil recordar que, como regra, encomenderos não tinham a menor preocupação quanto a doutrinar a população nativa. Estavam somente interessados em extorquir trabalho.
Se dermos crédito ao que escreveu no Século XVI o frade dominicano Bartolomé de Las Casas (e temos boas razões para acreditar nele), os conquistadores achavam que a população nativa do Continente Americano era demasiado numerosa e, portanto, seria difícil dominá-la. Assim, faziam guerra para matar os homens adultos - ou guerreiros - e depois capturavam os sobreviventes para trabalho compulsório. Disse Bartolomé de Las Casas:
"Geralmente nas guerras não deixam vivos a não ser os jovens e as mulheres, oprimindo-os com a mais dura, horrível e áspera servidão, em que jamais nem homens e nem animais foram postos." (¹) 
O mesmo Las Casas deu mais detalhes quanto ao trabalho a que eram submetidos os encomendados, mostrando também que a catequese era apenas um pretexto, e que quase ninguém, dentre os conquistadores, estava muito preocupado com ela:
"Depois de acabadas as guerras e mortos nelas todos os homens, ficando só os jovens, as mulheres e as crianças, repartiam-nos entre si, dando a um trinta, a outro quarenta, a outro cem ou duzentos, segundo a graça que cada um alcançava com o tirano maior que diziam governador; e assim repartidos a cada cristão [sic] eram dados com o pretexto de que fossem ensinados nas coisas da fé católica, sendo comumente todos eles [os conquistadores] idiotas e homens cruéis, avarentos, cheios de vícios, que se faziam curas de almas.
A cura ou cuidado que deles tiveram foi enviar os homens às minas para cavar ouro, que é trabalho intolerável, e as mulheres punham nas fazendas, que são granjas, para trabalhar na lavoura e cultivar a terra, um trabalho que é para homens muito fortes e resistentes. A ninguém davam de comer, senão ervas e coisas que não nutriam, de modo que às mulheres que amamentavam secava-se o leite e assim morreram em breve todas os bebês." (²)
É evidente que com tal tratamento os indígenas não podiam sobreviver por muito tempo. No entanto, a despeito da brutalidade do sistema de captura e trabalho, as encomiendas, estabelecidas desde o princípio da colonização, ainda estavam em uso em 1542, quando Las Casas escreveu a sua Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias (³), levando-o a escrever, então:
"Encomendam aos diabos [sic], a uns duzentos e a outros trezentos índios. O diabo encomendero chama os índios diante de si, e eles logo vêm como se fossem cordeiros; tendo vindo, faz cortar as cabeças de trinta ou quarenta dentre eles [sic!], e diz aos outros: farei o mesmo a vocês, se não me servirem bem ou se forem embora sem minha permissão." (⁴)

Houve no Brasil alguma coisa semelhante à Encomienda?


Um aspecto importante a ser considerado é que, em boa parte do Continente Americano sob colonização espanhola, a população nativa era bastante numerosa, com vários casos de sociedades urbanas e organização política sofisticada. Isso explica algumas diferenças em relação à colonização do Brasil, onde a população indígena era muito menor, com hábitos nômades ou seminômades e vivia espalhada por um vasto território coberto, quase todo ele, por densas florestas (⁵). É verdade que também no Brasil houve confrontos sangrentos entre indígenas e colonizadores portugueses, mas as proporções foram menores, devido às diferenças mencionadas.
Apesar disso, havia no Brasil os "índios administrados", que eram postos, até certo ponto, sob um regime semelhante à encomienda. Ou seja, havia, legalmente, a obrigação da catequese, estando o administrador autorizado a exigir trabalho. No entanto, é fato que, no Brasil, às vezes o relacionamento entre ameríndios e colonizadores foi, sob algumas circunstâncias, até amistoso. Na pequena São Paulo de Piratininga dos Séculos XVI a XVIII uma parte considerável da população era composta por mamelucos, filhos de portugueses e índias. E, diga-se de passagem, os mamelucos tinham muito orgulho de suas origens. 
Isso, porém, não invalida o fato de que não eram raras as chamadas "guerras justas" contra tribos nativas que se mostravam hostis à presença de colonizadores; ao lado das doenças trazidas pelos europeus, essas guerras foram decisivas para a gradual redução da população indígena, levando, inclusive, à completa desaparição de diversos povos.

(1) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, p. 18.
(2) LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit., pp. 30 e 31.
(3) Escrita em 1542, impressa pela primeira vez dez anos mais tarde. Os trechos citados nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit., p. 144.
(5) Sobre o relacionamento de grupos indígenas do Brasil com as civilizações andinas há um campo enorme para investigação. Ainda se sabe muito pouco a respeito.


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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Para quem escrevem os historiadores?

Políbio, um grego cuja obra data do Século II a.C., escreveu: 
"Um historiador tem por obrigação relatar à posteridade, tanto o que pode desonrar e trazer descrédito a alguém, como aquilo que pode enaltecer." (*)
Vejam os leitores que essa pequenina citação seria apropriada como ponto de partida para uma discussão sobre o papel de figuras individuais na História, que, na visão de Políbio, poderiam ser enaltecidas ou desacreditadas pelo que delas dissessem os historiadores. Mas o assunto de hoje é outro. 
Para Políbio, o trabalho do historiador era tratar dos eventos de seus dias, ou seja, do presente, para benefício das gerações futuras (a "posteridade"), que teriam, assim, como compreender os eventos do passado. A maioria dos historiadores da atualidade tem uma perspectiva muito diferente, uma vez que são investigados e interpretados os eventos do passado, para que sejam lidos e estudados pela geração atual. Em poucas palavras, Políbio entendia que o historiador escrevia para o futuro; hoje, escrevemos para leitores do presente.
No Século II a.C. os livros, uma vez escritos, multiplicavam-se muito lentamente, porque eram copiados à mão, de modo que seu preço era elevado. Além disso, a alfabetização, na maioria das culturas, estava longe de ser generalizada, a subsistência era obtida a duras penas, pouca gente tinha tempo, dinheiro e conhecimento para apreciar a obra dos historiadores. Não é difícil entender, pois, que Políbio tivesse a expectativa de ser lido por gente do futuro: ele e muitos outros cronistas escreviam sobre os acontecimentos que presenciavam, que seus contemporâneos conheciam e a cujo respeito teriam pouco interesse em ler. Seu público ideal, supomos, seriam as gerações futuras, quando quisessem conhecer os eventos do passado. Não cabia, então, em seus escritos, nenhuma ideia de transformação social, de chamar a atenção para a necessidade de mudança na vida política ou mesmo de protesto contra injustiças gritantes no sistema vigente. Isso, como se sabe, só iria passar pela cabeça de (alguns) historiadores, militantes ou não, muito tempo depois.

(*) A citação da História de Políbio que aparece nesta postagem é tradução de Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.


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sexta-feira, 13 de maio de 2016

Encontro das águas


No diário de Francisco José de Lacerda e Almeida, astrônomo que participou, no Século XVIII, da demarcação de limites entre terras de Portugal e Espanha na América do Sul, pode ser encontrado este registro, datado de 4 de outubro de 1780:
"Saímos com o rumo de SO, e tendo navegado três léguas chegamos à boca do Rio Negro, e como as suas águas são pretas e as do Amazonas [Solimões] brancas ou barrentas, fazem estes dois rios na sua junção uma grande separação de águas."
Lacerda falava, já se vê, do chamado "encontro das águas" dos rios Negro e Solimões, que ocorre não muito longe de Manaus. Por uma distância considerável, as águas conservam a separação, num espetáculo grandioso, como é quase tudo o que se relaciona à Amazônia.
No Século XVIII, presenciar o encontro das águas ainda era para poucos. No centênio seguinte, a exploração da borracha favoreceu o nascimento e/ou crescimento de núcleos de povoação, e, neles, estudiosos que queriam conhecer a região achavam pontos de apoio mais favoráveis, como ocorreu com o casal Agassiz, que por lá passou em 1865. Nessa oportunidade, Elizabeth Cary Agassiz registrou em seu diário de viagem:
"Ontem pela manhã [5 de setembro], entramos no rio Negro e observamos o conflito de suas águas calmas e quase pretas com as ondas amareladas e apressadas do Solimões, como é denominado o médio Amazonas. Os índios chamam-nos admiravelmente "o rio vivo e o rio morto"." (¹)
Do começo do Século XX vem ainda esta outra descrição do encontro das águas, escrita por Aníbal Amorim:
"Estava-se na época das enchentes máximas de todos os formadores amazônicos. O Solimões e o rio Negro transbordavam. Quando o vapor entrou na embocadura deste último rio e os meus olhos puderam ver o encontro solene das águas dos dois gigantes, senti uma profunda emoção, diante do grandioso daquele espetáculo." (²) 
A exploração do látex trouxe prosperidade transitória à região. Em 1909, Aníbal Amorim observava que "Manaus de agora já não é Manaus de dez anos atrás" (³). É verdade, leitores, questões econômicas têm feito a região amazônica oscilar entre a euforia e a depressão, como a população local, se interrogada, não tarda em atestar e dar exemplos. A despeito disso, a natureza estupenda segue seu ritmo que  parece imutável. O encontro das águas continua tão belo e impressionante como visto pelo astrônomo Lacerda em 1780, pelos Agassiz em 1865 e por Aníbal Amorim em 1909.


(1) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 193.
(2) AMORIM, Aníbal. Viagens Pelo Brasil. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., p. 150.
(3) Ibid., p. 153.


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quarta-feira, 11 de maio de 2016

Leis para manter a hegemonia lusitana no mar

As Ordenações do Reino (¹) são famosas, não sem justiça, pela severidade das penas estipuladas em seu Livro Quinto. Mas havia nelas outros aspectos interessantes e menos conhecidos, como era o caso das leis cujo objetivo era manter a posição de destaque que Portugal conquistara no mar. Em qualquer esfera, alcançar a hegemonia é muito difícil; mantê-la, mais ainda. Os legisladores portugueses deviam ter uma consciência bastante nítida deste fato.
No Livro Quinto, Título XCVII, lia-se:
"Se algum piloto, mestre, contramestre, marinheiro, grumete, bombardeiro, espingardeiro, e qualquer outra pessoa desta sorte, que indo nas nossas armadas deixar a nau ou navio em que for ordenado e dela se for sem licença e autoridade do nosso capitão-mor ou do capitão do navio, em que assim for ordenado, se do corpo da armada se partir, ora a armada vá para coisa de guerra, ora de mercadoria, pagará em quatrodobro (²) tudo o que tiver recebido de seu soldo. E sendo de maior qualidade, pagará da cadeia o dito quatrodobro do que tiver recebido, e será degradado por quatro anos para África." (³)
Tentem imaginar, leitores, o que aconteceria se, em uma viagem de descobrimento ou de exploração de um território, uma parte da marinhagem resolvesse ficar em terra, abandonando o navio, onde, costumeiramente, os mareantes de baixo estrato eram sempre maltratados. É perfeitamente possível que, numa situação dessas, ficasse difícil ao comandante, apenas com os marujos restantes, encetar mesmo uma viagem de retorno. E não pensem que isso nunca acontecia: há relatos de marinheiros que, estando na costa do Brasil, abandonaram o navio e fugiram com os índios. Se levarmos em conta as características da América do Sul nesse tempo, poderemos supor que a captura de algum desses trânsfugas era algo tão provável quanto fotografar um dinossauro passeando na superfície da lua...
Os dois dispositivos seguintes são, claramente, destinados a manter em Portugal os segredos e técnicas de construção naval e de navegação oceânica que outros povos ainda não dominavam. O Livro Quinto, Título XCVIII, trazia estrita proibição de que portugueses entrassem no serviço de navegação de algum outro país:
"Mandamos que nenhuns pilotos, mestres, marinheiros, que nossos naturais forem, aceitem partidos alguns em nenhumas navegações, nem armadas, que fora de nossos Reinos e Senhorios se façam, nem vão em elas em maneira alguma, sob pena se o contrário fizerem, e lhes for provado, de perderem por esse mesmo feito todos os seus bens, a metade para a nossa Câmara, e a outra para quem os acusar, e mais sejam degradados por cinco anos para o Brasil."
Havia, em seguida, uma justificativa para a proibição, que, por suposto, não expunha toda a verdade:
"Porque pois em nossos Reinos têm bem em que ganhar suas vidas em nossas armadas e navegações, não é razão que sendo nossos naturais, façam em outra parte as ditas navegações."
Poderíamos, aqui, tecer algumas considerações sobre o conceito de liberdade individual que transparecia em uma lei assim, mas já aí estaríamos deixando o assunto de hoje para navegar por outras águas. Mantenhamos a rota, portanto, para considerar o que dizia ainda o Livro Quinto, Título CXIV, arrematando o assunto das proibições para impedir o acesso ao conhecimento náutico lusitano e dificultar o estabelecimento de frotas poderosas em outros reinos:
"Defendemos (⁴) que pessoa alguma não venda a estrangeiros caravelas, nem naus, para fora do Reino, nem as vá lá fazer a estrangeiros, nem as frete para fora do Reino mais que por um só ano, e não será um ano após outro. Nem tire pano de treu (⁵) que se faça neste Reino, nem madeira, nem tabuado para fazer navios fora do Reino, sob pena de qualquer que o contrário fizer, ser preso até nossa mercê, e perder todos os seus bens para Nós."
As leis eram severas. Alcançaram o objetivo pretendido? Os leitores sabem que não. Pode levar algum tempo para que uma nova tecnologia seja desvendada por outros interessados, que não os seus inventores e/ou descobridores, mas a exclusividade não é eterna. Um exemplo mais recente (e literalmente explosivo) desse fenômeno tem a ver com o estabelecimento de arsenais nucleares. O uso em conflito das primeiras bombas atômicas está relacionado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Era, então, tecnologia sofisticadíssima, que um só país dominava. Quantos não a têm, hoje, para desdita da humanidade?

(1) Legislação compilada e publicada no princípio do Século XVII, mas em grande parte já em uso muito antes disso. As Ordenações estiveram em uso no Brasil Colonial. Mesmo após a Independência, havendo alguma lacuna na legislação brasileira, os juristas recorriam às velhas leis do Reino.
(2) Quádruplo.
(3) Conforme a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(4) Significava o mesmo que "proibimos".
(5) Usado para navegação sob tempestade.


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segunda-feira, 9 de maio de 2016

Por que povos da Antiguidade acreditavam na influência dos corpos celestes sobre a vida quotidiana na Terra


"Então surgiu um cometa, que para a opinião vulgar pressagia a mudança de rei."
                                                                                                                                                Tácito, Annales

Para os povos que criam que os corpos celestes eram divindades, não era muito complicado imaginar que pudessem causar problemas aos pobres mortais que viviam sobre a Terra. Sabe-se, por exemplo, que um eclipse total ocorrido em 763 a.C. foi associado, pelos assírios, a uma série de infortúnios. Funcionava mais ou menos assim: ocorria um eclipse solar e, logo depois, vinha, digamos, uma enchente, uma safra ruim, uma praga de ratos ou gafanhotos - adivinhem leitores, quem era o culpado? - o eclipse, é claro! Interpretava-se a ocultação do deus-sol como um momento de ira celeste, que só podia resultar em desgraças. Podemos facilmente medir o que é que isso significava, se tomarmos em conta o fato de que quase todos os povos antigos tinham alguma personificação do Sol em suas respectivas coleções de deuses.
Por outro lado, um eclipse lunar podia ser considerado como presságio favorável, de acordo com o que contou Tácito (¹), ao descrever uma revolta do exército romano nos dias do imperador Tibério. Estacionados na Panônia, onde eram obrigados a viver em condições de extrema penúria, os soldados começaram uma rebelião, durante a qual ocorreu um eclipse lunar, que, reputado como indicação de favor dos deuses, levou-os a fazer enorme alarido no acampamento. Porém, não demorou para que a Lua fosse ocultada por nuvens, e, dessa vez, o acontecimento foi interpretado como desfavorável. A soldadesca caiu em profundo desânimo, proporcionando assim aos comandantes a oportunidade perfeita para que retomassem o controle e fizessem justiçar os cabeças da revolta, pelo modo típico do exército romano - os cabeças obviamente perderam a cabeça. Mas não foi só. Usualmente, os soldados que queriam mostrar aos comandantes que estavam arrependidos da sedição, tratavam de comprovar esse fato despedaçando os companheiros rebeldes. Os leitores veem, então, que é melhor voltar ao assunto da suposta influência dos planetas, estrelas, cometas, etc. sobre o destino dos homens...
A questão é que, mesmo quando a crença nos deuses arrefeceu, a humanidade continuou a achar que, de algum modo, os corpos celestes tinham poder para trazer calamidades e espalhar doenças. No Século XVI, cometas eram particularmente temidos, mas nem a Lua, tão próxima e tão familiar, estava isenta da acusação de causar dano à integridade física dos terráqueos. Em um relato de 1585, cuja autoria é atribuída ao padre José de Anchieta, observa-se que, no Brasil, "a lua é mui prejudicial à saúde e corrompe muito as coisas [...]." (²) 
Ah, então é ela a culpada!

(1) Annales, Livro I.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 424.


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sexta-feira, 6 de maio de 2016

A construção de capelas nas aldeias como parte do projeto jesuíta para a catequese de indígenas

Era estratégia dos missionários jesuítas que vieram ao Brasil no Século XVI: sempre que faziam contato com um grupo de indígenas e iniciavam a catequese, tratavam de obter daquela comunidade a permissão para construir uma igreja ou capela em sua aldeia. Explicou o padre Simão de Vasconcelos, em obra datada do Século XVII:
"A primeira coisa que procuraram todos estes pregoeiros do Evangelho foi que os índios catecúmenos fizessem capelas e igrejas acomodadas a suas aldeias, para nelas lhes administrarem o culto divino e necessários sacramentos." (¹)
 Assim que o pequeno local de culto ficava pronto, os padres da Companhia de Jesus começavam a efetuar ali os seus ofícios religiosos. Ora, isso atraía a atenção, mesmo que só por curiosidade, até daqueles que não demonstravam interesse pelos ensinos dos padres. Construir uma capelinha era, então, abrir a porta para a catequese mais ampla.
Outra razão para a existência de uma capela é que, tendo os padres constatado que muitos grupos indígenas eram seminômades, pensavam que com algum estabelecimento permanente (como uma igreja ou capela), os naturais da América, desistindo do costume de mudar a aldeia de lugar, adotariam um estilo de vida sedentário, que os missionários consideravam mais favorável aos seus propósitos. De fato, em alguns casos foi exatamente o que aconteceu, sem falar que, não poucas vezes, governadores-gerais, depois que faziam guerra aos indígenas, estipulavam, como uma das condições para a "paz", que os ameríndios deixassem seus costumes ancestrais e fossem viver em uma aldeia controlada pelos padres.
Ninguém deve imaginar, porém, que as capelas edificadas em aldeias indígenas eram belos templos na melhor alvenaria. Nada disso. Eram construções muitíssimo simples, feitas com qualquer material que estivesse disponível, quase sempre com aquilo que os próprios índios usavam em suas habitações. Aliás, na grande maioria das vezes, eram construídas com mão de obra indígena - voluntariamente ou não. Para que os leitores tenham uma ideia de como eram as ditas capelas, basta notar a humilde descrição daquela que foi a primeira a ser construída em Piratininga, junto ao Colégio de São Paulo: "Fizeram juntamente igreja de taipa de mão, coberta de palha, acomodada à ocasião de tempo." (²)
Tão frágeis eram algumas dessas edificações que, narrando as façanhas atribuídas ao padre Belchior de Pontes, o também padre jesuíta Manoel da Fonseca observou que uma igreja, na Aldeia de Nossa Senhora da Escada, estava em tão má situação que só não vinha abaixo porque era sustentada por escoras:
"Estava a igreja desta aldeia [Nossa Senhora da Escada] arruinada, e para que de todo não caísse, estavam arrimados à parede alguns espeques. Sentiam os índios vê-la naquele estado, e queixando-se em uma ocasião, a tempo em que o padre Pontes por ali passava, ele lhes disse que só depois da sua morte se faria igreja nova. Sucedeu assim, porque conservando-se naquele estado alguns anos, depois de sua morte se fez nova fábrica." (³)
Como regra geral, as primitivas capelinhas, feitas com material pouco durável, foram logo substituídas por construções mais resistentes. Dessas últimas, poucas também restaram, já que um sentido equivocado de progresso levou à demolição de muitas construções coloniais (que deveriam ser alvo de preservação), para que, em seu lugar, outras fossem edificadas.

(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 55.
(2) Ibid., p. 91.
(3) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 196 (Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo). 


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quarta-feira, 4 de maio de 2016

Corporações de ofício

As corporações de ofício eram organizações que reuniam os artesãos de cada atividade profissional existente na maioria das cidades europeias, desde os tempos da Baixa Idade Média. 
Uma das atribuições de cada corporação era prover e controlar o ensino da respectiva profissão. Meninos eram admitidos como aprendizes e, depois de um longo tempo, já com a competência necessária, eram examinados por mestres experientes. Sendo aprovados, passavam a ser reconhecidos como companheiros ou oficiais, e obtinham licença para exercer o ofício. Trabalhavam, então, usualmente, na oficina de um grande mestre, até que juntassem dinheiro suficiente para se estabelecerem por si mesmos (também para isso precisavam obter a aprovação de sua respectiva corporação). Dos membros da corporação exigia-se estrita obediência às regras estabelecidas, a mais alta qualidade em todos os trabalhos e fidelidade às técnicas e processos usados em seu ofício, que deviam ser mantidos em segredo.
Sapateiros trabalhando em uma oficina
(ilustração do Século XVI, obra de Jost Amman

 em Aller Stände auf Erden)
Além disso, para evitar o que se considerava concorrência desleal, as corporações trabalhavam no sentido de barrar a presença de artesãos de outras vilas ou cidades, garantindo, portanto, uma espécie de monopólio para os seus membros, dentro do território sobre o qual exerciam controle. E, como se fosse pouco, cada uma dessas associações tratava ainda de estipular os preços que deviam ser cobrados pelos produtos e/ou serviços oferecidos, de modo que, para prevenir uma desvalorização, ficava proibida a concorrência entre os membros da própria corporação.
Havia corporações para os mais variados ofícios: sapateiros, pedreiros, curtidores (de couros e artigos afins), armeiros, tecelões, impressores e encadernadores de livros, além de muitos outros. A associação de mestres-cantores, tornada famosa pela ópera de Richard Wagner (Die Meistersinger von Nürnberg), não era propriamente uma corporação de ofício, já que seus integrantes eram músicos amadores, que, profissionalmente, exerciam diversas atividades - Hans Sachs, por exemplo, era um proficiente sapateiro. A similaridade entre a organização dos mestres-cantores e as corporações de ofício fica por conta do controle severo, tanto para a admissão de novos membros, como pela exigência do mais estrito cumprimento das regras estabelecidas, cuja confrontação oferece o pretexto em torno do qual a ópera se desenvolve.
Há quem sugira comparar as corporações de ofício aos sindicatos, mas esta comparação, além de anacrônica, não deixa de ser também reducionista, por mais que seja razoável admitir que haja mesmo alguns elementos em comum, como é o caso, por exemplo, da defesa dos interesses de um dado ofício. Porém, ao contrário de um sindicato típico, as corporações de ofício reuniam empregadores, empregados e aprendizes, sob férreo controle dos primeiros. Já se vê, portanto, que a comparação por similaridade seria um despropósito.
Como quase tudo na história da humanidade, as corporações tiveram seu auge para, depois, declinarem e desaparecerem, já que não podiam fazer frente à concorrência da produção em escala industrial. Deixaram, porém, vestígios nada desprezíveis, que não passarão despercebidos à vivacidade mental dos leitores.

*****

No Brasil, a Constituição Imperial de 1824, no Artigo 179,  determinava:
XXIV - Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria ou comércio pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos costumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos.
XXV - Ficam abolidas as corporações de ofícios, seus juízes, escrivães e mestres.


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segunda-feira, 2 de maio de 2016

A lenda da Lagoa Dourada

Ouro, ouro, ouro - que mais quereriam os conquistadores da América? A cobiça era tanta que levava à credulidade em histórias absurdas, como a da existência da Lagoa Dourada, por exemplo.
Alguns homens que exploraram as terras ocupadas em nome da Espanha teriam ouvido de indígenas que, em algum lugar no interior do Continente, haveria uma lagoa, no fundo da qual jazia tanto ouro como a humanidade jamais pudera sonhar. Não foram poucos os obcecados pela ideia de riqueza fácil que acabaram matando e morrendo na tentativa de encontrá-la. Mesmo levando índios como guias, o lugar jamais foi localizado. Imaginavam algo diferente, leitores?
Curiosamente, a mesma fábula campeava do "lado português" da América. Pero de Magalhães Gândavo, autor do Século XVI, fez a seguinte observação sobre o rio São Francisco, em sua História da Província de Santa Cruz:
"Este rio procede de um lago mui grande que está no íntimo da terra, onde afirmam que há muitas povoações, cujos moradores (segundo fama), possuem grandes haveres de ouro e pedraria." (¹)
É claro que Gândavo jamais estivera na nascente do São Francisco, mas parecia não ter problemas em afirmar a existência de "povoações", "moradores", "ouro e pedraria" no interior de um lago. Não satisfeito, voltaria ao assunto na mesma obra:
"Principalmente é pública fama entre eles [os indígenas] que há uma lagoa muito grande no interior da terra donde procede o rio de São Francisco, de que já tratei, dentro da qual dizem haver algumas ilhas e nelas edificadas muitas povoações, e outras ao redor dela muito grandes onde também há muito ouro, e mais quantidade, segundo se afirma, que em nenhuma outra parte desta província." (²)
Até mesmo gente que se supunha de muito siso acabava caindo no conto da Lagoa Dourada. Gabriel Soares, autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, foi um dos que resolveram procurá-la. Pior para ele, como verão já e já os leitores, pelo que contou Frei Vicente do Salvador em sua História do Brasil, escrita na primeira metade do Século XVII:
"O intento que Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao rio de São Francisco, e depois por ele até a Lagoa Dourada, donde dizem que tem seu nascimento, e para isso levava por guia um índio de nome Guaracy, que quer dizer sol [...]."
Acontece que muitos dos expedicionários adoeceram no sertão e lá mesmo morreram. Morreu Gabriel Soares, morreu o índio Guaracy. 
Quanto à Lagoa Dourada? Nem sinal dela.

(1) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, p. 97.
(2) Ibid., pp. 154 e 155.


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