sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Copistas de música

Já pensaram, leitores, em quantos anos da vida dos grandes compositores foram gastos em escrever música à mão sobre papel pautado? Gostassem os mestres ou não, era parte de seu ofício, ainda que alguns tivessem uma caligrafia horrorosa. Outros eram exemplos de perfeição (¹). 
Assim que uma nova peça musical era concluída, o compositor, como regra, entregava a partitura aos copistas, que se encarregavam de fazer tantas cópias quantas fossem necessárias aos músicos encarregados da execução. Essas cópias, naturalmente, eram também feitas à mão. Que trabalho!
É verdade que alguns copistas eram estudantes de música que tinham, assim, a oportunidade de ganhar algum dinheiro, mas havia copistas profissionais. E, para quem tem a curiosidade de saber se tudo isso valia também para o Brasil, basta ver este anúncio que apareceu na página 521 da edição de 1854 do Almanaque Laemmert (²):


Quem encomendava cópias? Compositores, executantes profissionais, estudantes e, por suposto, músicos amadores, que precisavam de partituras para os saraus domésticos, tão comuns como prática de sociabilidade entre a elite da capital do Império do Brasil. É óbvio que há séculos havia música impressa, mas, no caso do Brasil, nem sempre era fácil obter a peça desejada, pela dependência de importações. Mais trabalho para os copistas, portanto. Hoje isso seria qualificado como pirataria.
A era digital mudou tudo. Ficou mais fácil escrever música e copiar partituras, que são agora perfeitamente legíveis, podem ser prontamente impressas e estão menos sujeitas a imperfeições, já que pequenos erros de quem digita são logo "denunciados" pelo software em uso. É pouco provável que alguém ainda lamente a desaparição do ofício de copista de música.

(1) Basta, quanto a esse aspecto, comparar partituras autógrafas de Mozart e de Beethoven.
(2) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 521.


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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Mosquitos

Durante muito tempo, ninguém associou mosquitos à transmissão de doenças


Mosquitos são detestáveis. Alguém discorda? São incômodos. Mas não é só. Podem transmitir uma quantidade enorme de doenças e, várias delas, letais. Povos antigos sofriam com a presença deles - Heródoto relatou que os antigos egípcios usavam redes para combater as hordas invasoras de mosquitos, que teimavam em adentrar casas e templos. Nós, do Século XXI, estamos longe de domar esses monstrinhos minúsculos.
Os colonizadores que, no Século XVI, ousaram encarar o desafio de descobrir o que havia para além do litoral brasileiro, logo toparam com nuvens de mosquitos, embora eles não estivessem ausentes nas regiões costeiras. É interessante que, não muito depois, pessoas adoeciam, tinham febres terríveis, não poucas morriam, mas essa gente era incapaz de fazer alguma associação entre picadas de mosquitos e doenças. A ignorância persistiu por muito tempo, e vou provar que isso é verdade. 
Em uma carta escrita por Anchieta em maio de 1560, quando esse missionário jesuíta estava em São Vicente, encontramos:
"Há pelo mato uma grande cópia de moscas e mosquitos, os quais, sugando-nos o sangue, mordem [sic] cruelmente [...], quando os campos estão alagados; uns têm o ferrão e as pernas compridas e sutilíssimas (¹); furam a pele e chupam o sangue, até que, ficando com todo o corpo muito cheio e distendido, mal podem voar; contra estes é bom remédio a fumaça, com a qual se dispersam." (²)
Se a descrição de Anchieta é suficiente para provocar calafrios, mais será a que vem agora: o caso de um jesuíta do Século XVII que usava as picadas de mosquitos para autoflagelação. É isso mesmo! Contou Manoel da Fonseca, em Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes:
"Despia-se, e posto na margem do Tamanduateí, para aquela parte onde têm os religiosos de Nossa Senhora do Carmo o seu convento, se expunha à fúria dos mosquitos, os quais, ainda que pequenos animalejos, parece que malsatisfeitos com as águas do rio, em que viviam, pretendiam saciar-se com o seu sangue. [...] Neste estado se conservava largo tempo, e se algum dos que se lavavam, vendo-o maltratado das molestas picaduras daqueles animalejos, lhos queria afugentar, o impedia, dizendo que os deixasse, porque buscavam sua vida. Assim disfarçava a sua mortificação [...]." (³)
Melhor ir adiante, e bem depressa. Passemos ao Século XIX, um pouco depois da Independência. O Brigadeiro Cunha Matos, percorrendo a Província de Goiás, constatou que, em certos lugares, as "febres" eram frequentes entre a população. Queria saber a causa, e fez algumas conjecturas:
"As febres intermitentes atacam a maior parte das pessoas que transitam pelas terras ao norte de Goiás; [...] As chuvas copiosas e o conservar a roupa molhada durante e depois das marchas, são provavelmente as causas das sezões que padecem os viandantes." (⁴)
Já veem os leitores que Cunha Matos não atinava com o fato de que as ferinhas de asas, habitando profusamente as áreas alagadas na estação das chuvas, tinham um papel preponderante em propagar doenças. Mas continuava ele suas inspeções, construindo hipóteses a partir do que ouvia o povo dizer, em relação a um lugar considerado como "dos mais doentios do universo":
"O nome do rio Bezerra amedronta a todas as pessoas, e eu fui obrigado a ordenar que os soldados dessem um grande rodeio para não passarem no porto desta estrada de Arraias, a fim de obstar ao ataque de febres intermitentes que, segundo dizem, procedem dos eflúvios de uma lagoa existente na margem esquerda do rio [...]." (⁵)
"Procedem dos eflúvios de uma lagoa" - parece que Cunha Matos fazia suas pesquisas no sistema daquela brincadeira infantil do tipo "está quente" ou "está frio"... 
Digamos que estava morno. Em outro lugar (ainda na Província de Goiás), emitiu juízo semelhante, culpando os "miasmas pútridos":
"O rio de Manoel Alves passa distante do arraial duas léguas, e como o terreno é baixo, e no começo das chuvas fica coberto de águas, que durante a estação seca se corrompem, resultam febres inflamatórias que atacam a muitas pessoas que se acham ao alcance dos miasmas pútridos espalhados na atmosfera." (⁶)
Foi somente em fins do Século XIX que pesquisadores conseguiram efetivamente associar os mosquitos ao ciclo de transmissão de vários tipos de febres intermitentes. Deveríamos esperar, portanto, que, combatendo mosquitos e eliminando locais onde se reproduzem, as doenças que transmitem viessem a desaparecer. Estranhamente, tem acontecido o inverso, uma vez que áreas supostamente livres de febre amarela, malária, etc. têm apresentado ocorrências, em paralelo ao aparecimento de doenças até aqui desconhecidas e/ou com uma capacidade de causar dano muito maior do que se supunha. Há mesmo quem diga que o ciclo reprodutivo das várias espécies de mosquitos está mais curto, em decorrência da elevação da temperatura média na Terra. Será que teremos que fugir para os polos?

(1) Não se deve esperar que Anchieta tivesse conhecimentos de entomologista. Suas descrições usam a linguagem corrente na época, sem pretensões a rigor científico. 
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 123.
(3) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, pp. 14 e 15. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.
(4) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 196.
(5) Ibid., p. 218.
(6) Ibid., p. 255.


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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Estados totalitários e suas características

Uma das mais perfeitas definições de Estado Totalitário vem de um de seus maiores defensores: "Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato". Era essa, em síntese, a ideologia do fascismo italiano e de seu líder máximo, o duce Benito Mussolini.
Em um Estado totalitário a meta não é o maior bem para o maior número possível de cidadãos - o objetivo máximo é a grandeza do Estado, sua supremacia interna e sua força diante de outros Estados, sejam eles também totalitários ou não. Assim, uma lista considerável de regimes existentes em vários países, em algum momento do Século XX, poderia ser citada: fascismo, nazismo, stalinismo, franquismo, salazarismo, e assim por diante. Chega de "ismos", e vejam, leitores, que nem cabe aqui uma distinção estrita entre regimes de direita e de esquerda. Não é a retórica de um regime que está em questão, mas a estrutura que garantia e/ou garante seu funcionamento e apropriação do poder.
Algumas características, em maior ou menor grau, assinalaram grande parte dos regimes totalitários. Vejamos, então, algumas delas:
  • Culto à personalidade do líder, não importando se ele era chamado de duce, Führer ou de qualquer outro título grandiloquente - o fato é que esse líder devia ser visto como alguém que pairava acima das massas, funcionando como um modelo a ser seguido;
  • Militarização da sociedade, ou, pelo menos, valorização ao exagero dos homens em uniforme (até as crianças, na escola, eram incentivadas a atividades que favoreciam a formação de soldados);
  • Valorização da disciplina em todos os níveis da sociedade;
  • Uso da propaganda em larga escala e com uma competência surpreendente, para convencer e domesticar as massas;
  • Nacionalismo exacerbado (melhor seria dizer nacionalismo cego);
  • Controle da imprensa e restrições à liberdade de expressão, quer por meio de leis, quer pela intimidação, mediante emprego da violência;
  • Política externa agressiva;
  • Sistema de partido único;
  • Em alguns casos, uso da religião para convencer a população das supostas boas intenções de quem detinha o poder (¹);
  • Quer de direita, quer de esquerda, regimes totalitários sempre posaram como protetores das classes trabalhadoras, embora, como regra, ou as atividades sindicais fossem proibidas, ou, então, somente praticadas sob a tutela do Estado (²).
Que lhes parece, leitores? Pois saibam que ideólogos do totalitarismo, como regra, se diziam grandes estudiosos da História. Pelo visto, não devem ter aprendido grande coisa.
Por sua aparência de organização, disciplina e desenvolvimento econômico, em uma época de turbulência no cenário internacional, a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, alguns regimes totalitários do Século XX, ao menos até que tivessem tempo suficiente para uma exibição completa de suas garras, chegaram a conquistar a simpatia de algumas das maiores democracias ocidentais. Parecia que, a seu modo, regimes "fortes" ajudariam a colocar um pouco de ordem no caos instaurado pelo conflito. Portanto, leitores, foi preciso ainda algum tempo para que as consequências do totalitarismo ficassem perfeitamente claras. O veneno da serpente não tardaria, porém, a manifestar seus efeitos...
Enquanto isso, fascistas faziam sucesso mundo afora, até mesmo no Brasil. Vejam, abaixo, fotos que apareceram na revista paulistana A Cigarra em maio de 1923 (³), mostrando aviadores do Partido Fascista Italiano que vieram participar  de uma festa de aviação em São Paulo:


Já a revista carioca O Malho trazia, também em um número de 1923 (⁴), um cartoon bastante curioso, relacionado a Mussolini e ao fascismo:


Os textos dizem:
"A proposta do governo forte de Mussolini:
- Vocês são uns almofadinhas! Dilapidadores! Ociosos! Vejam Mussolini! Admirem sua obra!
- Nós somos os camisas brancas..." (⁵)

(1) Mussolini, por exemplo, mediante a assinatura do Tratado de Latrão em 1929, procurou resolver pendências que o governo da Itália tinha com o Vaticano desde a unificação italiana no Século XIX. Em um país de maioria católica, essa atitude foi muito bem-recebida, e, na ocasião, interpretada favoravelmente.
(2) O corporativismo típico do Estado fascista italiano mostrou-se muito eficiente como instrumento de controle das reivindicações trabalhistas, favorecendo, ao mesmo tempo, os interesses do grande capital.
(3) A CIGARRA, Ano X, nº 207, 1º de maio de 1923.
(4) O MALHO, 17 de março de 1923.
O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) A graça do cartoon se deve ao fato de que "Camisas negras" eram os membros de um grupo paramilitar fascista, devido à cor do uniforme que usavam.


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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Nem ouro e nem prata: a expedição de Dom Rodrigo de Castel Blanco

Como podia ser que houvesse ouro e prata em terras de Espanha na América, enquanto que no Brasil quase nada se encontrava? A questão intrigava a Coroa portuguesa. Mandou-se, então ao Brasil, no ano de 1673, um indivíduo supostamente capaz de realizar os tão esperados descobrimentos: era ele Dom Rodrigo de Castel Blanco (¹), espanhol de nascimento. Vinha com o pomposo título de "Governador e Administrador-Geral das Minas" (que ninguém sabia, ainda, onde é que estavam). Por tão notável cargo, além da ótima remuneração, seria acompanhado por um ajudante, Jorge Soares de Macedo.
De acordo com o que registrou Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana, as buscas começaram pela Bahia. Castel Blanco e Soares de Macedo andaram por vários lugares entre 1674 e 1678. Resultado? Nadinha, só despesas ao erário público.
Mas era preciso continuar. Passaram pelo Rio de Janeiro no segundo semestre de 1678, em companhia de funcionários administrativos e soldados. Nada, de novo. Foram a Santos, ainda em 1678, porque a ideia era seguir para o sul, na suposição de que lá seriam achadas minas de prata. Em abril de 1680 voltava D. Rodrigo de Castel Blanco a Santos, depois de haver estado em Paranaguá. Outra vez, sem resultados favoráveis. As parcas jazidas da localidade já eram conhecidas dos paulistas. Restava tentar a busca na região denominada Sabarabuçu.
Em São Paulo, os rústicos bandeirantes, acostumados às manhas do sertão, sugeriram que, antes da partida da expedição, fossem mandados homens que estabelecessem roças, evitando que a falta de alimentos constituísse empecilho às descobertas. Diz a Nobiliarchia:
"[...] Matias Cardoso de Almeida, Jerônimo de Camargo, Antônio de Siqueira de Mendonça, Pedro da Rocha Pimentel e outros paulistas mais, todos foram de voto que se devia mandar plantar os sítios que nomeados e assinalados fossem, para quando chegasse a tropa terem mantimentos prontos para o necessário sustento no sertão [...]."
Aceito o conselho, e ciente de que seu famoso ajudante Jorge Soares de Macedo fora aprisionado em Buenos Aires, Rodrigo de Castel Blanco decidiu levar consigo um dos paulistas que fosse experiente em tratar com os indígenas, sendo escolhido Matias Cardoso de Almeida.
No entanto, a expedição não saía. Sendo já março de 1681, o "especialista" em minas João Alves Coutinho, que viera com Castel Blanco, tudo fazia para retardar a partida, alegando velhice (teria sessenta e oito anos) e doença. Foi chamado a dar explicações à Câmara de São Paulo, diante da qual, segundo a Nobiliarchia, "disse que já não tinha dentes, e se achava muito impossibilitado para andar pelo sertão, porém que assim mesmo se sacrificaria a ir"
Talvez restasse dúvida quanto à seriedade do que dizia Coutinho, porquanto, nessa mesma ocasião, Matias Cardoso de Almeida fez registrar nas Atas da Câmara "que se obrigava a conduzir o mineiro João Alves Coutinho em rede, nos ombros de sessenta índios seus administrados que para isso oferecia, e de lhe assistir com todo o necessário sustento no sertão [...]."
Diante de tamanha comodidade, a expedição deixou São Paulo, rumo a Sabarabuçu, em maio de 1681. Iam nela os sessenta índios prometidos para carregar João Alves Coutinho, outros sessenta que levavam os pertences de Dom Rodrigo de Castel Blanco e ainda outros cento e vinte indígenas, mandados ao sertão "para o trabalho das minas". Iam, também, alguns paulistas experimentados como bandeirantes. 
Porém, havia mais.
Entre os suprimentos para toda essa gente, iam, segundo a Nobiliarchia, "de farinha de trigo três mil alqueires; de carne de porco, três mil arrobas; de feijão, cem alqueires; de pano de algodão, oito mil varas; fio de algodão torcido de três, trinta e oito arrobas; de fio de algodão singelo, duas arrobas." 
Quem carregava tudo isso? Duzentos índios. Não havia caminhos que possibilitassem o uso de animais de carga.
Tentem imaginar, leitores, essa multidão, movendo-se lentamente pelas matas, à medida que os que iam à frente, com facões e outras ferramentas, abriam passagem...
Chegaram, por fim, ao Arraial do Sumidouro, por onde andava a gente de Garcia Rodrigues Paes (²). Se pudermos crer no que diz a Nobiliarchia, Castel Blanco não mostrava o mínimo empenho para novas descobertas, fato que levou Matias Cardoso de Almeida a informar, em correspondência enviada ao Reino, que nada se esperasse de tal explorador. Veio ordem para que o Governador e Administrador-Geral das Minas retornasse de imediato a Portugal. Mas, à chegada do documento, Castel Blanco já não podia ser contado entre os viventes. Pedro Taques, por suposto tomando o partido do bandeirante Manuel de Borba Gato, contou:
"Com alguma liberdade lhe estranhou o dito Borba o amortecimento em que se conservava desde que chegara àquele sertão, aplicando-se só a mandar fazer caçadas de aves e animais terrestres para o regalo e grandeza da sua mesa, e travando-se de razões menos comedidas, o sobredito Borba se precipitou tão arrebatado de furor, que dando em D. Rodrigo um violento empurrão o deitou ao fundo de uma alta cata, na qual caiu morto."
Não é tudo, leitores. Talvez porque quisesse valorizar paulistas como os verdadeiros descobridores de minas, Pedro Taques faria ainda um rude balanço das pesquisas de Castel Blanco, entendendo que "o efeito dessas grandes esperanças só ficou infalível no consumo das grossas despesas da Real Fazenda, porque o tal D. Rodrigo foi um patarata que só entreteve o tempo aproveitando-se das honras que desfrutou e dos dinheiros que com liberalidade consumiu". Inequívoco contraste, portanto, em relação a Matias Cardoso de Almeida, o paulista que, nomeado tenente-general para a última parte da expedição (³), não recebeu qualquer subvenção oficial por seus serviços.

(1) É usual a grafia "Castelblanco", mas adotei a de "Castel Blanco" por ser a que aparece na Nobiliarchia Paulistana.
(2) Filho do chamado "caçador de esmeraldas", Fernão Dias Paes.
(3) De São Paulo ao Arraial do Sumidouro.


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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Como indígenas penteavam os cabelos (antes da chegada dos portugueses)

Uma indígena do Brasil,
de acordo com Debret (¹)
Pero Vaz de Caminha descreveu como "corrediosos cabelos dos primeiros indígenas que viu; depois, quando viu algumas moças, observou que tinham os "cabelos muito pretos e compridos pelas costas". Não é surpreendente, portanto, que, dentre os objetos que portugueses traziam para trocar por artigos da terra, os ameríndios - e, em particular, as ameríndias - apreciassem bastante os pentes, ainda que machados, facas e tesouras fossem, talvez, mais úteis.
Reflitamos, meus leitores: se pentes eram alvo de escambo, é porque não havia similares à altura. Sendo assim, de que modo os cabelos que prenderam a atenção de Caminha eram penteados?
No Tratado Descritivo do Brasil em 1587, escrito por Gabriel Soares, um português que, com viva curiosidade, investigou tudo o que podia a respeito do Brasil, disso fazendo um registro meticuloso, encontramos esta explicação:
"Anhangaquiabo quer dizer pente do diabo; é árvore de bom tamanho, cujo fruto são umas bainhas grandes; têm dentro em si uma coisa branca e dura, afeiçoada como pente, de que os gentios se aproveitavam antes de comunicarem com os portugueses e se valerem dos seus pentes." (²)
É provável que usar o anhangaquiabo não fosse muito confortável, ou os indígenas não teriam mostrado interesse pelos pentes trazidos pelos colonizadores. Mas devia funcionar. Como os leitores já devem ter observado, em nome da valorização da aparência, ou vaidade, se preferirem, que não era e nem é exclusividade de indígenas, a humanidade tem suportado muito desconforto pelos séculos afora, independente da cultura de origem. Lembrem-se dos espartilhos, das perucas do Século XVIII, dos pés enfaixados...

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 220.


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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cambises - O que acontece quando um governante imagina que seu poder é ilimitado

Ciro, rei dos persas, é famoso por ter liderado a conquista da riquíssima Babilônia em 539 a.C., mas é também conhecido por ter adotado uma política mais suave, em relação aos povos dominados, do que a praticada habitualmente em seus dias. O sucessor de Ciro foi seu filho Cambises, e, se devemos dar crédito ao que disse Heródoto, não poderíamos, em relação a ele, usar o dito de que "tal pai, tal filho".
Na corte persa o cargo de copeiro era de alta responsabilidade - afinal, era esse funcionário que devia provar a bebida servida ao rei, assegurando, portanto, que não estava envenenada. Pois bem, segundo Heródoto, Cambises estava em um dia qualquer a conversar com seu copeiro, a quem, supostamente, muito estimava, quando teve a ideia de lhe perguntar qual era, no seu entender, a opinião que dele tinha o povo persa. Muito honestamente, o copeiro respondeu que o rei era bastante estimado pelo povo, a não ser por um pequeno detalhe, o de ser muito afeiçoado às bebidas alcoólicas.
Imaginem, leitores, qual foi a reação de Cambises. Agradeceu a observação e tratou de ser mais comedido? Nem pensem em tal coisa. Enfurecido com a resposta de seu oficial, resolveu provar que não estava de modo algum alcoolizado, fazendo uma demonstração convincente da mais perfeita sobriedade. Pegou seu arco e avisou que, se cravasse uma flecha no coração do jovem filho do copeiro que não estava longe dali, ficaria claro que a fama que dele circulava entre o povo persa era um equívoco. Se, no entanto, falhasse, seria a prova do acerto de seus críticos.
Não houve quem ousasse detê-lo. O rapaz, atingido, caiu ali mesmo. Para que ficasse fora de dúvida a precisão do tiro, Cambises ordenou que se abrisse o peito do cadáver, a fim de mostrar que a seta atravessara o coração, tudo isso diante do estarrecido pai-copeiro. Tamanho desatino (ainda de acordo com Heródoto) foi acompanhado de uma gargalhada e da observação de que, afinal, os persas jamais deveriam ter seu rei na conta de um bêbado. 
É óbvio, leitores, que não podemos ter certeza absoluta de que as coisas aconteceram assim mesmo, embora vários autores da Antiguidade refiram o episódio com pequenas variações. É possível, no entanto, que tenham se inspirado em Heródoto. Sabemos, porém, que atos de crueldade extrema não eram raros em monarcas da Antiguidade - não eram eles considerados deuses ou seus representantes? Não podiam, por consequência, fazer o que bem entendessem? 
Por outro lado, jamais deveríamos supor que atos de brutalidade por parte de detentores do poder eram fenômenos restritos à Antiguidade. Excessos estarão sempre à mão, onde quer que haja governantes reconhecidos como vitalícios (ou que assim se imaginam), munidos de poderes quase ilimitados, contando com o apoio de uma horda de bajuladores, cuja moralidade demasiado elástica é sempre pautada pela conveniência. 
Era assim no passado. Quem ousaria dizer que, nesse sentido, os tempos mudaram?


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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A guerra dos colonizadores contra as formigas e seus formigueiros

Formiga-cortadeira em ação

Combatentes fortes, coesos, dispostos ao sacrifício quando necessário. Um dos mais poderosos exércitos da Terra. Sobre-humanos? Não, formigas!
Dizia-se, nos tempos coloniais, que a formiga era "o rei do Brasil". Tinham os colonizadores de tratar com esse terrível inseto, se quisessem roças produtivas, ainda que fossem de mandioca, uma planta nativa do Continente Americano, que muitos povos indígenas do Brasil conheciam e cultivavam com sucesso.
A questão que se colocava, ainda no Século XVI, era a do combate eficaz aos formigueiros e, em particular, às chamadas "formigas-cortadeiras", capazes de, em uma só noite, transformar uma plantação verdejante em um amontoado de caules em plena orfandade de folhas. 
Como quase tudo na época, os métodos de combate usados pelos agricultores eram em extremo rudimentares. Segundo Gabriel Soares, que foi senhor de engenho na Bahia, eram estes os procedimentos:
"[...] Para se defenderem as roças desta praga da formiga, buscam-lhe os formigueiros donde se arrancam com enxadas e as queimam; outros costumam às tardes, antes que se recolham, pisarem a terra dos olhos dos formigueiros com pisões muito bem, para que de noite, em que elas dão os seus assaltos, se detenham em tornar a furar a terra para saírem fora, e lançam-lhes de redor folhas de árvores, que elas comem, e das da mandioca velha, com o que, quando saem acima se embaraçam até pela manhã, que se recolhem aos formigueiros." (¹)
Dá vontade de rir, embora não tenha graça nenhuma. É que as palavras do quinhentista Gabriel Soares parecem mostrar que os lavradores da Bahia tratavam com as formigas em uma espécie de lógica humana... Porém, havia ainda mais uma opção, se é que se pode falar assim, na tentativa de impedir danos à lavoura:
"[...] Se as formigas vêm de fora das roças a comer a elas, lançam-lhes desta folha [de mandioca] no caminho, antes que entrem na roça, o qual caminho fazem muito limpo, por onde vão e vêm à vontade, e cortam-lhe a erva com o dente [sic], e desviam-na do caminho." (²)
Então, didaticamente, podemos resumir os procedimentos usuais da seguinte maneira:

I - Quando os formigueiros estavam dentro da roça,
a) podiam ser arrancados e queimados;
b) como alternativa, eram pisados todas as tardes;
c) folhas eram espalhadas ao redor, supostamente para atrapalhar o caminho das formigas.

II - Quando os formigueiros estavam fora da roça, folhas de mandioca eram presenteadas às formigas, na esperança de que, assim satisfeitas, deixassem em paz a plantação.


À entrada de um formigueiro

O resultado prático dessas medidas é discutível, mas os colonizadores achavam que tinham alguma utilidade, ou não perderiam tempo com elas. Sucede que as espécies de formigas existentes no Brasil são quase inumeráveis. Dentre elas, algumas são diurnas, outras têm hábitos noturnos, algumas gostam de atormentar agricultores, enquanto outras, sem convite e sem a menor compostura, invadem as casas, à procura de qualquer coisa que lhes pareça interessante. Os dias da colonização terminaram, mas a guerra contra as formigas está longe de acabar. Alguém ousaria fazer uma aposta quanto ao vencedor?


Não é um bolo fofinho!

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 163.
(2) Ibid.


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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Quem foi João Ramalho

Se existe uma personagem do primeiro século da colonização sobre quem pairam dúvidas, essa é, certamente, João Ramalho. Já foi descrito como condenado a degredo, como náufrago, até como fugitivo. É fato, porém, que, em 1532, quando Martim Afonso de Sousa fundou São Vicente, já esse homem vivia há tempos no Brasil e, perfeitamente adaptado ao modo de vida dos indígenas, entre eles constituíra família numerosa. 
Frei Gaspar da Madre de Deus faz um relato pitoresco do encontro de João Ramalho com a gente de Martim Afonso: Índios que andavam à pesca veem chegar a esquadra portuguesa, correm à procura de um esconderijo e observam, pasmados, o ritual de fundação de São Vicente. A toda pressa percorrem o brutal Caminho do Mar, indo dar a notícia a Tibiriçá, seu chefe, que, de imediato, convoca as tribos aliadas para fazer guerra e expulsar os invasores. É aí que entra em cena João Ramalho:
"Perto de Tibiriçá morava João Ramalho, aquele português que aqui chegara muitos anos antes; ele fazia vida marital com uma filha do régulo [o cacique Tibiriçá], e este lhe participou sem demora a notícia que acabava de receber. Ouviu-a Ramalho com alvoroço grande, porque logo assentou que a esquadra era de portugueses [...]. Firme nesta opinião, e desejoso de evitar a guerra que se dispunha contra os brancos, solicitou o socorro, onde os bárbaros [sic] buscavam o aumento das suas forças. Depois de persuadir o sogro de que os forasteiros eram seus nacionais [...], propôs-lhe grandes conveniências que poderiam resultar de receber benigno aos hóspedes desconhecidos [...]." (¹)
O mesmo autor assevera que, ao terceiro dia, a contar do desembarque de Martim Afonso, é que João Ramalho e Tibiriçá, à frente de quinhentos índios flecheiros, chegaram ao lugar em que estavam os portugueses:
"Apresentou-se Ramalho ao capitão-mor, narrou-lhe os sucessos passados da sua vida e assegurou-lhe que, a instâncias suas, vinha o senhor da terra [Tibiriçá] a defendê-los com os índios que ali via." (²)
Percebam, leitores, que, para frei Gaspar da Madre de Deus, beneditino, nascido em São Vicente no começo do Século XVIII, o encontro de João Ramalho e Martim Afonso foi amigável e oportuno, porque teria impedido que os povos indígenas da região se pusessem em armas contra os recém-chegados lusitanos. Seu registro deve refletir, até certo ponto, as lembranças do acontecimento que sobreviveram por muitos anos. 
A Nobiliarchia Paulistana (também de um autor do Século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes Leme), faz referência a João Ramalho, embora incorra em um erro evidente, conforme já veremos:
"[...] João Ramalho, o progenitor de muitas famílias de São Paulo, que foi o fundador da povoação de Santo André da Borda do Campo, que se aclamou vila em 8 de abril de 1553, sendo então o dito Ramalho guarda-mor e alcaide-mor do campo, e tinha o foro de cavaleiro [...]. Este João Ramalho veio de Portugal (era natural de Barcelos, comarca de Viseu), na companhia de Martim Afonso de Sousa, no fim do ano de 1530 [...]."
Ora, não é possível que João Ramalho viesse com Martim Afonso e, ao mesmo tempo, fosse recebê-lo em companhia de algumas centenas de índios! Ao que se sabe, porém, João Ramalho foi mesmo o fundador de Santo André da Borda do Campo, uma povoação que, por enfrentar dificuldades para a defesa contra ataques dos tamoios, acabou desaparecendo. Seus moradores receberam ordem para ir viver em São Paulo de Piratininga. 
Então, problemas à vista!...
O ponto mais controvertido a respeito do português que vivia como índio está relacionado às suas divergências com os jesuítas, mandados a São Vicente para catequizar indígenas. Para perfeita clareza, é preciso dizer que os missionários detestavam João Ramalho (sendo o inverso, ao que parece, igualmente verdade), a quem consideravam um inimigo da doutrinação dos povos indígenas e um perfeito mau exemplo. Basta ver o que disse Anchieta, em uma carta escrita em São Paulo de Piratininga no ano de 1554:
"[...] Uns certos cristãos, nascidos de pai português e de mãe brasílica, que estão distantes de nós nove milhas, em uma povoação de portugueses, não cessam, juntamente com seu pai, de empregar contínuos esforços para derrubar a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, trabalhamos por edificar, persuadindo aos próprios catecúmenos com assíduos e nefandos conselhos para que se apartem de nós [...], e não deem o menor crédito a nós, que para aqui fomos mandados por causa da nossa perversidade. Com estas e outras semelhantes, fazem que uns não acreditem na pregação da palavra de Deus, e outros, que já víamos entrarem para o aprisco de Cristo, voltem aos antigos costumes, e fujam de nós para que possam mais livremente viver." (³)
"Para que possam mais livremente viver" - interessante essa observação, não é mesmo, meus leitores? Vejam que nenhum nome é mencionado, mas a situação, bem conhecida, indica que a família causadora de problemas era mesmo a de João Ramalho. Um fator importante, nesse caso, é que Anchieta foi um contemporâneo de João Ramalho e, pelo visto, conhecia muito bem o sujeito. Se, no entanto, restar alguma dúvida quanto à identidade do "pai português", temos o recurso aos registros do padre Simão de Vasconcelos, que, valendo-se da documentação escrita de que sua Ordem dispunha, bem como de testemunhos orais, escreveu, no Século XVII, a Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, na qual encontramos:
"Havia em São Vicente um João Ramalho, homem por graves crimes infame, e atualmente excomungado. Mandou-lhe o padre Leonardo [Nunes] pedir com cortesia, fosse servido sair da igreja, porque pudesse ele celebrar sacrifício, pois não podia em sua presença; fê-lo assim, e celebrou o padre. Porém dois filhos seus, mamelucos, dados por afrontados, determinaram castigar no servo do Senhor a injúria que tinham por feita ao pai [...]." (⁴)
Mas não é só. Descrevendo, em outro trecho, a chegada de Manuel da Nóbrega a São Vicente em 1553, acrescentou:
"Aquele famoso João Ramalho, homem rico na terra, mas infame nos vícios, amancebado público por quase quarenta anos, e de ordinário por essa causa excomungado [...], lembrado agora de seus antigos ódios, e tendo ainda vivo no peito o agravo que cuidou lhe fizera o padre quando o mandou avisar se saísse da igreja, porque ele não podia exercer o sacrifício do altar, por estar censurado; entre as alegrias e parabéns com que o povo recebia por hóspede o padre Nóbrega, andava ele com a caterva de seus filhos, muitos em número, e todos de má casta, mamelucos ilegítimos e desalmados, com arcos, flechas e gritarias, espalhando de alguns deles [os padres da Companhia] crimes péssimos e indignos de seculares, quanto mais de pessoas religiosas [...]." (⁵)
O que se pode notar, de pronto, é que, vivendo em um tempo no qual todas as personagens dessa história já haviam morrido, Simão de Vasconcelos deu eco às informações que denunciavam João Ramalho e sua vasta descendência como uma horda de facínoras, cujo objetivo era emperrar o trabalho dos jesuítas. Não é impossível que, da parte do português, houvesse algum receio de perder a influência considerável que adquirira entre os ameríndios, com os quais se aparentara; por outro lado, levando em conta os costumes que então vigoravam entre europeus, não surpreende que, para os jesuítas, fosse um escândalo a existência de um cristão que, vivendo entre os indígenas, chegara, por assim dizer, a ser um deles. Algum tempo no Brasil, porém, acabaria mostrando aos missionários que, se queriam sobreviver e catequizar, precisariam, até certo ponto, adotar alguns costumes da terra. Não como João Ramalho, porém.

(1) MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Hoje Chamada de São Paulo, do Estado do Brasil. Lisboa: Typografia da Academia, 1797, p. 30.
(2) Ibid., p. 31.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 46.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 47.
(5) Ibid., p. 75.


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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Moinhos de pedra e seu uso na Antiguidade

Pedra de moinho

Indispensável à sedentarização, o desenvolvimento da agricultura, incluindo o cultivo de cereais, tornou possível a existência daquele que é, apesar de suas inúmeras variantes, o mais universal dos alimentos: o pão.
No entanto, havia nômades que também apreciavam um bom pão. Hábeis na pilhagem, faziam ataques repentinos a comunidades sedentárias logo após a colheita; tão rápido quanto haviam chegado, desapareciam, levando consigo o produto de todo um ano de trabalho alheio, e iam fartar-se em algum lugar seguro - seguro para eles, é claro. A defesa contra esses bandos de rapina foi um fator importante, e até decisivo, para que exércitos permanentes e cidades muradas fossem estabelecidos.
Para fazer pão é necessário algum tipo de farinha, e é aí que entraram em cena os moinhos, constituídos, em sua expressão mais singela, por duas pedras, entre as quais o cereal era triturado. Em seguida, a farinha e o farelo deviam ser separados, fosse pelo método rústico de soprar com auxílio do vento ou, já com certa sofisticação, mediante o emprego de algum tipo de peneira.
Pequenos moinhos manuais, de uso doméstico, eram conhecidos desde tempos remotos; pô-los em funcionamento, na maioria das culturas, era uma tarefa de competência das mulheres. Semelhantes àqueles destinados a triturar cereais, havia, principalmente no mundo mediterrânico, moinhos usados para prensar azeitonas, delas extraindo o precioso azeite.
Mais tarde foram desenvolvidos moinhos de maiores proporções, capazes de triturar grande quantidade de grãos. Eram, portanto, compatíveis com a realidade do crescimento urbano, em que fazer pão deixava de ser uma atividade exclusivamente doméstica e ia para a esfera dos estabelecimentos comerciais, que faziam da panificação uma arte, atendendo às grandes cidades do mundo antigo, como Atenas e Roma.
Esses novos moinhos, também feitos, em sua maioria, de pedra, eram movidos costumeiramente por jumentos que trabalhavam com os olhos vendados, enquanto faziam girar, girar e girar o mecanismo (*).
Para concluir, refiro aqui um detalhe penoso. É que ao escravo desobediente, ou que não fazia um trabalho considerado satisfatório, era imposto, em Roma, um castigo estupidamente humilhante: o de ir, também de olhos vendados, substituir o jumento que trabalhava em um moinho. 

(*) Há evidência de que moinhos hidráulicos já eram conhecidos na Roma imperial, embora não fossem predominantes.


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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A poligamia entre indígenas (e como os missionários jesuítas lidavam com ela)

Vai aqui, leitores, uma postagem destinada àqueles dentre vocês que são muito curiosos sobre o modo de vida dos ameríndios. 
Todo mundo sabe que, em vários povos indígenas do Brasil, a poligamia predominava, ou era, pelo menos, admitida. Pode-se bem imaginar o que missionários jesuítas pensavam de tal costume. Mas, afinal, o que é que se fazia quando um índio polígamo, tornando-se catecúmeno, pedia o batismo?
No que se refere à vida diária dos indígenas, os escritos de Anchieta são verdadeiro "mapa da mina". Em um documento que a ele é atribuído e que recebeu o título de "Informação dos Primeiros Aldeamentos na Bahia", lemos, relativamente à visita feita pelo bispo D. Pedro Leitão às aldeias da catequese em 1562:
"[...] Por sua mão batizava a muitos e crismava a outros, e depois casava em lei da graça os que eram para isso, e duas vezes foi às ditas igrejas, batizando os índios, que para isso estavam aparelhados, e os que o não estavam, deixando as muitas mulheres, casavam com uma, em lei da natureza, e as outras se casavam com outros índios [...]." (¹)
Vejam, leitores, que não havia nenhuma tolerância com a poligamia. Na prática, o polígamo que pretendia o batismo devia escolher uma mulher e estar casado com ela "em lei da graça"; as outras mulheres ficavam livres para um novo casamento, desde que monogamicamente.
Em outro documento (²), também atribuído a Anchieta, vem esta observação, que nos oferece um exemplo prático de como a questão era resolvida:
"Em Piratininga (³), da Capitania de São Vicente, Caiubi, velho de muitos anos, deixou uma [mulher] de sua nação, também muito velha, da qual tinha um filho homem muito principal, e muitas filhas casadas, segundo seu modo, com índios principais de toda a aldeia de Jeribatiba [...], e sem embargo disso casou com outra [...], sua escrava tomada em guerra, a qual tinha por mulher, e dela tinha quatro filhos, e esta trazia consigo, e com ela estava e conversava, e depois recebeu in lege gratiae, sem a primeira mulher nem os filhos e genros fazerem por isso sentimento algum." (⁴)
A ideia de Anchieta é que esse procedimento não trazia problemas aos indígenas porque a mulher que fosse "dispensada" não se ofendia, e logo arranjava outro marido. E, se vocês, leitores, estão pensando se a prática inversa era também admitida, ou seja, se uma mulher indígena podia abandonar o marido, para viver com outro homem, digo que, de acordo com Anchieta, a resposta é afirmativa, pelo menos entre alguns povos:
"[...] Também elas deixam o marido e tomam outro, como me contaram que fez a principal mulher de Cunhambebe (⁵), que era o principal mais estimado dos tamoios que havia na comarca de Iperoig, do qual tinha já um filho e uma filha casadouros, e com tudo isso o deixou, por ele ter outras, ou pelo que quis, e se casou ou amancebou com outro; e outras fazem o mesmo sem sentimento dos maridos [...]." (⁶)
Admitindo que as informações de Anchieta sejam corretas, é forçoso reconhecer que muitos povos indígenas do Brasil tinham, em suas respectivas culturas, arranjos familiares muito diferentes do modelo que os jesuítas vinham propor. Não é surpreendente, portanto, que os missionários ficassem algo escandalizados com o que viam, um fato que transparece, até com facilidade, em alguns dos escritos que deixaram.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 354.
(2) "Informação dos Casamentos dos Índios do Brasil".
(3) São Paulo.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit. p. 448.
(5) Hans Staden teria muito a dizer sobre esse famoso chefe tamoio.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit. p. 449.


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quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Vias públicas parecidas com a superfície da Lua

A conservação de estradas, ruas e avenidas durante a República Velha


A conservação de vias públicas no Brasil é uma grande dificuldade desde tempos imemoriais. Podem rir, leitores: usei uma expressão velhusca para expressar um problema tão antigo quanto. 
Como sabem, nos tempos em que as tropas de muares faziam o transporte de cargas, a situação das poucas estradas era calamitosa, e as pobres mulas é que sofriam as consequências mais pesadas (sem nenhum trocadilho). Sobre esse assunto há várias postagens aqui no blog História & Outras Histórias.
O advento das ferrovias melhorou as condições de transporte, mas elas não alcançavam todo o País. As estradas, ditas "de rodagem" - sim, já que por elas rodavam carroças, carroções, carros de bois, raríssimas carruagens - não perderam sua importância, até porque também iam por elas não poucos pedestres, bem como as tropas de muares, que estavam ainda longe do desaparecimento. 
De acordo com o que escreveu Adolpho Augusto Pinto em História da Viação Pública de São Paulo, na virada do Século XIX para o Século XX eram estas, entre outras, as obrigações de quem arrematava a concessão para o serviço de manutenção das estradas de rodagem no Estado de São Paulo: 
"a) Prevenir a formação de atoleiros, consolidar o terreno por meio de camadas de cascalho, pedras quebradas ou areia;
b) Fazer desaparecer as depressões [...] que o trânsito e as águas tiverem produzido [...];
c) Manter [...] desobstruídos os bueiros, as valetas e os vãos das pontes e pontilhões;
d) Abaular o leito da estrada nas várzeas, estabelecer esgotos necessários para que as águas não atravessem a estrada fora dos lugares para esse fim destinados;
e) Conservar os taludes das cavas [...];
f) Remover do leito da estrada quaisquer obstáculos ao trânsito [...];
g) Fazer as roçadas que forem necessárias para que as margens da estrada se achem sempre descortinadas [...];
h) Reparar com prontidão quaisquer estragos ocasionados pelas chuvas;
i) Fazer os reparos que se tornarem necessários no soalho e guarda-corpo das pontes e pontilhões [...];
j) Enterrar os animais que forem encontrados mortos na estrada ou em suas imediações;
k) Alcatroar [...] todas as peças visíveis das pontes e pontilhões [...]." (¹)
A lista é longa, leitores, mas muito instrutiva, já que, pelos itens de manutenção mencionados, podemos, com um pouco de imaginação, visualizar como eram as estradas há pouco mais de cem anos: sem calçamento, muito afetadas pelas chuvas, com frequentes obstáculos ao trânsito e, não raro, com o agradável aroma decorrente de animais mortos que ficavam pelo caminho. Deviam, com tantos buracos, lembrar um pouco a superfície da Lua, como a vemos com o uso de um pequeno telescópio.
É claro que estradas assim não estavam aptas a receber o tráfego de automóveis, e foi exatamente a aparição deles que motivou alguma modernização. A polêmica envolvendo as obras de Washington Luís, primeiro como governador de São Paulo e depois como presidente da República, demonstra que, em tempos da República Velha, as viagens, para a maioria da população, eram ainda eventos incomuns, de modo que pouca gente percebia a necessidade de investir na modernização das vias de transporte.
Ora, se a situação das estradas de rodagem não estava para elogios, as vias urbanas só resultavam em sorrisos quando eram alvo de algum humorista. Nem mesmo as ruas da capital do Brasil (²) escapavam à existência de crateras notáveis. Se acham que estou exagerando, vejam só estes cartoons que apareceram na publicação carioca O Malho em 1923:


A legenda diz:
"- Eu gosto de uma cidade assim, parece um queijo.
- Um queijo?!
- Sim. Um queijo cheio de buracos..." (³)


Já aqui, diante de um veículo repleto de pneus sobressalentes, a legenda informa: 
"É o último modelo. São feitos especialmente para a cidade do Rio de Janeiro." (⁴)

(1) PINTO, Adolpho Augusto. História da Viação Pública de São Paulo. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia., 1903, pp. 267 e 268.
(2) Rio de Janeiro, na época de que trata esta postagem.
(3) O MALHO, 28 de abril de 1923. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Ibid., 9 de junho de 1923.  O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Em que acreditavam os cristãos que viviam no final do Século II

O Credo Niceno, que só seria formulado em 325 d.C., estava ainda distante quando Tertuliano escreveu sua Apologia, com o propósito de defender os cristãos perseguidos por ordem do Senado romano (¹). No entanto, como estratégia para demonstrar que a perseguição era injusta, Tertuliano tratou de explicar sucintamente quais eram as principais ideias do cristianismo no final do Século II, dentre as quais, leitores, veremos algumas.

O Deus dos cristãos como um ser único e criador do universo

"Nós, cristãos, adoramos a um Deus que, a partir do nada, criou o mundo e os elementos que o compõem [...]. Embora Deus seja invisível, traços dele podem ser vistos nos seres que criou [...]." (²) 
Essa crença era de difícil compreensão para a mentalidade politeísta que predominava no mundo romano. Especulava-se sobre quem, de fato, os cristãos adoravam, e verdadeiros absurdos eram repetidos: as nuvens, uma cabeça de jumento...

Escritos sagrados continham previsões em relação ao futuro

Segundo Tertuliano, acontecimentos previstos nos escritos sagrados dos cristãos já haviam acontecido; portanto, era razoável crer que os que ainda estavam no futuro também viriam a ser realidade:
"Nós, cristãos, cremos no que virá, da mesma forma que no que já aconteceu, uma vez que, junto àquilo que hoje vemos, já está profetizado o que sucederá no futuro. [...].
Será tolice crer que se cumprirá o que ainda falta acontecer, uma vez que já ocorreu e está ainda ocorrendo o que se profetizou?" (²)
Textos considerados sagrados não eram estranhos ao mundo romano, e até se pode dizer que pessoas de certa instrução costumavam mostrar interesse por eles; além disso, nesse tempo, ainda que com algumas restrições, o judaísmo era admitido em Roma, e, fosse por curiosidade ou por qualquer outro motivo, eruditos romanos tinham algum conhecimento da chamada Lei de Moisés. "Digam-me", escreveu Tertuliano, "qual dos poetas ou sofistas deixou de ir beber à límpida fonte dos profetas?" (²)
Por outro lado, embora nos dias de Tertuliano o cristianismo já fosse uma religião distinta do judaísmo, o fato de que compartilhavam alguns escritos sagrados levava, às vezes, a confusões que podiam resultar em problemas.

Cristãos não deviam esconder sua fé

Mesmo sob perseguição, cristãos não deviam usar qualquer artifício para disfarçar sua fé: 
"A nenhum cristão é lícito mentir ou disfarçar a profissão de fé. [...] Dizemos de público, cobertos de sangue, destroçados em razão da tortura, mas afirmamos plenamente aos que nos atormentam, que a Cristo adoramos como nosso Deus." (²)

Jesus, Filho de Deus, que já estivera uma vez na Terra, apareceria uma segunda vez

"A Escritura aponta duas vindas de Cristo, estando já cumprida a primeira, na condição humilde de carne humana, enquanto a segunda será no fim do mundo, com manifestação do poder divino." (²)
Gregos e romanos não achariam estranha a ideia de Jesus ser chamado "Filho de Deus" pelos cristãos, porque muitos de seus deuses eram, por sua vez, descritos como filhos de outros deuses (Zeus, filho de Cronos, Palas Atena, filha de Zeus, e assim por diante); teofanias, ou seja, manifestações visíveis dos deuses, também eram parte do acervo de crenças do mundo greco-romano. A ideia de um juízo final é que não era muito comum, e muito menos a crença de que, algum dia, os mortos tornariam a viver. Em outro de seus escritos (³), Tertuliano explicou: "...cremos que o espírito e a carne haverão de ressuscitar."

Cristãos praticavam um estilo de vida muito diferente daquele adotado pela maioria dos romanos

Os leitores que conhecem alguma coisa do modo de vida que imperava em Roma não terão dificuldade em reconhecer, com estas breves citações da Apologia, que cristãos adotavam um comportamento bastante diferente, e que, talvez, nisso residisse uma das grandes dificuldades, já que, para não poucos romanos, adeptos do cristianismo pareciam "gente desagradável" (conforme opinião de Tácito):

  • Cristãos não se divertiam com os espetáculos favoritos do povo romano: "Nossos olhos não se agradam em presenciar animais despedaçando homens na arena." (²)
  • Cristãos eram instados para que tivessem amor uns pelos outros: "Vejam como se amam, dizem, e isso falam com espanto, porque seu costume é que tenham ódio uns aos outros." (²)
  • Sob perseguição, cristãos partilhavam os bens: "Temos todos os bens em comum, exceto as mulheres." (²) [sic!!!] 

Não é improvável que, a esta altura, alguns de vocês, leitores, estejam pensando: Por que é que essa gente inofensiva e até benéfica sofria perseguição? Só por causa de ideias que soavam um pouco esquisitas para a mentalidade romana?
Responderia Tertuliano:
"Se o Tibre alcança os muros da cidade, ou se o Nilo não transborda o suficiente para as plantações, se o céu sem nuvens não traz chuva, se há tremor de terra, se ocorre escassez de trigo ou se grassa a peste, o povo não tarda a gritar para que "joguem os cristãos ao leão". Para tantos cristãos um só leão?" (²)
Ora, leitores, estamos diante de um fenômeno recorrente ao longo dos séculos. Quando as coisas vão mal, não demora a aparecer quem aponte um suposto culpado (quase sempre aquele que não tem como se defender), cuja única culpa, na verdade, é ser minoria, ser diferente, é ir, talvez, contra aquilo que faz a multidão. Não será difícil para vocês, que têm bom nível de informação, identificar situações assim, longe ou perto de nós, no espaço e no tempo.
Na época em que o cristianismo nasceu e se espalhou pelo Império Romano, as religiões existentes eram, quase todas, politeístas e de caráter local, ou, quando muito, nacional. Nisso, também, o cristianismo era diferente da maioria: admitia adeptos de todas as nacionalidades, não fazia restrição a qualquer camada social e apresentava uma surpreendente mensagem de fraternidade entre todos os homens (infelizmente, nem sempre praticada). Foi duramente perseguido, mas, a despeito disso, ganhou mais e mais adeptos, primeiro entre artesãos e mesmo escravos e, gradualmente, até entre a elite romana. 
Já que começamos com Tertuliano, concluiremos também com ele. "Se os cristãos resolvessem viver juntos em algum canto do mundo", escreveu, "o Império ficaria em assombro, por perder cidadãos de tal qualidade e sofrendo o dano de ficar sem os bons." E, naquela que é a mais difundida de suas ideias, até mesmo entre os que não têm o mínimo interesse por História, afirmou que, se a intenção era extinguir o cristianismo, a perseguição era inútil: "Quando vocês matam cristãos, estão semeando. Quanto mais derramam nosso sangue, mais numerosos nos tornamos, porque o sangue dos cristãos é semente." 
Convenhamos: mesmo em meio à perseguição, era uma mudança notável, para uma religião que nascera quase dois séculos antes em uma província não muito tranquila do Império. Os centênios seguintes trariam ainda muitas outras transformações.

(1) 200 d.C.
(2) Tertuliano, Apologia.
Exceto quando mencionado, todas as citações que aparecem nesta postagem pertencem à Apologia de Tertuliano e foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Da Paciência.


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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A moda como fator nas pinturas corporais usadas por povos indígenas do Brasil

Indígena brasileiro, Século XVIII (³)
Moda não seria moda se fosse sempre a mesma. Tem por obrigação ser mutante (¹). Robert Southey, em sua História do Brasil, escreveu:
"A moda, pois, tão caprichosa na vida selvagem como na civilizada, é igualmente variável em ambas." (²)
O autor britânico disse isso a propósito das pinturas corporais usadas por povos indígenas do Brasil. Deixando de lado a questão quanto ao que é que Southey classificava como "selvagem" e "civilizado", e já informando aos leitores que "selvagens", para ele, eram os indígenas, passemos à consideração de que as pinturas corporais, tão frequentes entre os nativos do Brasil pela época do descobrimento, foram, aos poucos, caindo em desuso - teriam começado a sair de moda, pelo menos nas tribos litorâneas. O que Southey talvez não tenha considerado é que, para tanto, a presença do elemento colonizador pode ter sido decisiva. 
Como regra, missionários envolvidos na catequese tendiam a achar as pinturas uma expressão de paganismo, que devia ser abandonada pelos catecúmenos. Colonizadores que, por qualquer razão, se deixavam pintar ou "riscar" como indígenas, eram severamente repreendidos. Chegavam a ser alvo da Inquisição, conforme se vê em uma denúncia, por ocasião da primeira visitação do Santo Ofício à Bahia (1891):
"Viu riscar-se em um braço Manuel Branco, solteiro, mameluco, irmão de Jacome Branco, [...], segundo o costume gentílico, os quais gentios têm esta cerimônia que se riscam com lavores abertos na carne a modo de ferretes, significando serem gentios valentes, e da mesma maneira viu também riscar-se Domingos Dias, solteiro, mameluco [...]." (⁴)
Na mesma ocasião, certo Gaspar Nunes Barreto confessou também "ter-se feito riscar", como faziam os indígenas:
Índio mundurucu, Século XIX (⁷)
"Confessando disse que sendo ele mancebo desbarbado, que ainda não chegaria à idade de vinte anos, que seria de idade de dezesseis anos pouco mais ou menos [...] se mandou riscar por um negro da terra (⁵) na perna esquerda [...], o qual riscado ele consentiu e mandou fazer em si sem nenhuma tenção gentílica, mas simplesmente como moço ignorante [...], e isso é costume entre os gentios deste Brasil, os quais quando fazem alguns feitos grandes e mortes em guerras se costumam riscar da dita maneira pelos braços, pernas, corpo e rosto [...], e quanto mais valentes se querem mostrar, tanto mais junto dos olhos fazem os ditos lavores no rosto." (⁶)
Os leitores percebem que, para os indígenas, pinturas e outros sinais que se faziam no corpo funcionavam como um código, sinalizando quem era o indivíduo, a que grupo pertencia e qual o status que lhe cabia dentro do grupo. Para voltar ao pensamento de Southey, não se pode descartar completamente um fator moda nesse código, mas o declínio da prática estava muito provavelmente vinculado ao abandono gradual das tradições, tanto pela pressão vinda da catequese como pela própria desestruturação das sociedades indígenas, em decorrência das guerras contínuas contra colonos, das mortes numerosas por epidemias e da necessidade de fugir para o interior, a fim de escapar à escravidão e ao extermínio.
Por outro lado, admitamos que, vez por outra, as pinturas e sinais passassem por mudanças porque simplesmente alguns estilos saíam de moda. Em que isso deveria parecer estranho ou surpreendente, se levarmos em conta o vestuário e as perucas extravagantes que eram usuais entre a nobreza europeia do final do Século XVIII, que Southey devia conhecer muito bem?

(1) Achou a ideia meio pleonástica, leitor? Estou de acordo: é mesmo.
(2) SOUTHEY, Robert. História do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 24.
(3) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: 1922, p. 126.
(5) Nos Séculos XVI e XVII era comum que europeus que viviam no Brasil se referissem aos indígenas como "negros da terra".
(6) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Op. cit., pp. 128 e 129.
(7) SELLIN, Alfred Wilhelm. Das Kaiserreich Brasilien. Leipzig: Frentag, 1885, p. 84. 
A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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