Formigas da América do sul e seus hábitos curiosos
A formiga era "o rei do Brasil" nos tempos coloniais, como bem sabem os leitores deste blog. Digo, porém, que, a seu modo, as muitas espécies de formigas eram bem mais que um reino: constituíam verdadeiro império, e, insolentes, faziam questão de ignorar restrições de fronteira, fato tanto mais grave porque, nesse tempo, portugueses e espanhóis querelavam por traçar limites no que deveria ser possessão de seus respectivos monarcas.
Não vai aqui nenhuma troça indevida: posso comprovar o que acabo de dizer com as palavras de Félix de Azara, que esteve na América do Sul entre 1789 e 1801, na posição de comandante da Comissão de Limites enviada pela Espanha para, ao lado de representantes de Portugal, demarcar as terras que deveriam pertencer a uma e outra monarquia. Tarefa ingrata, essa...
Sem mais delongas, vamos às formigas de Azara (¹). Tratando de uma espécie a que denominou araraá, que, como a maioria das formigas, era apaixonada por doces (²), escreveu: "Há casas em que é impossível conservar açúcar ou melado [de cana]. Para preservar ditos objetos, se veem obrigados a pô-los sobre uma mesa cujos pés estão dentro de cântaros cheios de água." (³)
Prossigamos, que Azara era bom contador de histórias. Outra espécie, chamada por ele tahy-ré, existente no Paraguai, era capaz de façanhas ainda mais portentosas: "A espécie chamada tahy-ré, que quer dizer formiga fedorenta, porque quando esmagada cheira muito mal, não tem habitação conhecida e não se sabe qual seja seu alimento habitual, porque só é vista quando sai. No Paraguai [...] ela costuma sair quase sempre à noite, dois dias antes de alguma mudança climática significativa, e se espalha, cobrindo o chão, as paredes e o teto dos quartos, por grandes que sejam. Consomem em um instante as aranhas, grilos, besouros e quantos insetos encontram, não deixando baú, canto ou fenda que não visitem. Se essas formigas encontram uma ratazana, esta se põe a correr como louca e, se não consegue sair do quarto (⁴), logo é coberta pelas formigas, que [...] a devoram. Afirma-se que essas formigas fazem a mesma coisa com as cobras. O fato é que elas obrigam até os homens a abandonar cama e quarto, correndo em camisa para fora. [...]" (⁵). Podem imaginar a cena, leitores?
Como já demos a Azara a oportunidade de falar das formigas; vamos, então aos formigueiros, ou pelo menos, a um formigueiro, mas não a um qualquer: "Uma mula que me pertencia", disse ele, "passando por um destes formigueiros que, devido a chuvas abundantes, havia amolecido, afundou, de modo que a vinte passos de distância não se via dela mais que a cabeça, embora estivesse em pé. Tal é a profundidade do túnel formado por esses formigueiros". (⁶)
É hora de concluir, assegurando, de passagem, que Azara era um homem sério, não dado a incluir lorotas em seus escritos. Qual seria a altura da pobre mula? Espero que nenhum dos leitores tenha pesadelos com formigas!
(1) Ainda que não fosse naturalista, Félix de Azara procurou observar tudo o que podia quanto aos seres vivos da América do Sul; seus escritos, embora não isentos de erros e mesmo de alguns preconceitos, têm a virtude impagável de ter, como autor, uma testemunha ocular.
(2) Algum leitor ousa contestar?
(3) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 101. Todos os trechos aqui citados desta obra foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) Parece que algumas residências coloniais tinham uma população que ia além dos seres humanos.
(5) AZARA, Félix de. Op. cit. p. 102.
(6) Ibid., p. 107.
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