quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Em 2024

No último dia 25 este blog completou quatorze anos. É muito tempo, se pensarmos que a maioria dos blogs não chega nem perto disso. 
Estamos entrando, portanto, no décimo quinto ano de História & Outras Histórias, e, para comemorar, teremos algumas novidades, ou, pelo menos, faremos o possível para que elas aconteçam. Haverá um número maior de postagens a cada semana, e, quase sempre, os textos serão um pouco menores do que têm sido até aqui. Quem tiver pouco tempo para leitura, não terá pretexto para deixar de ler. Novos textos estarão disponíveis às segundas, quartas e sextas-feiras, a partir das dez horas. Como sempre, comentários serão bem-vindos. 
Talvez essas mudanças sejam uma maneira gentil de começar a dizer adeus - se eu efetivamente mantiver o blog ativo até seu décimo quinto aniversário. Não é assunto completamente decidido, mas algo em que tenho pensado bastante. Talvez seja hora de partir para novos projetos. 
Mas, deixando esse assunto de lado agora, quero desejar a todos os que leem este blog um ano-novo maravilhoso, em que os desafios sejam oportunidades para grandes realizações. Que venha 2024!


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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Feliz Natal!

"Não é hoje Natal? Quero hoje viver no pleno repouso do espírito.
Demais, esta janela põe-me em comunicação com a natureza. Como está bonito o dia! É em honra do nascimento do Salvador, não? E virá o desejado de todas as gentes. É do profeta."
Machado de Assis, O Último Dia de um Poeta.

A maioria das culturas, tanto do passado quanto da atualidade, teve ou tem um conjunto de celebrações, algumas alegres (talvez até demais), outras tristes. Todas servem, entre várias razões, para afirmar valores e assinalar a passagem do tempo.
O Natal está chegando. Para nós, ocidentais, tem (ainda) um significado religioso, que parece estar perdendo sentido, não só pelo aspecto comercial que cada vez mais se atribui à data (e não é de hoje...), mas pela própria perda da religiosidade, seja no âmbito pessoal ou social. São mudanças, é fato. Inevitáveis? Não sei. 
Então, a vocês que leem este blog, quaisquer que sejam seus motivos para festejar, desejo um feliz Natal, com familiares, amigos queridos. Com presentes - por que não? - e, em meio a tudo isso, um pouco de reflexão quanto ao sentido da data, que possa resultar em mais solidariedade, respeito e compaixão, coisas de que o mundo necessita com urgência. 


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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Fogo sagrado

O fogo sagrado foi elemento importante na religião de diversos povos da Antiguidade


Inúmeros povos da Antiguidade tiveram, entre suas práticas religiosas, a conservação do fogo sagrado, cuja origem era atribuída aos deuses ou a algum fenômeno natural, também de origem divina. Segundo palavras de Plutarco, ao traçar a biografia de Numa Pompílio (¹), "entre os povos de várias nações, existiu o costume de conservar, religiosamente, o fogo perpétuo que, em alguns lugares, foi até considerado de origem divina, para ser adorado." (²)
Apesar disso, às vezes o fogo supostamente eterno se apagava. Plutarco apontou, em Vitae parallelae, ter sido o caso em Delfos, durante as guerras contra os persas, porque o templo foi queimado - "o fogo profano extinguiu o sagrado" -, e em Roma, por ocasião da guerra contra Mitridates e também durante as guerras civis. A ira popular não poupou nem mesmo o altar em que ardia o fogo sagrado. 

No Egito

Nos templos dos antigos egípcios, como também nos de muitos outros povos, competia aos sacerdotes a conservação do fogo sagrado. Do templo mais próximo é que as famílias de cada localidade obtinham a chama para o fogo sagrado doméstico. Contudo, o fogo familiar não era, entre os egípcios, algo que se deveria manter aceso a qualquer custo. Era intencionalmente apagado quando alguém da casa morria, e depois aceso novamente, uma prática facilmente explicável pelas crenças dos egípcios quanto à vida após a morte. Procedimento semelhante ocorria a cada ano, quando se fazia a celebração geral em memória dos mortos.

Na Grécia

Os antigos gregos, ao menos em algumas localidades, além do fogo sagrado nos templos, tinham, por tradição, uma festa em que se acendiam fogueiras em algum lugar especial consagrado aos deuses. Nessas fogueiras eram oferecidos sacrifícios de animais, além de simulacros de pessoas - uma lembrança, talvez, dos sacrifícios humanos, felizmente assim substituídos por bonecos. 
No processo de expansão territorial que levou à formação da Magna Grécia, grupos de gregos deixavam uma localidade já insuficiente para a população e iam formar uma colônia. Na partida, levavam consigo o fogo que haviam acendido no templo da cidade de origem, e que deveria, na nova povoação, ser aceso no templo que se construísse, como um símbolo do vínculo perpétuo entre as cidades. 

Em Roma

As famílias patrícias de Roma conservavam, não só por religião, mas como fator de distinção social, um altar doméstico em cujo fogo eram oferecidos alimentos, supostamente para os ancestrais mortos, e diante do qual também se realizavam outras cerimônias. Na religião do Estado, porém, competia às vestais a conservação do fogo sagrado. No dizer de Plutarco, foi Rômulo, o lendário fundador da cidade, quem ordenou que "às virgens vestais competisse a manutenção permanente do fogo sagrado, embora muitos autores [romanos] tenham atribuído a consagração do fogo a Numa Pompílio." (³) 

(1) O segundo rei lendário de Roma, de quem se dizia ser um homem extremamente sábio e religioso.
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 


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quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Cigarros antigos

"Achar um sistema que habilite a gente a compor uma sinfonia enquanto fuma um cigarro de Sorocaba, é realmente descobrir a pedra filosofal."
Machado de Assis, DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 26 de setembro de 1864

Propaganda de cigarros publicada
em 1926 (*)
No Brasil Colonial havia quem chamasse o tabaco de "erva santa". 
Tendo aprendido o uso das folhas da planta da qual se faz o tabaco a partir do contato com indígenas, colonizadores perceberam que era possível extrair disso uma fonte de lucro, e foi assim que, com o correr do tempo, o tabaco se tornou um produto importante de exportação do Brasil, e não só durante os séculos coloniais. Quem duvidar disso deve dar uma olhadinha no brasão do Império. 
É compreensível que, durante algum tempo, poucos notassem que o consumo de tabaco podia causar danos, embora não tardasse a haver quem denunciasse o aspecto ruim dos dentes dos que o mascavam, além do cheiro desagradável nas roupas e até na moradia dos usuários. O desenvolvimento da ciência demonstrou que fumar traz danos inquestionáveis à saúde, e os fumantes, hoje, têm plena consciência dos resultados que poderão colher no futuro. Mas já houve até quem defendesse o contrário, alegando vender cigarros que, supostamente, seriam úteis em caso de moléstias respiratórias, como se vê no anúncio ao lado, que apareceu na revista carioca O MALHO, edição de 25 de dezembro de 1926. Fake News não são coisa apenas do nosso século.

(*) O MALHO, Ano XXV, nº 1267, 25 de dezembro de 1926. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Filósofos na Antiguidade

Por que, na Antiguidade, atenienses tinham tanto interesse em vários campos do conhecimento, enquanto espartanos não se importavam com nada disso? Estrabão (¹), em sua Geografia, avaliou a questão desta maneira: 
"Foi o hábito [dos estudos] que fez dos atenienses filósofos, enquanto espartanos não o foram, e nem mesmo os tebanos, que viviam tão perto de Atenas. Pela mesma razão, não é por natureza que babilônios e egípcios são filósofos, e sim por hábito e prática [de investigar, estudar]. O mesmo pode ser dito de cavalos, bois e outros seres vivos, cujas qualidades são resultado, não simplesmente do lugar em que vivem, mas do adestramento. [...]" (²)
Quando Estrabão falava em "filósofo", não dava à palavra necessariamente o mesmo significado que hoje recebe. Ele pensava em alguém que buscava o conhecimento em todas as suas formas, que se interessava pelas ciências, pelas artes, incluindo a música, que, enfim, era amigo das letras. O campo de conhecimento que interessava ao filósofo da Antiguidade era imenso. Nesse sentido, atenienses e babilônios, citados por Estrabão, eram filósofos, mas se ocupavam de coisas distintas. Enquanto os homens de Atenas se interessavam pela política, pela ética, pela matemática e outros campos afins, os da Babilônia, que também eram ótimos matemáticos, perscrutavam o céu, sendo, ao seu modo, astrônomos, mas também astrólogos, um campo que hoje ninguém, sensatamente, poderia chamar de científico.
É curiosa a comparação de que o hábito do estudo se desenvolveria nos humanos por adestramento, de modo análogo ao treino ministrado aos animais para que fossem úteis no trabalho. Está aí uma questão que poderia muito bem resultar em debate acalorado. E se a esse treino ou adestramento chamássemos educação?
Eu diria ainda (talvez contrariando um pouco o que disse Estrabão), que, para ser reconhecido como filósofo na Antiguidade, era preciso estar no lugar certo, no tempo certo. Não é possível calcular quanta ciência se perdeu, porque algum filósofo ou filósofa (no sentido antigo) estava sozinho (ou sozinha) com seus pensamentos, olhando as estrelas enquanto cuidava de um rebanho ou lutando para manter o fogo aceso ao preparar alimento, ou simplesmente porque estereótipos de gênero impediam que cerca de metade da humanidade expressasse raciocínios e ideias próprias.

(1) c. 63 a.C. - 24 d.C.
(2) ESTRABÃO, Geografia. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Argumento usado por escravizadores de indígenas

Dificilmente alguém descreverá melhor os motivos que fizeram tantos colonizadores percorrerem o sertão à procura de indígenas, a quem aprisionavam e escravizavam, do que aquilo que se lê neste breve parágrafo escrito por João Severiano da Fonseca (¹):
"Atravessaram, muitas vezes, estes sertões vastíssimos d'além Paraguai, Pedro Domingues e Brás Mendes, capitão do seu terço, segundo Roque Leme, natural de Sorocaba, sempre em busca de índios, com a santa ideia de os livrar do pecado, chamando-os ao grêmio da religião de Cristo - e a torpe tenção de fazê-los escravos." (²) 
Portanto, sem rodeios, para acalmar a consciência e para dar uma aparência decente ao que faziam, apresadores de indígenas - não só os citados por Severiano da Fonseca, mas uma multidão de outros - alegavam que, arrancando-os das florestas em que viviam e obrigando-os a trabalhar como escravos, estavam dando a eles a oportunidade da catequese. Ora, desde quando tal coisa é cristianismo? E que cristianismo tinham para ensinar esses homens que roubavam a liberdade dos indígenas? Argumento hipócrita, certamente, mas havia quem acreditasse nele, ou, pelo menos, fingisse acreditar, porque parecia conveniente. 

(1) Veterano da Guerra do Paraguai e integrante de uma expedição indicada para demarcar as fronteiras do Brasil com a Bolívia.
(2) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878, Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, p. 41. 


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quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Hortas nas reduções jesuíticas na América do Sul

Os jesuítas que estabeleceram reduções indígenas na América do Sul tinham, em cada uma delas, uma horta devidamente provida, tanto de vegetais nativos como daqueles que haviam vindo da Europa com colonizadores. Em referência a uma dessas hortas, o cônego João Pedro Gay (¹) afirmou que era "murada de pedra e barro, com ruas alinhadas e plantadas de pinheiros, laranjeiras, limoeiros, marmeleiros, macieiras, pessegueiros, nogueiras da Europa, oliveiras, parreiras e outras muitas árvores e arbustos, tanto indígenas como exóticos [...]" (²). 
Assim descrita, a horta seria, com mais justiça, chamada pomar. É pena que o cônego João Pedro Gay não tenha citado por nome os arbustos cultivados, porque entre eles poderiam estar algumas plantas aromáticas muito apreciadas. Embora não mencionadas por ele, hortaliças em geral eram também cultivadas. Disso se podem tirar pelo menos duas conclusões:
  • A existência das hortas permitiu que espécies conhecidas pelos colonizadores, mas não nativas, fossem, em alguns casos, introduzidas, e, em outros, tivessem o cultivo desenvolvido e disseminado na América do Sul, um fato que talvez os jesuítas não tenham premeditado, mas para cuja ocorrência, de qualquer modo, contribuíram;
  • As hortas dos jesuítas incluíam espécies que hoje não são muito comuns na América do Sul, o que prova que seu cultivo era possível, e que razões variadas devem ter contribuído para que o plantio não se generalizasse em outras áreas de colonização.

(1) Foi cônego em São Borja - RS no Século XIX e estudioso das missões jesuíticas na América do Sul. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 237 e 238.


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quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ferramentas usadas por povos indígenas

Machado indígena (¹)

A surpresa com as ferramentas rudimentares usadas por indígenas é recorrente entre autores que estiveram no Brasil no início da colonização. O padre Yves D'Évreux, por exemplo, franciscano que esteve no Maranhão entre 1613 e 1614, afirmou:
Ralador indígena de madeira
com pedrinhas de granito (³)
"[...] estes selvagens [...] não tendo ferramenta alguma para trabalhar, quer nos bosques quer nas roças, servem-se unicamente de machados de pedra para cortar árvores, fazer suas casas e canoas, plantar raízes, e por única recompensa de seus trabalhos só comem farinha e raízes passadas por um ralador feito de pedrinhas agudas, engastadas em uma tábua da largura de meio pé." (²)
Bem, se tinham machados de pedra e, para a cozinha, um ralador, já não estavam sem ferramentas. Também é fato que indígenas não se alimentavam somente de farinha de mandioca e raízes, porque iam à pesca e à caça, e eram hábeis no manejo de suas armas. Coletavam frutas, ainda, de modo que, mesmo com a escassez de instrumentos para trabalhar, conseguiam sobreviver no ambiente em que estavam inseridos. D'Évreux minimizou as ferramentas usadas pelos indígenas que conheceu no Maranhão; mas poderia, com mais justiça, ter-se maravilhado com aquilo que eram capazes de fazer com tão poucos instrumentos.

(1) Etnia Fuini-ô Tapuya. Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF).
(2) D'ÉVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil Feita nos Anos de 1613 a 1614. Maranhão: Typ. do Frias, 1874, pp. 43 e 44.
(3) Etnia walwa.  Pertence ao acervo do Memorial dos Povos Indígenas (Brasília - DF). 


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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Como o líder da Revolta de Beckman foi preso

Era o ano de 1685, e estava em curso a investigação - a "devassa", como então se dizia - sobre a rebelião que ficou conhecida como Revolta de Beckman, no Maranhão. Ao estilo da época, o governador, que pretendia ver preso e justiçado rapidamente Manuel Beckman, o líder do movimento, fez passar bando pela cidade de São Luiz e adjacências, com promessa de recompensas a quem denunciasse onde se escondia, além de ameaças severas contra quem lhe desse abrigo.
Ora, Beckman era um sujeito respeitado, e a revolta por ele liderada tivera a participação de muita gente importante, que também detestava a presença dos jesuítas com sua eterna insistência em combater a escravização de indígenas, e que se sentia igualmente prejudicada pela política da Metrópole na concessão de monopólios. Mesmo com tantas ameaças, quem é que teria a coragem de denunciá-lo? 
De acordo com os Anais Históricos do Estado do Maranhão, de Bernardo Pereira de Berredo, Manuel Beckman foi preso e entregue às autoridades por ninguém menos que um seu afilhado, a quem muito estimava. O motivo seria uma das promessas feitas pelo governador, que atraiu a cobiça do rapaz:
"Havia na cidade de S. Luís um Lázaro de Melo, moço de pouca honra, ainda que contava a dos privilégios de cidadão. Tinha sido pupilo do Beckman, e era seu afilhado, mas desprezando tudo a vileza do ânimo, de que se compunha, buscou o tal padrinho na sua fazenda [...] onde sabia bem que ele se ocultava, só com o interesse de granjear pela sua prisão a Companhia das Ordenanças da Nobreza, também um dos prêmios oferecidos nos bandos do governador [...]." (¹)
Por imaginar que Lázaro de Mello jamais iria traí-lo, Manuel Beckman concordou em recebê-lo em seu esconderijo. Com a ajuda de comparsas, o afilhado amarrou e acorrentou o padrinho e, depois, entregou-o ao governador, que segundo Berredo, ficou enojado com a traição. Não obstante, no cumprimento dos deveres do cargo, fez a Lázaro de Melo a concessão do posto que pretendia:
"[...] com a mais prudente dissimulação satisfez a promessa do seu bando, mandando-lhe passar a patente de capitão da Companhia da Nobreza, que lhe ficou sendo tão afrontosa, que intentando marchar para a função da posse, não houve um só homem dos alistados nela que quisesse segui-lo [...]." (²)
Em conformidade com a legislação da época, Manuel Beckman foi enforcado. Quanto a Lázaro de Mello, ainda de acordo com Berredo, teve morte semelhante, por acidente, alguns anos mais tarde:
"[...] além de lhe granjear a sua aleivosia um universal ódio, se enforcou por desgraça, depois de alguns anos, em uma engenhoca de fazer aguardente, acabando a vida também de garrote [...]." (³)

(1) BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão Livro XIX. Lisboa: Oficina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 622. 
(2) Ibid., p. 623.
(3) Ibid., p. 625. 


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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Leis draconianas

Quando se faz uma lei severa demais, é costume dizer-se que é "draconiana". Por quê?
Drácon foi um legislador ateniense que viveu no Século VII a.C., e, segundo Plutarco, revogar a maioria de suas leis teria sido o primeiro ato de governo de Sólon. O Código de Hamurabi, no qual vigorava a lei de talião, ou seja, a retribuição semelhante ao crime cometido - quem matava, devia morrer, quem causava um ferimento, recebia ferida igual - nem de leve chegava perto da severidade das leis de Drácon. O mesmo pode ser dito da Lei de Moisés, também regida, em grande parte, pela lei de talião - "olho por olho, dente por dente" (¹) - talvez explicável pelo contexto social em que foi produzida. 
As leis de Drácon, contudo, iam muito além, porque, segundo Plutarco, "eram em extremo severas e cruéis, impondo penas muito grandes para delitos muito pequenos. Para quase todas as infrações havia a imposição da pena de morte" (²).
É verdade que, para Drácon, aos homicidas cabia a sentença de morte, também admitida para aqueles que cometessem crime de sacrilégio (coisa tanto mais complicada quanto eram quase infinitos os deuses); mas também é fato que o crime de injúria e até mesmo o "furto de frutas e outros vegetais, ou outras coisas de pouco valor" (³), também devia significar um ponto final à existência do infrator. 
Em consequência, logo se tornou corrente o dito de que Drácon, em lugar de tinta, havia usado sangue ao escrever suas leis. Havia mais: interrogado quanto à razão de tanta severidade, Drácon teria respondido que "a seu ver, pequenos delitos mereciam ser castigados com a morte, e, quanto aos grandes crimes, não encontrava, para eles, penalidade maior que a morte" (⁴). Não parece boa a explicação, e bem se pode imaginar que, tendo Sólon revogado as leis de Drácon, toda a cidade de Atenas pôde respirar com alívio.

(1) Cf Exodus XXI, 24-25: "oculum pro oculo, dentem pro dente, manum pro manu, pedem pro pede, adustionem pro adustione, vulnus pro vulnere, livorem pro livore."  
(2) PLUTARCO, Vitae parallelae. Os trechos aqui citados da biografia de Sólon em Vitae parallelae foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid. 
(4) Ibid. 


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quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Argumentos para trazer missionários jesuítas ao Brasil no Século XVI

Houve, no Século XVI, alguns casos de jesuítas que, estando muito doentes em Portugal, decidiram vir ao Brasil, acreditando que gastariam bem seus últimos dias sobre a terra se estivessem ocupados na catequese de indígenas. Ocorre que, ao chegarem ao Continente Americano, não só recuperaram a saúde, como ainda viveram largos anos, estimando-se que a mudança de ares fora a causa desse (quase) milagre. A despeito dos riscos inerentes à travessia do Atlântico, a vinda ao Brasil passou a ser vista como uma possibilidade de melhora na saúde dos padres que, vivendo no Reino, não encontravam alívio nos tratamentos a que eram submetidos. Convenhamos: a medicina da época não ajudava muito.
Mesmo assim, era reduzido o número de missionários envolvidos na catequese de indígenas e no ensino dos meninos, filhos de portugueses, e, por essa razão, os jesuítas encarregados da redação de cartas para seus irmãos de Ordem, viviam citando as palavras de Jesus nos Evangelhos, de que a seara era mesmo grande, mas eram poucos os trabalhadores (¹). Era preciso pedir mais gente para tanto trabalho. 
Que argumentos mais poderiam ser úteis para encorajar candidatos a missionários? Uma carta escrita na Bahia em setembro de 1560 pelo padre Rui Pereira, destinada aos jesuítas que viviam em Portugal, nos dá, indiretamente, algumas pistas de quais poderiam ser os pretextos para não vir - comida diferente, desconforto da vida no Brasil, etc. - e como poderiam ser refutados. Vejamos, primeiro, a questão da alimentação:
"[...] Se em Portugal há galinhas (²), cá as há muitas e mui baratas; se tem carneiros, cá há tantos animais que caçam nos matos e de tão boa carne, que me rio muito de Portugal em essa parte. Se tem vinho, há tantas águas que a olhos vistos me acho melhor com elas que com os vinhos de lá; se tem pão, cá o tive eu por vezes e fresco, e como antes dos mantimentos da terra que dele. E está claro ser mais sã a farinha da terra (³) , que o pão de lá; pois as frutas coma quem quiser as de lá, das quais cá temos muitas, que eu só as de cá me quero. [...]" (⁴) 
Mas quem quereria trocar as horas de sono em uma cama confortável, por uma rede, como aquelas em que dormiam os indígenas, fosse no mato ou em alguma povoação de colonizadores? Responde o padre Rui Pereira:
"[...] Dir-me-ão que vida pode ter um homem dormindo em uma rede pendurado no ar, que é isso cá tão grande coisa que tenho eu cama de colchões, aconselhando-me o médico que dormisse na rede, e achei tal, que nunca mais pude ver cama, nem descansar noite que nela dormisse, em comparação do descanso que nas redes acho. Outros terão outros pareceres, mas a experiência me constrange a ser dessa opinião." (⁵)
O jesuíta Rui Pereira argumentava com base em suas preferências. Talvez fosse um exemplo notável de aculturação ou, pelo menos, de adaptação às possiblidades em terra de missões. Argumentos como os seus, contudo, podem ter influenciado aqueles que, indecisos, vacilavam em "passar ao Brasil". Independentemente do que se pense do modo como aconteceu a catequese de indígenas, ser missionário no Século XVI não era para qualquer um.

(1) Cf. Evangelium Secundum Mattheum, 9. 37, 38 - "[...] messis quidem multa operarii autem pauci / rogate ergo dominum messis ut eiciat operarios in messem suam"; Secumdum Lucam 10. 2 - "messis quidem multa operari autem pauci rogate ergo Dominum messis ut mittat operarios im messem"
(2) A carne de galinha era vista, na época, como um alimento favorável aos enfermos. 
(3 Farinha de mandioca.
(4) Cf. LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 153.
(5) Ibid., p. 154.


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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Em defesa da leitura

Já ouvi alguns amigos falando de sua preocupação com os filhos em idade escolar, que não querem ler nada que tenha mais de duas ou três linhas. A dificuldade é mais ou menos a mesma quando se trata de escrever. Seja porque não querem, ou porque alegam não gostar, ou ainda porque não adquiriram a capacidade para isso, muitas crianças e adolescentes evitam qualquer tipo de leitura, principalmente se for tarefa requerida pelos professores. Quanto à escrita, nem se fala. Pais e mães, ansiosos devido à situação, tendem a responsabilizar os meses (anos, em alguns casos) de aulas virtuais que, para muitos alunos, foram um tempo de aula nenhuma. Simplesmente dormiam diante do computador. 
Seria completa tolice supor que os mais jovens não foram afetados pelos tempos difíceis da pandemia. Sofriam a seu modo, talvez observando em silêncio a tensão que a família deixava transparecer, quando, devido ao isolamento social, o tempo de convivência doméstica aumentou. Mas, e agora que as coisas estão razoavelmente normais, ou pelo menos parecem estar? 
Meu ponto de vista é bem simples: a escola deve priorizar a aquisição de capacidades fundamentais, deixando de lado, temporariamente, os penduricalhos que chegam a engessar o programa das disciplinas. Minha abordagem sobre o desenvolvimento da leitura, e, por consequência, também da escrita, partirá desse princípio.
Leitura corrente é indispensável. Seu desenvolvimento não pode estar ligado apenas ao processo de alfabetização. Tem de persistir ao longo de toda a escolaridade. E, é bom já dizer, não há equivalência entre assistir filmes e ler obras literárias. É pouco provável que alguém interrompa um filme para refletir sobre ele. Quanto à leitura, oferece oportunidade para reflexão sobre o texto, sobre as ideias que o autor apresenta. Segue em ritmo pessoal, não no ritmo adotado por um diretor de cinema. 
Alega-se que a geração atual não tem mais a concentração necessária à leitura de obras de maior fôlego. Isso pode ser decorrência, ao menos em parte, da alfabetização deficiente. A péssima leitura, a capacidade muito limitada de escrita e o vocabulário reduzido, fenômenos encontráveis, infelizmente, até com certa frequência, mesmo em estudantes do ensino superior, explicam muito do desinteresse por livros. No entanto, não há crescimento intelectual sem leitura e sem capacidade de reflexão. Por isso é tão importante que, desde os anos iniciais, a aquisição da capacidade plena de leitura e o desenvolvimento das habilidades necessárias à produção de textos claros, ainda que simples, sejam prioridade absoluta. Disso depende, em larga escala, o sucesso de um estudante à medida que avança na escolarização.
O que vemos são crianças e jovens com aversão a qualquer coisa escrita. Não estou combatendo os vídeos e outras mídias. Espero que não reste dúvida, no entanto, de que o ambiente escolar é feito para fornecer um conhecimento que não virá de outro lugar.
Por que gastar tempo repisando informações que os pais, de qualquer condição, podem dar às crianças? Aliás, é alto tempo de chamar pais às responsabilidades da educação doméstica, que lhes pertencem, por direito e por obrigação. A escola, na atual conjuntura, precisa ter o foco em capacidades que a ela correspondem, e que não poderiam, facilmente, ser desenvolvidas sem sua intervenção. Ocorre que, com o passar do tempo, mais e mais obrigações, antes desempenhadas pelas famílias, foram lançadas sobre as escolas. A ocasião é favorável para reverter esse processo desastroso.
Assim, digo aos amigos preocupados, aos pais e mães que leem este blog, aos professores: não permitam, na formação de seus filhos e/ou alunos, que outras atividades, ainda que importantes, tomem o lugar da leitura e do desenvolvimento da capacidade de expressar as ideias na forma escrita. Não deem incentivo à preguiça ou às realizações medíocres como se fossem dignas dos maiores elogios. Trabalhoso? Sim, mas que sirva de encorajamento a certeza de que isso é o que se espera de educadores conscientes da importância do que fazem para o futuro das crianças e adolescentes que hoje estão sob sua responsabilidade. 


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quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Bem-te-vi!

Bem-te-vis, entre outras aves, em ilustração do final
do Século XIX, com desenhos de Ernesto Lohse (³)
Bem-te-vi é uma avezinha nativa do Continente Americano, cujo canto pode parecer alegre, até divertido, ou extremamente irritante - tudo depende do estado de espírito de quem o ouve. 
Nuno Marques Pereira, autor do primeiro best-seller brasileiro, o Compêndio Narrativo do Peregrino da América, devia, pois, estar profundamente feliz quando escreveu:

"Despertando o pitauá,
Com impulsos de rigor, 
Disse logo: bem te vi,
Deste lugar em que estou."
(¹)

Outro que se lembrou das façanhas do cantar do bem-te-vi foi Castro Alves (²), poeta cuja obra está bastante ligada às questões abolicionistas. Estes versos pertencem ao poema A Cachoeira de Paulo Afonso:

"Mimosa flor das escravas!
O bando das rolas bravas
Voou com medo de ti!...
Levas hoje algum segredo...
Pois te voltaste com medo
Ao grito do bem-te-vi!"

Já Lima Barreto, desta vez em prosa, escreveu, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma:

"O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma piada irônica: bem-te-vi!"

Resta observar que a impressão de que o pássaro seja algo dado à intriga e à fofoca é coisa de humanos, não de aves - só diz "bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi", porque assim nos parece ou queremos entender. Podia ser outra palavra ou expressão que soasse, aos nossos ouvidos, como coisa conhecida. Afinal, bem-te-vis não falam português.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 48.
(2) Castro Alves morreu muito jovem, coisa que em seu tempo não era incomum. Nascido em 1847, faleceu em 1871. Envolvido com a campanha abolicionista, acabou conhecido como "o poeta dos escravos". 
(3) GOELDI, Emílio A. (org.). Álbum de Aves Amazônicas. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves e Cie., 1900, p. 34.


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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Casamentos em reduções jesuíticas na América do Sul

Indígenas que aceitavam a condição de catecúmenos e iam viver em reduções administradas por jesuítas na América do Sul eram levados a um modo de vida muito diferente daquele que haviam aprendido de seus ancestrais. Era assim, por exemplo, em relação aos costumes quanto ao casamento e ao estabelecimento de novos vínculos familiares. De acordo com o cônego João Pedro Gay, que estudou o assunto e escreveu sobre ele no Século XIX, em quase todos os casos competia aos padres a decisão quanto a quem se casaria com quem. Em seguida, em uma única data, as uniões eram formalizadas segundo as regras da Igreja: 
"Para celebrar os matrimônios parece que os jesuítas tinham tempo determinado, que era depois da Quaresma (¹). Então se mandava vir a lista dos moços e moças, viúvos e viúvas do povo em estado de casar, e os chamavam à porta da igreja. Indagavam deles se tinham tratado casamento, e aqueles que não tinham tratado, que eram todos ou quase todos, aí mesmo se lhes fazia escolher mulher, ou os padres mesmo as indicavam, e tratando logo de cumprir os pregões, os casavam todos em um dia, que pelo costume era o domingo antes da missa paroquial, para que se fizessem com maior solenidade. [...]." (²)
A partir daí, não era grande a mudança na vida dos recém-casados:
"[...] Os recém-casados passavam à jurisdição do seu chefe competente [...]; os homens trabalhavam do seu ofício se o tinham; se não, seguiam os trabalhos da comunidade (³), e as mulheres recebiam tarefas (⁴), e se ocupavam como as outras nos serviços da comunidade." (⁵). 
Não havia, portanto, muito espaço para devaneios românticos nesses casamentos. Era característica essencial da catequese jesuítica que os neófitos abandonassem todas as práticas que parecessem contrárias àquelas que os padres idealizavam para as comunidades em formação, daí a insistência no controle de todos os aspectos da vida. O casamento era apenas um deles, mas, nem de longe, o menos importante, particularmente quando a intenção era suprimir qualquer vestígio de poligamia.

(1) No tempo em que as reduções jesuíticas existiam, a Quaresma era celebrada com todo o rigor, e, portanto, expressões festivas ligadas a casamentos não eram toleradas. 
(2) GAY, João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay. Rio de Janeiro: Typ. de Domingos Luiz dos Santos, 1863, pp. 211 e 212.
(3) Geralmente trabalho na agricultura.
(4) Fiar algodão, por exemplo.
(5). GAY, João Pedro. Op. cit., p. 212.


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quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Mercadores no Brasil Colonial

Esta postagem é para quem acha que só senhores de engenho é que enriqueciam no Brasil Colonial. Não, eles não eram os únicos endinheirados (¹). Mercadores, ligados de alguma forma à economia açucareira, também se saíam muito bem, com a vantagem de que, graças à atividade que exerciam, ainda conseguiam juntar dinheiro amoedado, coisa rara no Brasil da época.
Mas, indo direto ao assunto, havia, como regra geral, dois tipos principais de mercadores, os que compravam e vendiam em comércio internacional e os que abriam lojas nas povoações maiores. Disso sabemos pelo que se lê em Diálogos das Grandezas do Brasil (²), obra escrita no começo do Século XVII. Primeiro, vejamos o caso dos mercadores que faziam comércio em larga escala:
"Muitos homens têm adquirido grande quantidade de dinheiro amoedado e de fazenda no Brasil, posto que os que mais se avantajam nela são os mercadores que vêm do Reino para esse efeito, os quais comerciam por dois modos, de que um deles é que vêm de ida por vinda, e assim depois de venderem as suas mercadorias fazem o seu emprego em açúcares, algodões e ainda âmbar muito bom e gris, e se tornam para o Reino nas mesmas naus em que vieram ou noutras. [...]" (³)
Agora, o segundo tipo de mercadores, aqueles que se estabeleciam no Brasil para atender à procura por artigos de luxo entre a elite colonial:
"[...] O segundo modo de mercadores são os que estão assistentes na terra com loja aberta, colmadas de mercadorias de muito preço, como são toda sorte de louçaria, sedas riquíssimas, panos finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gasta em grande cópia na terra, com deixar grande proveito aos mercadores que os vendem." (⁴) 
Talvez, prudentemente, devamos admitir algum exagero por parte do autor dos Diálogos, mas sabe-se que em Pernambuco e na Bahia a gente próspera fazia questão de ostentar a riqueza que tinha, sempre que havia oportunidade para isso. 
Além desses dois grupos principais, havia um terceiro grupo de mercadores, que fazia comércio em menor escala, tendo por costume a prática de preços elevadíssimos. As vendas ocorriam, não em lojas estabelecidas, mas indo o mercador aos lugares no interior em que houvesse gente interessada em comprar, e não é difícil imaginar a brusca mudança na rotina da casa-grande de um engenho quando um desses mascates fazia súbita aparição. Lê-se, ainda em Diálogos das Grandezas do Brasil:
"Há muitas pessoas que vivem somente como se fossem riquíssimas, comprando estas fazendas (⁵) aos mercadores assistentes nas vilas ou cidades, e tornando a vender pelos engenhos e fazendas (⁶) que estão dali distantes, ganhando muitas vezes nelas mais de cem por cento. [...]" (⁷) 
Portanto, se estavam dispostos a pagar, os senhores de engenho não tinham motivo para queixa quanto aos preços aberrantes praticados pelos mascates. Concordam, leitores?

(1) Ainda que dinheiro amoedado, mesmo, houvesse muito pouco em circulação, e, pelo que se lê no texto acima, é fácil deduzir pelo menos uma das razões para essa carência.
(2) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(3) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 170.
(4) Ibid. 
(5) Neste caso a expressão se refere a mercadorias em geral, e não a grandes extensões de terra.
(6) Propriedades agrícolas.
(7) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Op. cit., p. 171.


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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Quatro ventos

Vocês, leitores, já devem ter ouvido dizer, alguma vez, que alguém espalhou notícias (ou fofocas) "aos quatro ventos". Isso não quer dizer, apenas, que as notícias foram espalhadas com a velocidade do vento. A expressão, de fato, é recorrente em escritos da Antiguidade, quando se imaginava que o mundo fosse dividido em quatro regiões distintas e que, a cada uma delas, corresponderia um vento.
Plínio (¹), almirante romano e um dos maiores estudiosos da natureza na Antiguidade, afirmou: "Os antigos assinalavam a existência de quatro ventos ao todo, correspondentes aos quatro quadrantes do mundo [...]." (²)
Marujo experiente, Plínio devia saber muito bem como eram os ventos que ocorriam em seu tão conhecido "lago romano", o Mediterrâneo. Deve-se entender, portanto, que o próprio Plínio via a referência aos quatro ventos como uma expressão que designava a totalidade do mundo - o "mundo habitado", como então se dizia.

(1) 23 - 79 d.C. Trata-se, aqui, de Plínio, o Velho.
(2) Naturalis historia, Livro II. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Proibição da pesca com timbó em época de desova de peixes no Século XVII

Mesmo em áreas em que a pesca é permitida no Brasil, há certa época do ano em que essa permissão é suspensa, para garantir a reprodução dos peixes. Em consequência, não são de todo incomuns as notícias de apreensão de material de pesca usado na hora errada por alguns teimosos. É medida correta, não há dúvida, e não apenas por preocupações ecológicas: prudentemente, e no interesse dos próprios pescadores, assegura-se que, mais adiante no ano, os peixes continuem a existir. 
Mas voltemos a 1626, para saber como a Câmara da vila de São Paulo lidava com a mesma questão. A ata é de 23 de maio, e nela encontramos este trecho muito interessante:
"[...] se ajuntaram em câmara os oficiais dela [...] e estando todos juntos puseram em prática as coisas do bem comum e pelo procurador foi dito que requeria a eles ditos oficiais mandassem por um quartel que nenhuma pessoa use de timbó (¹) nem ponha tresmalho (²) em tempo que o peixe sai a desovar, o que visto pelos ditos oficiais foi mandado que se pusesse quartel do acima dito, com pena de mil réis e dos tresmalhos perdidos [...]." (³)
A proclamação pública era necessária porque, nesse tempo, não havia jornal impresso à disposição de moradores e camaristas; os leitores que sabem quanto paulistas do Século XVII eram persistentes em ignorar as leis em vigor não terão dificuldade em compreender que a imposição de multa era indispensável para dar força ao mandado, particularmente naquela época em que dinheiro amoedado era muito raro no Brasil. O fato de ainda viverem hoje os descendentes dos peixes do Século XVII é prova de que a medida foi, em algum grau, obedecida. 

(1) De origem vegetal, o timbó era usado para deixar os peixes lentos e facilitar a pesca.
(2) Espécie de rede tripla usada na pesca. 
(3) O trecho citado da Ata da Câmara de São Paulo foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Como colonizadores podiam enriquecer no Brasil

Muitos colonizadores que vieram ao Brasil nos Séculos XVI e XVII apenas pensavam em enriquecer e voltar ao Reino tão rápido quanto possível. Pelas acusações vindas de alguns autores seus contemporâneos, sabe-se que tal gente não tinha qualquer cuidado em preservar o que havia nas terras coloniais, e muito menos em construir algo sólido que pudesse, de fato, ser fundamento para as gerações futuras. 
Mas como, afinal, era possível enriquecer no Brasil desse tempo já distante?
De acordo com o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil (¹), havia pelo menos seis ramos de atividade que favoreciam o enriquecimento, dentre os quais o mais notável era, sem dúvida, a "lavoura dos açúcares":
"{...] digo que as riquezas do Brasil consistem em seis coisas, com as quais seus povoadores se fazem ricos, que são estas: a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira o pau a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados." (²)
Embora o próprio Ambrósio Fernandes Brandão, autor presumível dos Diálogos, fosse um dos que criticavam a conduta predatória dos colonizadores - ele conhecia apenas algumas Capitanias do Norte e, por isso, não tinha muito a dizer sobre as do Sul, como a de São Vicente, por exemplo - pode-se objetar que algumas atividades econômicas por ele listadas não se prestavam a uma produção rápida para breve retorno ao Reino. Era o caso, por exemplo, daqueles que investiam capital considerável na implantação de um engenho açucareiro, que somente chegava a dar lucro depois de alguns anos em funcionamento. Não obstante, houve proprietários de engenho que acabaram deixando alguém, parente ou contratado, para cuidar do empreendimento, possibilitando-lhes, assim, a volta a Portugal, onde cuidavam em negociar o melhor que podiam a produção distante, desfrutando a riqueza dela proveniente. Não era o caso dos lavradores que se dedicavam ao cultivo de mantimentos, cuja produção, prioritariamente, atendia às necessidades locais, e nem de leve oferecia o mesmo lucro e o mesmo status social que se podia obter com a produção açucareira, ao menos em sua fase de maior rendimento. Dos mercadores falaremos outro dia. 

(1) Autoria atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil, Diálogo Terceiro. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 155.


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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Jogos Agonais

Os romanos atribuíam a Numa Pompílio, o lendário segundo rei de Roma e homem de sabedoria notável, a criação dos Jogos Agonais, que deveriam ser celebrados em honra de Jano (¹) três vezes a cada ano, ou seja, nos meses de janeiro, maio e dezembro.
Ora, alguém perguntará, para que tantos jogos? 
No dizer de Floro, contemporâneo do imperador Adriano, Numa Pompílio "soube dominar aquele povo feroz [os romanos], no qual imperavam a vilania e a injúria, de modo que a religião e a justiça passaram a governar" (²). Que bela descrição da gente romana dos primeiros tempos da cidade!... A instituição dos jogos, portanto, deve ser entendida nesse cenário tão brilhante: O sábio rei pretendia que os turbulentos romanos, pondo de lado a mania de brigar entre si, gastassem as energias em jogos que teriam, ainda, um segundo proveito, como exercício para o combate, caso Roma tivesse de enfrentar alguma guerra. Como se sabe, isso aconteceu com bastante frequência.
Supõe-se que os Jogos Agonais, seriam, remotamente, a origem dos espetáculos de gladiadores que, mais tarde, vieram a ser uma das diversões favoritas em Roma. Mas há uma diferença notável, que nunca deveria ser esquecida: os jogos de Numa seriam destinados a homens livres, que serviam como soldados em defesa da cidade. Gladiadores, contudo, eram, em esmagadora maioria, escravos, que lutavam até a morte para proporcionar um entretenimento brutal aos romanos que, desocupados, apenas esperavam, do Estado, pão e circo. Mudanças vêm com o passar do tempo, meus leitores, e nem sempre tornam o mundo melhor. 

Gladiadores romanos, de acordo com desenho em uma parede em Pompeia (³)

(1) Um dos deuses menores de Roma, representado tradicionalmente com duas faces, olhando em direções opostas. 
(2) Aneu Floro, Rerum Romanarum. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(3) Cf. SAMPSON, Henry.  A History of Advertising. London: Chatto and Windus, 1874.


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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Caixas para a exportação de açúcar

Os senhores de engenho frequentaram, durante bastante tempo, o topo da pirâmide social no Brasil, mas não foram os únicos a lucrar com a produção e exportação de açúcar. Havia uma série de outras atividades, relacionadas à produção açucareira, que podiam ser bastante lucrativas. Dentre elas, estavam o cultivo de cana-de-açúcar, empreendido pelos chamados "lavradores" que vendiam a safra para algum engenho, a construção de barcos destinados ao transporte fluvial do açúcar até os portos e a fabricação de caixas, nas quais o açúcar era acondicionado para exportação. Sobre essa última atividade, os Diálogos das Grandezas do Brasil (¹) nos informam que:
  • Havia gente especializada em vender as ditas caixas aos senhores de engenho;
  • As caixas eram fabricadas mediante trabalho escravo;
  • A madeira usada para as caixas devia ser mole e fácil de cortar.
Vejamos, então, o que diz o Diálogo Terceiro, quando Alviano interroga Brandônio:
"E os próprios moradores são porventura os que lavram e serram essas madeiras?" (²)
A resposta de Brandônio é bastante reveladora sobre as condições sociais no Brasil do começo do Século XVII:
"Não, porque a gente do Brasil é mais afidalgada do que imaginais; antes a fazem serrar por seus escravos, e há homem que faz serrar em cada ano mil e dois mil caixões de açúcar, que vendem aos senhores de engenho [...]." (³)
Volta a falar Alviano:
"E de que paus se lavram essas madeiras para caixões?" (⁴) 
Brandônio explica:
"Os caixões se fazem de [...] mongubas, buraremas, visgueiro, pau-de-gamela, e um pau que chamam de-alho, e outro branco; e dos tais há diversas castas, porque para caixões se busca madeira mole, por ser mais fácil de serrar." (⁵)
Não era, portanto, apenas na lavoura de cana-de-açúcar ou nas moendas e demais instalações dos engenhos que o sangue e o suor dos escravos faziam funcionar a economia colonial. Também no manejo das serras para corte das árvores e fabricação das caixas, bem como em muitas outras tarefas, era a força de trabalho dos cativos, quer indígenas, quer de origem africana, que, em grande parte, ainda que não exclusivamente, movia a máquina colonial, da qual resultaria o Brasil que hoje conhecemos.

(1) A autoria é atribuída, com razoável probabilidade, a Ambrósio Fernandes Brandão, que teria escrito os Diálogos no começo do Século XVII.
(2) BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, p. 186.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) Ibid.


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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Paraty


Uma publicação do Século XIX, o
Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854, descreveu assim a cidade de Paraty, que durante algum tempo, no Século XVIII, teve grande importância na rota de exportação do ouro que se extraía das Minas Gerais e era enviado a Portugal:
"Acha-se situada em um lugar aprazível e pitoresco [...]. Há 9 ruas que correm do nascente para o poente, que são as seguintes: da Capela, Cadeia, Rosário, Direita, Rocio, Lapa, Nova da Lapa, Santa Rita, Couto; e 6 do Noroeste para o Sul, que são: Fresca, Praia, Mercado, Matriz, Comércio, Craguatá; 4 praças: Municipal, Mercado, Rocio, Pedreira, onde se acha colocado um elegante chafariz de mármore [...]. As casas [...] excedem a 1.200, sendo uma grande parte de sobrado. [...] Há 4 igrejas, a Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, as Capelas de Santa Rita, de Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora das Dores; um hospital de Misericórdia, um teatrinho dramático de uma associação particular e uma sociedade de baile em casa própria." (*)
Há tempos, fiz algumas fotos dessa bela cidade, com seu rico legado arquitetônico colonial. Vejam, meus leitores e, quando puderem, visitem.

Rua colonial com uma curiosa passagem pra uso na maré alta:


Placas de identificação de ruas e de uma praça, o Largo da Pedreira:





Ruas com casario colonial:





Chafariz de mármore:



Igrejas:





Finalmente, uma recordação do tempo em que um conjunto de fortalezas defendia Paraty contra um eventual ataque de invasores ou ladrões do mar:


(*) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854.


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