quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Argumentos para trazer missionários jesuítas ao Brasil no Século XVI

Houve, no Século XVI, alguns casos de jesuítas que, estando muito doentes em Portugal, decidiram vir ao Brasil, acreditando que gastariam bem seus últimos dias sobre a terra se estivessem ocupados na catequese de indígenas. Ocorre que, ao chegarem ao Continente Americano, não só recuperaram a saúde, como ainda viveram largos anos, estimando-se que a mudança de ares fora a causa desse (quase) milagre. A despeito dos riscos inerentes à travessia do Atlântico, a vinda ao Brasil passou a ser vista como uma possibilidade de melhora na saúde dos padres que, vivendo no Reino, não encontravam alívio nos tratamentos a que eram submetidos. Convenhamos: a medicina da época não ajudava muito.
Mesmo assim, era reduzido o número de missionários envolvidos na catequese de indígenas e no ensino dos meninos, filhos de portugueses, e, por essa razão, os jesuítas encarregados da redação de cartas para seus irmãos de Ordem, viviam citando as palavras de Jesus nos Evangelhos, de que a seara era mesmo grande, mas eram poucos os trabalhadores (¹). Era preciso pedir mais gente para tanto trabalho. 
Que argumentos mais poderiam ser úteis para encorajar candidatos a missionários? Uma carta escrita na Bahia em setembro de 1560 pelo padre Rui Pereira, destinada aos jesuítas que viviam em Portugal, nos dá, indiretamente, algumas pistas de quais poderiam ser os pretextos para não vir - comida diferente, desconforto da vida no Brasil, etc. - e como poderiam ser refutados. Vejamos, primeiro, a questão da alimentação:
"[...] Se em Portugal há galinhas (²), cá as há muitas e mui baratas; se tem carneiros, cá há tantos animais que caçam nos matos e de tão boa carne, que me rio muito de Portugal em essa parte. Se tem vinho, há tantas águas que a olhos vistos me acho melhor com elas que com os vinhos de lá; se tem pão, cá o tive eu por vezes e fresco, e como antes dos mantimentos da terra que dele. E está claro ser mais sã a farinha da terra (³) , que o pão de lá; pois as frutas coma quem quiser as de lá, das quais cá temos muitas, que eu só as de cá me quero. [...]" (⁴) 
Mas quem quereria trocar as horas de sono em uma cama confortável, por uma rede, como aquelas em que dormiam os indígenas, fosse no mato ou em alguma povoação de colonizadores? Responde o padre Rui Pereira:
"[...] Dir-me-ão que vida pode ter um homem dormindo em uma rede pendurado no ar, que é isso cá tão grande coisa que tenho eu cama de colchões, aconselhando-me o médico que dormisse na rede, e achei tal, que nunca mais pude ver cama, nem descansar noite que nela dormisse, em comparação do descanso que nas redes acho. Outros terão outros pareceres, mas a experiência me constrange a ser dessa opinião." (⁵)
O jesuíta Rui Pereira argumentava com base em suas preferências. Talvez fosse um exemplo notável de aculturação ou, pelo menos, de adaptação às possiblidades em terra de missões. Argumentos como os seus, contudo, podem ter influenciado aqueles que, indecisos, vacilavam em "passar ao Brasil". Independentemente do que se pense do modo como aconteceu a catequese de indígenas, ser missionário no Século XVI não era para qualquer um.

(1) Cf. Evangelium Secundum Mattheum, 9. 37, 38 - "[...] messis quidem multa operarii autem pauci / rogate ergo dominum messis ut eiciat operarios in messem suam"; Secumdum Lucam 10. 2 - "messis quidem multa operari autem pauci rogate ergo Dominum messis ut mittat operarios im messem"
(2) A carne de galinha era vista, na época, como um alimento favorável aos enfermos. 
(3 Farinha de mandioca.
(4) Cf. LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro, tomo VI. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1835, p. 153.
(5) Ibid., p. 154.


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