quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Dias de folga para os escravos

Senhores deviam, obrigatoriamente, dispensar os escravos do trabalho aos domingos e dias que, segundo a Igreja, eram considerados "santos" (¹). Ao menos nos tempos coloniais, a obrigatoriedade ficava apenas no papel. Não que houvesse muita preocupação em dar descanso aos escravos - a ideia, formalmente, é que as folgas servissem para práticas religiosas. Entretanto, colonizadores do Brasil, como regra geral, só eram muito devotos na aparênciaNo Compêndio Narrativo do Peregrino da América (²) encontramos um incidente (fictício, ao que parece, mas verossímil), que ilustra muito bem a questão de que estamos tratando:
"[...] Avistei doze escravos, entre machos e fêmeas, todos trabalhando em uma lavoura, na ocupação de cavar. Cheguei, saudei-os e lhes perguntei se era dia santo, ao que me responderam que bem sabiam que não era dia de trabalho, porém que seu senhor os mandara para aquele serviço, e lhes dizia que se comiam naqueles dias, também haviam de trabalhar; e se algum o repugnava fazer, o castigava, e porque eram cativos, não queriam experimentar maior rigor, por serem pretos, pobres, humildes e desamparados por sua grande miséria [sic]." (³)
Deixando de lado o conselho dado aos escravos pelo Peregrino da América, de que parassem de trabalhar, ainda que sob o chicote do feitor ou do senhor, porque isso lhes daria maior mérito diante de Deus (!!!), passemos da literatura para casos concretos, preservados no registro de confissões feitas durante a  Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Por esses registros é fácil verificar que deixar de dar folga aos escravos nas ocasiões estipuladas pela Igreja era hábito corrente entre os senhores de engenho. Em 23 de janeiro de 1592, Antônio de Meira, do Recôncavo, "confessou que as negras de sua casa, cristãs Margarida e Antônia, brasílias, (⁴) alguns domingos e dias santos trabalham fiando e fazendo anastros, não lho estorvando ele" (⁵). Seria mais honesto, talvez, se admitisse que não era por vontade própria que as escravas trabalhavam, sendo, antes, obrigadas a isso.
Outro, também do Recôncavo, que apareceu diante do inquisidor para confissão, foi João Remirão, senhor de engenho, que "confessou que haverá seis anos que reside e governa [...] seu engenho, e sempre em todos os domingos e [dias] santos, moendo o engenho depois do sol posto, mandou e consente mandarem seus feitores lançar a moer o engenho e carretar carradas de lenha e canas, e fazer o mais serviço pertencente à moenda nos ditos domingos e [dias] santos, como se foram dias de semana, e também nos ditos domingos e [dias] santos, ainda pelas manhãs ante missa, manda carretar carradas de açúcar ao porto, e isto mesmo de moer e carretar nos ditos dias vê ele que usam e costumam geralmente nesta capitania todos os senhores e feitores de engenhos, sem exceção, e também muitos lavradores" (⁶).
Fica evidente, portanto, um conflito de interesses: de um lado a Igreja, através de seu representante, o inquisidor, insiste em disciplinar a vida quotidiana na Colônia, sob as mesmas normas que regem a conduta de quem vive no Reino; de outra parte, a exploração colonial, cuja lucratividade, que tanto interessa à Metrópole, não tolera suscetibilidades religiosas, que se entremetam na rotina de um engenho, no qual qualquer interrupção do trabalho resulta em redução nos ganhos. Não é difícil imaginar que, tão pronto a Inquisição virou as costas, tudo voltou a ser como sempre fora nos engenhos, ainda que, por medo ou respeito, alguma mudança, apenas temporária, tenha se efetuado, enquanto a incômoda Visitação não se punha a caminho.
Mais uma confissão, apenas para confirmar tudo o que já foi dito. Outro senhor de engenho, Nuno Fernandes, que se declarou cristão-novo, compareceu diante do visitador em 9 de fevereiro de 1592, e disse que, à semelhança de muitos outros, também mandava os escravos ao trabalho, sem qualquer interrupção nas tarefas: "manda também aos domingos e [dias] santos trabalhar aos seus a cortar embira para atar a cana e a carregar a barca, nos tempos de necessidade, porque vê que assim o costumam fazer geralmente nesta terra" (⁷). A responsabilidade era posta sobre o coletivo, enquanto o indivíduo tentava se safar.
Com o passar do tempo, os costumes, para bem ou para mal, sofreram mudanças. Sabe-se que em áreas de mineração era comum que fosse atribuída uma tarefa aos escravos que, se cumprida com antecedência, possibilitava algum tempo livre. Além disso, a mineração levou à formação de uma sociedade urbana, na qual a vida diária passava por maior vigilância. Escravos ainda eram escravos, mas podiam ter suas próprias confrarias e, em consequência, igrejas e capelas também próprias. Quanto aos que eram escravos em fazendas no Século XIX, particularmente nas Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, tornou-se um hábito respeitar "religiosamente" a folga semanal dos escravos aos domingos. O motivo é que nada tinha de piedoso: neste dia os escravos trabalhavam "livremente" em pequenos lotes, nos quais cultivavam gêneros alimentícios para consumo próprio e, em caso de excedente, para venda. Esses magros recursos eram, quase sempre, usados na compra de alguma peça de vestuário. Tudo muito interessante para os senhores, é claro.

(1) Como era o caso da Sexta-feira Santa e do Natal, por exemplo.
(2) Um clássico da literatura colonial, mesmo que pareça estranho haver tal coisa em um país em que quase toda a população era formada por analfabetos convictos.
(3) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 151.
(4) Neste caso, a palavra "negras" é usada como sinônimo de escravas, visto que as pessoas mencionadas são descritas como "brasílias", ou seja, indígenas.
(5) MENDONÇA, Heitor Furtado de. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. São Paulo: _____, 1922, p. 154.
(6) Ibid., p. 190.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Papiros sagrados

Para os antigos egípcios, o papiro era uma
planta sagrada
Papiros (Cyperus papyrus) forneceram, como se sabe, a matéria-prima para um dos mais importantes suportes de escrita da Antiguidade, que, por essa razão, foi também chamado papiro. Os egípcios desenvolveram a técnica de prensagem das fibras de papiro, obtendo assim um material em que podiam escrever, e fizeram disso, também, um importante comércio. Desse modo, não só os egípcios usavam papiros para escrever, como também povos que viviam em regiões adjacentes e o importavam.
Há, porém, sobre o papiro, um fato tão curioso quanto interessante, que talvez não seja muito conhecido: para os antigos egípcios, todo e qualquer objeto feito de papiro (e não apenas o "papel") era considerado sagrado. Por quê?
A resposta vem da mitologia. Ísis, à procura do corpo de Osíris (que fora morto pelo irmão perverso, cuja intenção era usurpar o governo de Tebas), construiu uma embarcação usando papiros das margens do Nilo, e com tão útil meio de transporte pôde seguir viagem, na qual experimentou muitas aventuras. Por ter servido nobremente à deusa é que desde então - diziam os egípcios - o papiro se tornara uma planta sagrada. Ora, leitores, sagrada ou não, prestou bons serviços à humanidade. Que seria de muitas bibliotecas expressivas do passado se não fossem os papiros?


quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O costume de abençoar as monções que percorriam o Tietê no Século XVIII

Este monumento assinala o local
aproximado de onde
partiam as monções do Século XVIII
Foi em 22 de junho de 1826, ao sair a Expedição Langsdorff de Porto Feliz, que o desenhista francês Hércules Florence registrou: "[...] dirigimo-nos para o porto, onde achamos o vigário paramentado com suas vestes sacerdotais, a fim de abençoar a viagem, como é costume, e rodeado de grande número de pessoas que viera assistir ao nosso embarque." (¹)
O "costume" a que Hércules Florence fez referência, de abençoar as expedições que partiam de Araraitaguaba (Porto Feliz - SP), datava do tempo das monções cuiabanas. Corria, então, o Século XVIII, e, de acordo com Affonso de E. Taunay, a fórmula usual da benção era esta, na qual o sacerdote invocava para os monçoeiros e embarcações que viajariam pelo Tietê a mesma proteção concedida pela mão direita de Deus à arca de Noé, durante o dilúvio, e a São Pedro, quando andara sobre o mar: 
"Propitiare, Domine, suplicationibus nostris et benedic navem istam dextera tua sancta et omnes, qui in ea vehentum fiant dignitatus es benedicere arcam Noe ambulantem in diluvio. 
Porrige eis, Domine, dexteram tuam, sicut porrexisti Beato Petro ambulanti supra mare.
Qui vivis er regnas in secula seculorum" (²)
Havia ainda, na época da Expedição Langsdorff, algum movimento de viajantes que seguiam rumo ao interior do Brasil pelo rio Tietê, em expedições militares ou em algumas poucas expedições comerciais. A febre do ouro do Cuiabá já era, porém, coisa do passado. 
Ressalvadas as proporções, o ritual de partida das monções cuiabanas guardava semelhanças com o cerimonial religioso que assinalara a partida das grandes expedições marítimas portuguesas que, nos Séculos XV e XVI, haviam alcançado as Índias e outras terras. "Os aventureiros, que se atiram aos mares", escreveu Teófilo Braga, "desconhecendo as terras em que hão de aferrar, [...], saem em procissão, acompanhados dos sacerdotes que salmeiam invocando o céu, preparando-os para a viagem donde talvez não mais voltarão [...]" (³). 
Nas monções não havia as grandes tempestades oceânicas, mas havia, a cada passo, a fúria traiçoeira dos rios a enfrentar, além das doenças tropicais, do confronto com indígenas, fome e sede, mesmo que os expedicionários estivessem rodeados por água, porém imprópria para consumo humano. Em ambos os casos havia a fadiga, o medo do desconhecido, a vindicação da honra pessoal, a busca por riquezas e, mais ou menos intensamente, algum ideal religioso, de que se levaria a fé até paragens ainda não alcançadas.
Na partida de Portugal havia, por suposto, mais pompa, com a presença de figuras eclesiásticas notáveis, e até, eventualmente, do próprio monarca reinante; à margem do Tietê, o cerimonial era forçosamente singelo, com a benção aos navegantes que haviam já ouvido missa. Não se poderia esperar mais em povoação tão pequenina, no interior de uma capitania em grande parte ainda por explorar.

(1) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 20.
(2) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, p. 54.
(3) BRAGA, Teófilo. Estudos da Idade Média. Porto, Braga: Livraria Internacional, 1870, p. 125.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Uma propriedade agrícola ideal nos velhos tempos de Roma

Como deveria ser uma propriedade agrícola ideal, por volta do Século II a.C.? A resposta pode ser encontrada nas palavras de Marco Pórcio Catão (¹), também conhecido como "o censor", em sua obra De agri cultura (²):
"Esforça-te por encontrar um lugar de clima favorável, no qual as tempestades devastadoras não sejam frequentes, e em que o solo seja bom por natureza. Tanto quanto possível, tua fazenda deverá estar no sopé de uma montanha (³), voltada para o Sul, em terreno salubre, com fartura de trabalhadores e animais, com água de boa qualidade e perto de uma cidade populosa, ou do mar, ou ainda de um rio navegável, ou nas proximidades de uma estrada movimentada." (⁴)
Pressupondo a compra de uma fazenda já estabelecida, e não de terras virgens em que tudo estivesse por fazer, este pequeno texto faz revelações interessantes sobre a vida nos velhos tempos de Roma. Vejamos:
1. Se nós, no Século XXI, estamos longe de controlar o humor das condições climáticas, muito maiores eram as preocupações daqueles que, como Catão, viviam entre os Séculos III e II a.C.; portanto, seria bom procurar um lugar em que as tempestades não fossem usuais, já que meteorologia, como hoje a entendemos, era coisa inexistente, ainda que, desde dias remotos, houvesse quem, mediante observação e estudo, tentasse encontrar alguma lógica no caos aparente que dominava as estações, a temperatura ambiente, a pluviosidade e outros fenômenos correlatos - embora o usual fosse atribuir tudo isso à boa ou má vontade dos deuses.
2. Ainda que os antigos já conhecessem métodos para melhorar o solo, o lucro viria mais rápido se a terra fosse de boa qualidade, longe de áreas pantanosas que, naqueles tempos como hoje, eram habitação de insetos transmissores de doenças. Não se sabia ainda muita coisa sobre isso, mas havia, já, a consciência de que alguns lugares favoreciam a propagação de enfermidades.
3. Povos da Antiguidade conheciam alguns equipamentos agrícolas, porém a maior parte do trabalho dependia da força muscular de homens, muitas vezes escravizados (⁵), e de animais de carga, daí a importância de adquirir uma fazenda que, de antemão, tivesse uma provisão respeitável de trabalhadores, humanos e não humanos.
4. Um suprimento confiável de água era (e continua a ser) condição necessária à agricultura. Não é surpresa, pois, que muitas comunidades da Antiguidade tenham nascido justamente nas imediações de rios.
5. Finalmente, Marco Pórcio Catão deixa claro que tinha conhecimento da necessidade de um mercado consumidor para tudo o que uma propriedade agrícola produzisse. Sua fazenda ideal era destinada a dar lucro, e não à recreação do proprietário e de sua família. Portanto, ou a produção seria vendida em alguma cidade populosa nas imediações, ou seria o caso de comprar terras que permitissem escoar o que se produzia através dos meios de transporte da época, fossem eles terrestres, marítimos ou fluviais, daí a menção à necessidade de estar perto do mar ou de um rio, ou talvez de uma estrada importante. Levando em conta as condições do litoral da Península Itálica, é provável que Catão considerasse a possibilidade de fazer a produção chegar, mediante navegação de cabotagem, até centros populosos não muito distantes. Não havia, na época, métodos eficientes de conservação de alimentos frescos que permitissem seu transporte para áreas remotas, daí a relevância da produção local para o abastecimento de uma comunidade.
Vejam, leitores: a análise desse breve trecho da obra de Catão deixa claro que, já em seus dias, havia uma variedade de fatores envolvidos na aquisição de terras para a lavoura. A sociedade romana, com as correspondentes exigências econômicas, estava a tornar-se mais e mais complexa, e isso requeria de qualquer candidato a fazendeiro alguns conhecimentos que poderiam fazer a diferença entre o fracasso e o sucesso de um empreendimento. Foi nesse sentido que Catão julgou ser útil a Roma, registrando seus conselhos de forma escrita.

(1) 234 - 149 a.C.
(2) Também conhecida como De re Rustica. Preferi, aqui, De agri cultura, para evitar confusão com a obra posterior de Columela (Século I).
(3) Se Catão houvesse vivido uns dois séculos mais tarde, talvez acrescentasse uma observação no sentido de evitar a proximidade de vulcões, a despeito das aparentes vantagens que tal localização pudesse oferecer.
(4) O trecho citado de De agri cultura foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) O afluxo de prisioneiros de guerra, em consequência do sucesso de Roma nas campanhas militares, tornou habitual o emprego de mão de obra escrava; Marco Pórcio Catão foi um contemporâneo desse fenômeno. 


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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Obstáculos à catequese de indígenas, de acordo com José de Anchieta

Não foi o desconhecimento da língua falada pelos indígenas a maior dificuldade enfrentada pelos missionários que, desde meados do Século XVI, vieram ao Brasil no interesse de desenvolver um projeto de catequese. Nos colégios jesuítas estabelecidos na América portuguesa era obrigatório o estudo do "grego da terra", como jocosamente se referiam à língua predominante na costa do Brasil, e, não muito mais tarde, já havia até gramática pela qual orientar a instrução dos religiosos. Com base em um documento datado de 1584 (¹) e atribuído a Anchieta (²), pode-se afirmar que, sob a ótica dos jesuítas, os maiores obstáculos à catequese eram de outra natureza, e poderiam ser assim resumidos:
  • Prática da poligamia por indígenas;
  • Apreço pelo "vinho" (principalmente pela bebida fermentada de caju, cujo uso o próprio Anchieta reconhecia ser preferível moderar que tentar abolir);
  • Guerras frequentes por questão de honra, seguidas, não raro, de antropofagia;
  • Inconstância, já que ameríndios pareciam aceitar prontamente as ideias propostas pelos missionários, porém, mais tarde, abandonavam-nas com idêntica facilidade (³);
  • Falta de "temor e sujeição" (os missionários, incluindo Anchieta, achavam que a catequese poderia ser facilitada, se imposta pelas autoridades coloniais, que obrigassem, por exemplo, ao aldeamento dos indígenas em comunidades subordinadas aos padres).
Qual destes itens corresponderia à maior dificuldade? Conforme Anchieta, nenhum deles; o problema mais grave não era nativo da América:
"Os maiores impedimentos nascem dos portugueses, e o primeiro é não haver neles zelo da salvação dos índios [...], antes os têm por selvagens e, ao que mostram, lhes pesa de ouvir dizer que sabem eles alguma coisa da lei de Deus [...]." (⁴)
A maioria dos colonizadores via nos índios apenas um vasto acervo de mão de obra gratuita, a cuja escravização mesmo as autoridades coloniais faziam vistas grossas, isso quando não estavam diretamente envolvidas no apresamento dos naturais da terra sob o pretexto de "guerras justas". A Companhia de Jesus, por seu turno, buscava implantar um modelo de catequese em que os ameríndios viveriam em comunidades sob a tutela dos padres. Perspectivas tão diferentes resultaram em cerca de dois séculos de confrontos.

(1) "Informação do Brasil e de Suas Capitanias". In: ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 333.
(2) Ele mesmo um notável missionário.
(3) É interessante que Anchieta não parecia considerar que a suposta inconstância podia ser, talvez, fruto de um choque cultural. Como regra, não era esse o modo de ver os fatos no Século XVI.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Por que animais eram cultuados no Egito Antigo

Deuses egípcios eram frequentemente representados com cabeça de animal e corpo humano. Toth (¹), por exemplo, tinha cabeça de íbis, Anubis tinha cabeça de chacal, Horus tinha cabeça de falcão e Hathor era, nem mais e nem menos, que a deusa de cabeça de vaca. Chama-se a isto antropozoomorfismo. Letras demais? Talvez, mas o significado é simples: representação de um deus ou deusa com corpo parcialmente humano e parcialmente animal. É só.
Horus, aqui representado
com cabeça de falcão (³)
A explicação mais plausível para tal fenômeno não é a de que todo e qualquer animal de determinadas espécies era considerado sagrado, e sim de que os deuses, que tinham a mania de bisbilhotar o que acontecia mundo afora, às vezes faziam visitas aos humanos disfarçados de animais. O resultado dessa ideia é que, não sabendo quando animais eram ou não a encarnação de alguma deidade, ficavam todos sob interdito, para evitar que, por tenebroso equívoco, alguém, pensando acertar em uma caça para o jantar, acabasse matando um deus. 
Para os animais envolvidos na questão, a vida podia ser muito boa. Paparicados por sacerdotes e respeitados pela gente comum, contavam ainda com a proteção de leis que puniam severamente quem atentasse contra eles. Heródoto, que esteve no Egito no Século V a.C., afirmou que, em certos casos, quem matasse um animal considerado sagrado pagava com a vida tamanha perfídia: "É grande infelicidade para um egípcio matar intencionalmente algum desses animais [sagrados], porque a pena para isso é a morte; os sacerdotes arbitram uma multa para quem mata um animal acidentalmente. Entretanto tirar a vida, deliberadamente ou não, de um íbis ou falcão, tem sempre como punição a pena capital." (²) 
O íbis, como já foi dito, poderia ser Toth, e, quanto ao falcão, como assegurar que não fosse Horus? Uma flechada, e lá iria o deus para o espaço - ou melhor, para além do poente, onde ficava o "país de paz perfeita", morada dos mortos bem-comportados. Matá-lo não seria, então, fazer-lhe um favor? Como muitas outras, essa mitologia tinha lá suas contradições.

(1) Buscando alguma uniformidade, adotei nesta postagem a grafia de maior aceitação internacionalmente. Em português também são usuais Tot, Anúbis, Hórus e Hator.
(2) HERÓDOTO. Histórias. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) BUDGE, E. A. Wallis. The Gods of The Egyptians vol. 1. London: Methuen & Co., 1904. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O que acontecia aos cães incômodos existentes na vila de São Paulo no Século XVI

Incidentes relacionados a maus-tratos contra animais têm alcançado forte repercussão nas últimas semanas. Afinal, sem falar a nossa língua, os bichos sofrem e, se ninguém falar por eles, malvados acabarão impunes. Embora haja leis relacionadas à proteção dos animais, um código específico seria muito útil. É hora de pensar no assunto. Além disso, não posso deixar de dizer que, em muitos casos, quem é rude no trato com um animalzinho também será capaz de maltratar qualquer pessoa em situação de fragilidade - crianças e idosos, por exemplo - se houver ocasião para isso. Mas, como este é um blog centrado em História, vamos ao passado, ao Século XVI, à pequena vila de São Paulo do Campo de Piratininga (¹), para que os leitores tenham uma ideia do tratamento que era, então, dispensado aos animais.
Aconteceu em 19 de julho de 1578. Vereadores, juiz, procurador - os "homens bons" da vila - se reuniram para deliberar quanto aos animais que andavam soltos dentro da povoação e adjacências, causando incômodo aos moradores e danos à lavoura e criação de gado. Não era, como percebem os leitores, nenhuma situação anômala para a época e lugar. Curiosa, mesmo, foi a decisão da Câmara, em cuja ata se registrou:
"[...] todo cão que se achar só no campo ou em pasto de gado andar e pegar ou matar bezerro, o dito dono do cão pela primeira [vez] pagará o dano que o dito cão fizer e será obrigado a ter o dito cão preso ou o botará fora da vila [sic!] e termo e não o fazendo, pela segunda [vez] pagará a perda em dobro e o dono do gado lhe poderá mandar matar o dito cão livremente [sic!!] e pagará o dono do cão cinco tostões para as  obras deste conselho [...]." (²)
Portanto, meus estimados leitores, dizendo sinteticamente, resolveu-se que:
a) O dono do cão incômodo estaria obrigado a pagar o dano feito ao rebanho alheio e, em caso de reincidência, além da indenização em dobro, seria multado;
b) A pessoa prejudicada ficaria livre para matar o cão reincidente.
Como já disse, corria o Século XVI. A decisão da Câmara, contudo, não se limitou a cães arruaceiros. Havia mais:
"[...] quem tiver porco ou porca que coma pintos ou galinhas [...] que ponha cobro nele ou nela, que não pondo cobro lha matarão livremente [sic!!!] e o farão saber a seu dono para que o aproveite [...]."
Neste caso, aquele morador cujo patrimônio avícola fora danificado tinha permissão para abater o suíno, mas não podia ficar com ele: precisava dar aviso ao proprietário que, se quisesse, podia ir buscar o animal falecido para seu próprio uso.
Deixando de lado o aspecto engraçado disso tudo, e já concluindo, quero sugerir aos leitores que, a partir do que foi dito, façam um exercício de imaginação e tentem visualizar o que era a vida em uma povoação no primeiro século da colonização. Tenham a certeza de que, ressalvadas as especificidades, o quotidiano de São Paulo se repetia em outras vilas que, a pouco e pouco, proliferavam no Brasil, primeiro junto ao mar e, mais tarde, também no interior, no rumo das expedições de apresamento de indígenas, da procura por metais preciosos, da expansão da agricultura e também da pecuária de corte.

(1) Origem da cidade de São Paulo - SP.
(2) Como é costume neste blog (com a finalidade de não enlouquecer os leitores), a ata citada foi transcrita em ortografia atual, com acréscimo da pontuação necessária.


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terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Como guaranis usavam o arco para lançar flechas

Félix de Azara, que liderou a Comissão de Limites Espanhola no Paraguai entre 1789 e 1801, teve oportunidade de observar o modo como os guaranis disparavam flechas. Ao informar que o arco por eles empregado tinha uso duplo, descreveu-o como "um bastão resistente, pouco flexível, liso, grosso no centro como uma mão fechada, mas diminuindo gradualmente em direção às extremidades, que são muito pontiagudas, de modo que podem servir de lança" (¹). Para encaixe das flechas que se pretendia lançar, cada arco era, por suposto, dotado de uma corda.
Europeus que estiveram no Continente Americano nos primeiros tempos da colonização notaram que indígenas se revelavam, como regra geral, extremamente habilidosos quando atiravam flechas. Essa capacidade não vinha do acaso: treinavam desde a infância, daí resultando, também, a força extraordinária que demonstravam para vergar um arco. Contudo, os guaranis tinham, de acordo com Azara, uma técnica específica, diferente da utilizada por vários outros povos indígenas: "Para atirar [...] encaixam um pouco na terra uma das extremidades do arco e, apoiando-o com o pé, dobram-no tanto quanto possível, e é sabido como estes selvagens [sic] sabem apontar e atirar." (²)
Embora a capacidade de lançar flechas com precisão fosse muito útil em caso de guerra, atirar bem era fator de sobrevivência, porquanto muitos ameríndios - não apenas os guaranis - faziam uso de arcos e flechas para a caça. Alguns povos usavam essas armas também para a pesca. Um bom arqueiro podia, assim, prover alimento para si mesmo e para seu grupo. Era daí que lhes vinha parte do sustento quotidiano.

(1) AZARA, Félix de Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 195.
(2) Ibid.  Os trechos citados de Viajes por la América del Sur, de Félix de Azara, foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Por que capitães do mato incentivavam a fuga de escravos

Capitães do mato (¹) tinham, entre outras obrigações, a tarefa de capturar escravos fugitivos, reconduzindo-os a seu(s) senhor(es). Cada vez que algum cativo escapulia, entravam em ação e, se tinham sucesso, ganhavam uma recompensa. Para aumentar a renda, faziam uso de expedientes tão corruptos quanto pérfidos. Aqui, leitores, veremos dois deles.

1. Capitães do mato incentivavam a fuga de escravos

De acordo com C. Schlichthorst, que esteve no Rio de Janeiro durante o Primeiro Reinado, por trás da "desaparição" de muitos escravos havia a trapaça dos capitães do mato, que, astutamente, incentivavam as fugas (²). Era fácil, depois, capturar aqueles que haviam fugido e, entregando-os aos respectivos proprietários, receber, por isso, a recompensa: 
"Como tal gente [os capitães do mato], na maioria também pretos ou de cor [sic], recebe pagamento por escravo apanhado e o dobro, em caso de reincidência, emprega todos os meios de sedução para aumentar o número de fujões. Numa cidade como o Rio de Janeiro, seu método raramente falha, e mais raro ainda é poder o fugitivo escapar, porque quase sempre aqueles mesmos que o induziram à fuga o tornam a capturar." (³)

2. Capitães do mato prendiam e escondiam escravos que não haviam fugido

Em linguagem bem direta: havia capitães do mato que sequestravam escravos que não haviam fugido, para, posteriormente, apresentando-os ao respectivo senhor, receber uma recompensa. Frederico L. C. Burlamaqui, um abolicionista, referiu-se às "especulações dos denominados capitães do mato, que fazem pagar avultadas quantias aos donos por escravos que eles mesmos têm prendido e escondido por muitos dias, a título de fugidos" (⁴).

(1) Também chamados "capitães de mato".
(2) Era nas vendas e tabernas, assim que anoitecia, que muitas fugas eram planejadas. Nesse cenário duplamente obscuro, capitães do mato mal-intencionados tinham amplo terreno para agir, incentivando a desaparição dos escravos que,depois iriam capturar.
(3) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 143.
(4) BURLAMAQUI, Frederico Leopoldo César. Memória Analítica Acerca do Comércio de Escravos e Acerca dos Males da Escravidão Doméstica. Rio de Janeiro: Tipografia Comercial Fluminense, 1837, p. 83.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

A primeira girafa vista em Roma

Talvez esta simpática criatura tenha orgulho de seu parentesco
com a primeira girafa vista em Roma

Tarefa para vocês, leitores: tentem descrever uma girafa para alguém que nunca tenha visto dito animal, nem mesmo em fotografia. Não é muito fácil, concordam? Plínio, o Velho (¹), grande escritor da Antiguidade, enfrentou esse desafio, ao informar, no Livro VIII de Naturalis historia, que a primeira girafa vista em Roma fora trazida à cidade nos dias de Júlio César:
Que tal, leitores? Acham que esta gravura
do Século XVI (⁵) faz justiça às girafas?
"Nabun é o nome dado pelos etíopes a um [animal] que tem pescoço semelhante ao do cavalo, pés e pernas de boi, cabeça de camelo e manchas claras no pelo avermelhado (²), pelo que é chamado camelopardo, e foi visto pela primeira vez em Roma durante os jogos circenses do ditador César (³)." (⁴)
Não demorou muito para que toda a cidade percebesse que a girafa era pacífica demais para protagonizar espetáculos de brutalidade à moda romana, em que figuravam lutas, tanto entre animais, apenas, como também entre homens e animais. Combates assim só terminavam, como regra, quando um dos contendores morria. Às vezes, para delírio da plateia, ambos davam o último suspiro, ali mesmo, na arena, sob os olhares e brados da multidão ensandecida. De acordo com Plínio, foi quando perceberam essa feliz inaptidão da bela herbívora das savanas africanas que os romanos deram à girafa um apelido: "Verificando-se que era notável mais pelo aspecto que pela ferocidade, foi também chamada "ovelha selvagem".

(1) 23 - 79 d.C.
(2) Não é exatamente assim, o que nos leva à conclusão de que, ou Plínio cometeu um pequeno engano, ou nunca viu uma girafa de perto.
(3) César foi ditador entre 49 e 44 a.C.
(4) Os trechos citados de Naturalis historia foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) GESNER, Conrad. Icones Animalium Quadrupedum Viviparorum et Oviparorum. Zürich: Christof Froshover, 1560, p. 42. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.



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