segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Lições de caligrafia

"Nos meios burocráticos, uma superioridade que nasce fora deles, que é feita e organizada com outros materiais que não os ofícios, a sabença de textos de regulamentos e a boa caligrafia, é recebida com a hostilidade de uma pequena inveja."                                                                      Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Um dia desses alguém me perguntou se eu achava que as crianças em idade escolar ainda deviam aprender a "fazer letra bonita", ou seja, se ainda seria necessário o ensino da caligrafia. Ora, senhores leitores, essa é uma questão interessante.
No passado, tudo o que se escrevia era feito manualmente, não interessando se a escrita era cuneiforme, hieroglífica ou outra qualquer. Nem mesmo importava se a mídia era um bloco de argila, papiro ou pergaminho. É certo que nesse contexto já remoto, saber escrever não era para qualquer um, constituindo-se, até, em algumas culturas, por si só em uma profissão, a dos respeitados escribas. "Letra bonita" era obrigação, portanto, para honrar o ofício.
Até hoje admiramos os belíssimos manuscritos medievais. Quanta paciência e técnica requeriam, não só para escrever, como para acrescentar preciosas iluminuras. Mas quantos erros, a maioria deles involuntários, não foram também passados à posteridade, quando cada livro precisava ser inteiramente copiado à mão!... Bastava a falha de um copista já cansado, depois de longas horas a escrever, escrever, temperadas com a sonolência de condições climáticas nem sempre favoráveis ou mesmo de iluminação algo precária, e quem viesse a fazer cópia daquele livro erroneamente transcrito, iria, por sua vez, perpetuar o erro, ainda que inadvertidamente. 
A propagação dos livros impressos, a partir da segunda metade do Século XV, favoreceu o estudo e mesmo a leitura como lazer, já que os livros tornaram-se menos dispendiosos. Mas é bom lembrar que, se um impressor errasse ao compor um texto, o erro agora era para toda uma edição. Há exemplos notáveis, ainda que seja lícito perguntar se, em alguns casos, o suposto erro não teria sido intencional.
A escrita de todo dia, porém, continuava manual. Quem tinha a boa sorte de ir à escola, tinha de aprender caligrafia, e, mesmo antes de por mãos à obra para escrever, era preciso saber preparar a pena com a qual o jovem discípulo colocaria no papel, literalmente, as lições que estudava.
Em um livro publicado por volta de 1622 e dedicado ao rei D. João V, com o título de Nova Escola Para Aprender a Ler, Escrever o Contar, o autor, Manoel de Andrade Figueiredo, depois de recomendar que as penas fossem "da asa direita, por se acomodarem melhor aos dedos" (¹), apresentava o modo correto de preparar a pena, bem como a maneira de segurá-la durante a escrita (²):



Para os muito curiosos, que talvez estejam desesperados para saber como eram as tais lições de caligrafia, vai aqui um exemplo, extraído do livro citado:


Que tal, senhores leitores?
Fato é que ainda por muito tempo tiveram os homens que escrever à mão, o que não excluía nem mesmo a documentação cartorial e a papelada jurídica. Quem, como eu, já teve que lidar com documentação histórica original do Século XIX, por exemplo, sabe que escrivães e advogados, fazendo uso do jargão próprio dos respectivos ofícios, tinham por hábito o emprego de muitas abreviaturas. Por consequência, ler o que escreviam envolve um duplo trabalho de decifração. Fica aqui, pois, uma palavrinha de gratidão aos professores de primeiras letras do passado que tinham apreço pelo ensino de caligrafia.
A invenção da máquina de escrever acabou com o transtorno dos garranchos, ao menos para uso profissional, e isso não é pouca coisa. Hoje, quando quase tudo o que escrevemos se faz em teclados eletrônicos, reais ou virtuais, é compreensível que haja quem pergunte se vale a pena torturar a criançada na escola com exercícios de caligrafia. Deixo a questão em aberto para quem quiser dar palpite no assunto, fazendo um comentário que, felizmente, não será manuscrito...

(1) FIGUEIREDO, Manoel de Andrade. Nova Escola Para Aprender a Ler, Escrever e Contar. Lisboa Ocidental: Oficinas de Bernardo da Costa de Carvalho, c. 1722, p. 31.
(2) As três imagens, extraídas da obra citada de Manoel de Andrade Figueiredo, foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

4 comentários:

  1. Depois de tantos anos a escrever praticamente só num teclado, eis que retornei à caligrafia, em outubro de 2014... caligrafia chinesa. Os caracteres chineses precisam ser escritos uma vez e outra, como auxílio à memorização e isso, descobri, pode ser uma espécie de terapia maravilhosa. Enquanto estamos concentrados, tentando que os nossos caracteres saiam bonitos, o stress do nosso quotidiano agitado fica esquecido por momentos!
    Na mesma altura, o meu filho começou a aprender a ler e escrever e também está a treinar a sua caligrafia e, acho eu, o resultado é o mesmo. Aprender como se escreve é o resultado da prática. E aí nada bate aquilo que é produzido pela nossa mão.
    Beijinhos, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Deve ser muito interessante. Conheço pessoas que praticam caligrafia por razões artísticas. Dizem que é uma ocupação agradável.
      Escrevo com certa frequência usando outros alfabetos, mas quase sempre usando teclado (nada de mandarim!). E, por consequência, vai-se perdendo a prática da escrita à mão. Não sei como é que, no período neolítico, eu conseguia escrever por horas e horas nos cadernos escolares. Affff...

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  2. No pequeno conjunto de livros que se carregava para a escola,no curso primário, pelos finais dos anos 40, começo dos 50 (para mim) , era obrigatório o "caderno de caligrafia". Todos os dias, se praticava. Para mim, era um imenso sacrifício! ...nunca consegui ter boa letra...

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    1. Eu também usei o tal caderno de caligrafia. Quase todas as escolas usavam. O problema é que, saindo dele, a escrita ficava bem diferente, pelo menos para a maioria dos alunos.

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